Victória Holanda
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O poliamor das leituras

Eu sou promíscua. Calma, que eu vou explicar. É que eu me apaixono por vários livros ao mesmo tempo. Deve ser falha de caráter, transtorno psiquiátrico ou prato cheio pra psicólogo que adora uma disfunção mental. O fato é que eu não consigo começar uma leitura e terminá-la completamente para começar outra. Quando percebo, estou envolvida em um emaranhado de leituras que disputam minha constante atenção e esperam que eu termine algumas páginas da outra leitura para retomá-las em seguida.

É um jogo de sedução. Você flerta com uma leitura, namora a capa, lê a orelha, folheia duas ou três páginas e já é tomada por um desassossego de querer ler tudo até o final. Acontece que nesse meio tempo, as leituras menos avantajadas intelectualmente, desprovidas de simultânea leveza e profundidade perdem espaço para um livro de poesia que estava na geladeira, esperando um momento de solterice ou iminente traição literária. Ele te fisga em pleno dia de cão, momento que você só precisa percorrer algumas páginas de maneira despreocupada e, subitamente, encontra-se perdidamente apaixonada por aqueles versinhos curtos, porém de uma eloquência arrebatadora.

Fica difícil levar dois relacionamentos ao mesmo tempo. Um romance complexo e detalhista que lhe toma tempo, porém é insubstituível, enquanto uma poesia sedutora mexe com os seus sentidos. No meio desse fogo cruzado, você se sente culpada e quer voltar para a realidade e se pega lendo crônicas de Rubem Braga! Uma compulsão obsessiva incontrolável. Pior que não se contenta com um livro só, quer dois, três, quatro, uma orgia literária: quer todos ao mesmo tempo!

Tem gente que é cegamente fiel. Começa e termina um livro, sofre uma deprê pós-término até se sentir apto a se envolver com novos livros. Coisa de gente que tem olhos para uma leitura só.

Tem gente que não sabe o que quer. Começa um livro, não termina, começa outro, não termina também. Quando vê, não terminou livro nenhum nem deixou uma explicada justificativa. Deve ter largado por aí muitos corações literários partidos, decepcionados e frustrados, que vão demorar a se recompor para se deixar serem lidos novamente. Um sofrimento.

E tem gente que é que nem eu. Às vezes, desiludida ou entediada com determinado envolvimento literário, começa um novo flerte. De vez em quando, eu me apaixono perdidamente, porém não são raras as circunstâncias decepcionantes. Nessa busca por outras perspectivas, procurando preencher esse vazio causado pelas leituras, acaba se formando um enorme abismo provocado por enredos mal-escritos, personagens enfadonhos ou até mesmo a monotonia da rotina de leitura.  São ciladas que, às vezes, a gente dá o azar de cair nessa troca do certo pelo duvidoso.

O ruim é que nem sempre você encontra colo nas outras leituras. Mas é coisa de gente que não presta mesmo e adora a aventura de experimentar livros novos. O risco do desengano é grande, mas tem prazeres que compensam os perigos.

Debochados desvalidos

Sejam todos bem-vindos à República dos Desvalidos! Uma trupe mambembe anuncia a inauguração de mais um conjunto habitacional com pouca nobreza e desassistido de tudo. Ali, como bem nos apresentam os personagens, se vive com o pé na lama. Mas mesmo na lama se acha algum brilho.

Montagem do Grutepe para o texto de 1986 (Foto: Mauricio Pokemon)

Montagem do Grutepe para o texto de 1986 (Foto: Mauricio Pokemon)

A peça teatral parte da busca dos moradores do fictício Itararé por melhorias na comunidade. Todos os personagens do subúrbio estão ali: o bêbado, a lavadeira, a dona de casa, o líder comunitário e a filha que volta de viagem cheia da pose mas também está na miséria. Tudo isso é revelado com muito bom humor e leve pitadas de drama. “Aqui tudo é uma mistura de desgraça com deboche”, diz Joana Maria em uma das cenas.

República é uma peça de José Afonso Lima, dramaturgo piauiense, e estreou pela primeira vez em 1986. Agora, quase 30 anos depois, o texto volta em nova montagem do Grupo de Teatro Pesquisa – Grutepe, com direção de Arimatan Martins e composições de Aurélio Melo – sim, trata-se de uma comédia musical, extremamente bem conduzida pela sonoridade do maestro que volta e meia cai em cena com os atores num misto de improviso e descontração.

O cenário traz soluções simples e de belo efeito visual – o palco às vezes vira rua, praça, inauguração de um centro na comunidade ou mesmo a sala da casa de dona Joana. Lari Sales, Vera Leite, Eliomar Vaz Filho e Fábio Costa já estavam no antigo elenco. Em 2006 entraram Bid Lima e Marcel Julian. A novidade nesta versão está na beata Marta Carvalho, interpretada por Edithe Rosa.

Crítico e cômico, o texto satiriza da religião as políticas habitacionais do governo. “Itararé é um privilégio nacional. Podia ser em qualquer canto do Brasil”, diz um dos personagens pouco antes de entrar em cena uma releitura da lenda mais conhecida – e sempre atual – do nosso folclore: o pescador que mata a mãe por não ter o que comer. Mais uma vez a miséria dando o tom.

