O coração despertara apreensivo naquele dia. Na realidade, quase não dormi direito na noite anterior. Não era para menos, dali a alguns instantes a minha vida escolar estaria na berlinda. Todos aqueles anos de estudo, do João Costa ao Miguel Couto Bahiense, por um fio. A cabeça para estourar, ainda cheia de fórmulas e conceitos acumulados durante tantos anos. Alguns aproveitáveis para o consumo existencial, outros a serem esquecidos tão logo saísse o resultado do vestibular. E eu estava ali, em frente ao prédio dO Globo, na expectativa de ver o meu nome na lista dos aprovados. Não via a hora de ligar para os meus pais, dando a boa nova, e pegar o ônibus de volta a Teresina, a fim de compartilhar com eles e os amigos tamanha alegria.

Cada aluno reage, diante do resultado, de uma maneira própria. Uns choram de alegria, quando logram êxito; outros, de tristeza, ao não terem sido bem sucedidos. Mas aquela garota, a quem nunca vira, resolveu expressar o seu contentamento de forma diferente: tascando-me um beijo na boca, ainda por cima com sabor de lágrima. Mal sabia ela o quanto esse desprendido gesto marcaria a minha vida, acalmando de vez todos os meus temores, sobretudo, num momento de muitas incertezas. Sem falar também, de tantas carências e imensurável solidão. Pena ela não ter prolongado tal entrega, alegando a urgente necessidade de comemorar a vitória com seus familiares. Na despedida, com semblante aliviado e feliz, chegou a pedir desculpas, logo para o maior beneficiado pelo beijo, há um ano na maior secura.

Pintura rupestre do "Beijo" no Boqueirão da Pedra Furada;  Parque Nacional da Serra da Capivara, PI

Pintura rupestre do “Beijo” no Boqueirão da Pedra Furada;
Parque Nacional da Serra da Capivara, PI

A perturbação no juízo foi tão grande que, por alguns minutos, acabei esquecendo o motivo de estar ali, bem como a loucura que havia se transformado a frente do jornal, um formigueiro de candidatos se atropelando para conferir o resultado. Felizmente, graças aos meus esforços e as preces de dona Raimunda, o meu nome constava na lista dos classificados em Biologia. Banhado de alegria, corri para o primeiro orelhão e liguei emocionado para o “Velho”, dando a notícia que estaria pegando a Itapemirim na manhã seguinte. Nunca uma viagem foi tão maravilhosa quanto àquela, apesar dos quase três dias de estrada. Mas nada, nem mesmo o desconforto do ônibus, atrapalharia a felicidade de abraçar os de casa. Aproveitei para curtir as paisagens e belezas deste imenso País, além de matutar um pouco sobre o futuro profissional.

Dos inúmeros medos, um tirava o meu sossego enquanto vestibulando: decepcionar os meus pais, logo eles que faziam o maior sacrifício para bancar os meus estudos na “Cidade Maravilhosa”. Caso não passasse, já estava decidido a permanecer por lá, só retornando após a vitória. Sendo estudante profissional – equivocadamente me indagava – como explicar uma possível derrota? Na época, não tinha maturidade ainda para saber que a vida é bem mais complexa e palpitante que qualquer vestibular. Mas essas coisas a gente só aprende com o desenrolar do tempo. A sabedoria é não ter pressa nem desistir nunca dos sonhos. Daquilo tudo, o que marcou realmente foi o inesperado e gostoso beijo da garota, bem como a animada marchinha do Pinduca: “Alô papai, alô mamãe / Põe a vitrola pra tocar / Podem soltar foguetes / Que eu passei no vestibular”.