ESTADO DE ESPÍRITO

Antes de partir, Marisa ainda perguntou, com lágrimas nos olhos, se eu a amava. Claro, disse sem titubear, mas ela não acreditou. Se a amasse de fato, passou na minha cara, diria espontaneamente, e não somente quando fosse indagado. Calado estava, calado fiquei, inútil justificar. Que adiantaria? Ela estava, sabia no íntimo, repleta de razão. Custava reafirmar, vez por outra, meus sentimentos. Não satisfeita, ela voltou à carga: verdadeiro, por que não expressá-lo diariamente? Longe de eu imaginar, enfatizou, como aquilo aplacaria a incerteza que a corroía por dentro. Por acaso era vergonha?  Timidez? Ou, quem sabe, alguma sirigaita que ocupava meu coração? Difícil explicar que amor é um estado de espírito, um bem-estar que dispensa protocolos, silêncio a emudecer qualquer comentário. Uma pena!

 

SÍNTESE ESTRANHA

Quer saber de quem eu sou filho? Pode até não acreditar, difícil realmente, mas de duas expressões. Isso mesmo que você acaba de ouvir. Não é brincadeira, acredite, longe de querer tirar sarro de sua cara. Tivesse sido criado, como fui, ouvindo-as diariamente, você chegaria também a essa conclusão. Mesmo a contragosto, sou filho de uma síntese entre Machado de Assis – “verdadeiramente só há uma desgraça: é não nascer” – e um provérbio bíblico – “nenhum obstáculo é grande demais quando confiamos em Deus”. A primeira repetida pelo meu pai, um leitor apaixonado do escritor carioca, ao presenciar eu reclamando da vida; a segunda, bordão de minha mãe, dita às vezes que ouvia o filho colocar dificuldade em tudo, inclusive no ato penoso de estudar. Traduzir uma frase na outra, questão de vida ou morte, levou-me a encarar a existência com menos sofrimento.

 

TIRO PELA CULATRA

Para pôr fim ao namoro, confesso que não foi nada fácil. Muito ao contrário, gastei muitos neurônios a fim de achar a melhor estratégia. Ainda mais depois de Ítalo ter tentado o suicídio, segundo ele, quando ouviu eu falar em dar um tempo na relação. Não foi em terminar, escute bem, mas um time para refletirmos sobre nossas constantes brigas. Era normal, por acaso, o ciúme exagerado que ele sentia de mim? Sem falar também de uma dependência e um grude, ambos de forma exagerada, que terminavam sufocando o brotar espontâneo do amor. Ao saber que ele estava fora de perigo, respirei aliviada e chorei bastante. Ali no hospital, orando baixinho, prometi que nunca mais permitiria que alguém, mesmo pessoas queridas, colocasse sua vida sobre meus ombros. Talvez o bilhete, curto e grosso, o tenha demovido da ideia de procurar-me novamente: “Quem ama não chantageia, babaca!”.

 

ÍNDIOS DE ARAQUE

Quem procura acha, diz o ditado, nunca tão verdadeiro como naquele dia, com o motorista enfurecido, de porrete na mão, correndo atrás da gente, molecotes das proximidades do Lindolfo Monteiro, nosso estádio municipal de futebol. À primeira vista, alguém poderia considerá-lo um monstro perseguindo garotos inocentes, quando éramos nós, na realidade, os verdadeiros monstrinhos do pedaço: meninos desalmados atirando, com baladeiras certeiras, mamonas nos passageiros de ônibus provenientes de Timon, machucando-os impiedosamente no rosto, alguns com ferimentos graves nos olhos. Tudo movido à brincadeira de mau gosto que nos proporcionava, na época, um enorme prazer, além de nos sentirmos autênticos índios cheyennes norte-americanos atacando as diligências dos homens brancos e cruéis. A correria desesperada e umas boas lapadas nas costas, que alguns tomaram, deixaram lições difíceis de esquecer até hoje.