Não sei quando nem como A Carne, livro de Júlio Ribeiro, veio cair em minhas mãos. Sei apenas que o impacto de sua leitura foi enorme, deixando o adolescente que eu era completamente maravilhado. A história de uma jovem bonita e inteligente, mas “tarada”, despertava em mim um misto de interesse com fascínio dos grandes. Em primeiro lugar, por fugir aos estereótipos das heroínas tradicionais, não tendo nada de anjo casto, menos ainda de inatingível. Depois, ao contrário daquelas, manifestando os desejos sexuais de forma sincera, sem pudor. Lenita, este é o seu nome, protagoniza cenas exageradamente fortes para os padrões moralistas da segunda metade do século XIX. Hoje, talvez, a obra não escandalize mais ninguém, dada a exploração do erotismo em praticamente tudo.
Quando lançado em 1888, entretanto, o romance provocou uma baita polêmica. Que os homens são tidos como desavergonhados, não resistindo a um rabo de saia, é assunto mais do que explorado na literatura. Muitas vezes, como sabemos, até com simpatia, de forma tolerante. Agora, descrever uma mulher, dessas incapazes de controlar seus impulsos carnais, é afronta em demasia, devendo seu autor ser excomungado e atirado, preferencialmente, nos quintos do inferno. Onde já se viu querer macular a imagem feminina, construída a duras penas, de santa pura, intocável? No máximo, caso desejasse abordar essa temática – segundo os setores retrógrados da sociedade – que Júlio Ribeiro o fizesse como corolário dos mais nobres sentimentos amorosos, jamais expressão patológica de instintos animalescos.
Apesar de ter sido considerada uma obra nada recomendável, e talvez por isso mesmo, acabou despertando a curiosidade de muita gente, com os leitores querendo saber, num exercício de voyeurismo, dos apetites sexuais da jovem órfã, sobretudo, no que diz respeito aos aspectos “anormais” de seu comportamento. Daí, embora chocados com o que viram, mesmo assim vibraram com a Lenita sádica e ninfomaníaca da narrativa, capaz de sentir prazer ao presenciar um velho escravo sendo açoitado: “sentia como se um espasmo de prazer, sacudido, vibrante; estava pálida, seus olhos relampejavam, seus membros tremiam. Um sorriso cruel, gelado, arregaçava-lhe os lábios, deixando ver os dentes muito brancos e as gengivas rosadas”. Para, no final do castigo, ser mostrada em pleno gozo: “tremia, agitada por estranha sensação, por dolorosa volúpia. Tinha na boca um saibo de sangue”.
Dos que não gostaram do livro, um resolveu tornar pública a sua indignação, com o desaforado artigo “A carniça”, publicado no Diário Mercantil de São Paulo. Nele, o padre e escritor português Senna Freitas procura, resguardando o talento do autor, destruir a sua obra, negando-lhe qualquer importância artística: “entregue-se à cova A carniça e que a terra lhe seja leve. Nós somos homens e não corvos; declinamos o pábulo”. A resposta de Júlio Ribeiro, jornalista tarimbado e polemista de primeira, não tardaria ao chamar seu crítico de urubu, atacando-o ferozmente: “É o caso agora, é o que vou fazer, à besta que me agrediu ultimamente a coices e manotaços, e que, em punição, vai ser agarrada, embeiçada, enfreiada, encilhada, cavalgada, atagantada, cortada de esporas, escorchada de vez, é uma besta religiosa, é o Padre Senna Freitas”.
Mas, naquela quadra da vida, alheio a tais polêmicas e sem conhecer as deformações da estética naturalista, a minha única preocupação era com o desenlace amoroso entre Lenita e Manduca, par ‘romântico’ movido pela intrigante poesia dos instintos e as descobertas das experimentações científicas, notadamente no campo da anatomia dos corpos. A despeito dos exageros, Lenita já me parecia, hoje ainda mais do que naquele tempo, uma mulher de fato, convincente tanto na libido quanto no lirismo sincero. Bem diferente, portanto, de uma heroína como a Ceci, de O Guarani, mais para enfeite de casa – bibelô exposto na estante – do que musa inspiradora de inesquecíveis paixões. Além do romance, vale a pena ler também Uma polêmica célebre, volume reunindo os textos de Júlio Ribeiro e do padre Senna Freitas, incorporado às edições recentes de A carne, como parte indissociável da obra.