Desbocados e bem piauienses, todos os personagens trazem um drama pessoal – destaque para o canto da lavadeira, a mais radiante e alegre personagem, que conta ter perdido o marido e três filhos para o rio em momento comovente. Nessa hora é Lindalva, a jovem meio patricinha da favela que surpreende ensinando a vizinha: “A dor ajuda a alimentar a alma”, diz, consolando. “Se a gente fraquejar é que a coisa desanda de vez”.

FestLuso –
30/08 | Theatro 4 de Setembro | 20h30
(Entrada franca)

Um gosto de beijo na boca

para Clarice Lispector

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Tive um namorado a quem amei muito. Um dia, porém, ele me causou uma grande mágoa. Tudo começou quando lhe perguntei se já havia beijado outra garota antes, o que ele respondeu afirmativamente.

Ele contou que seu primeiro beijo acontecera durante uma excursão, quando, sentindo uma enorme sede, encostou seus lábios sedentos a um orifício de onde jorrava água. Ao abrir os olhos, ainda sob o impacto da vida renascendo, percebeu que o filete de água deslizava através da boca gélida da estátua de uma mulher nua.

No momento, adolescente que saboreia pela primeira vez o gosto do amor, bem como corroída por umas pontadas doloridas de ciúme, não pude deixar de me sentir traída e, sem maiores explicações, resolvi acabar ali o meu primeiro namoro, com lágrimas deslizando pelo rosto ingenuamente magoado.

Hoje, mulher já madura e tendo vivido várias relações amorosas, percebo o quanto fui boba. Como pode alguém, afinal, ser traída por uma estátua? Naquele tempo, infelizmente, só vi a traição, incapaz de reconhecer a sinceridade da confissão e a importância do beijo no amadurecimento daquele jovem.

Se o tempo pudesse retroceder, pediria a ele que beijasse meus lábios com a mesma sofreguidão que beijara a boca da estátua, pois, ao longo da vida, nenhum outro homem se doou a mim com a mesma sede.

Nessun dorma

(ou o 10)

Rita Hayworth soube por amigos em comum que Virginia compartilha com ela seu maior desejo: aumentar as noites para conseguir enchê-las de sonhos. Mas noites são seres fugidios que escorregam pelo mundo antes que possamos abrir suas barrigas e mergulhar dentro delas profundamente e colar em suas paredes todas as estrelas que iluminam nossos céus. “Nessun dorma, nessun dorma”, mas mesmo que não se durma nessa cidade em uma noite de terça-feira ninguém vê que Rita Hayworth carrega pela Lardennois sua cadeira de espaguete blêblanrúge, sobe os degraus de seu perfeito esconderijo e, com alguns passos à direita, chega ao lugar onde mais se encontra com ela mesma. Rita Hayworth se senta, tirando antes do bolso traseiro um pequeno papel dobrado. É uma canção antiga, que a mãe da mãe da mãe de Rita Hayworth cantava para o irmão mais novo dormir, e que diz mais ou menos assim: “eu quero amor, alegria, bom humor, não é o dinheiro que me trará felicidade, eu quero morrer com a mão no coração”. Rita Hayworth sobe na cadeira, espeta com um alfinete de cabeça amarela o bilhete no céu, senta novamente e espera o sol nascer. Já é quase dia, e Rita Hayworth agora caminha de volta pela Lardennois retirando pedras dos bolsos do casaco. A cada pedra que retira e joga por cima do ombro Rita Hayworth dá um sorriso e diz baixinho: venci outra vez. Treme seu celular. É Virgínia.

O Sentido de Viver

O que vem a ser motivo da vida, pergunto-me. Seria ter bastante grana, não trabalhar, ter todo o tempo do mundo para se divertir? Vamos questionar isso. Tendo bastante grana, não trabalhando e tendo todo tempo do mundo para me divertir, motivaria minha existência? Pelo que conheço da vida, quanto mais dinheiro se tem, mais se corre atrás para obter mais. Nosso padrão de vida tende a aumentar ao infinito. Sempre existirão novos patamares. E ficar atrás de capital, com certeza, não vai motivar minha existência. A autorrealização humana não se resolve na esfera do aumento das possibilidades de consumo. Claro, ajuda.

Não trabalhar talvez fosse uma boa. Mas não trabalhar para quê? Porque não posso ficar sem fazer nada. Não fazer nada, decerto, não é o motivo de existir. Existimos para alguma coisa. Nada é nada. Divertir? Deve ser gostoso levar uma vida divertindo-se. Mas, provavelmente, cansaria, como tudo que é único se esgota.

O que nós queremos seria o motivo de nossa existência? Na verdade, não sabemos o que queremos. Nos atolamos no barro de nossas dúvidas. Afundamos cada vez mais, desperdiçando nossas energias na vã tentativa de sair. Às vezes a corrida rumo a lugar algum a que estamos mergulhados, mais me parece impulso suicida.

De qualquer maneira, que motivo de vida seria este, caso não casasse com o que nós queremos? Adquirir coisas, com certeza, já vimos que não é. Nada, não podemos. Divertir cansa. Quem sabe o motivo da vida não estaria na religião? Bem provável, não é mesmo? Voltar-me para Deus. Adorá-lo ou simplesmente amá-lo como a um Pai que nos provê. Que há um Deus, a maioria concorda. Não sei se daria o nome de Deus a esta força que me acompanha desde o começo de minha existência. Não tenho dúvidas de que há algo que me protege. Assim como protege a meus filhos e a cada uma das pessoas. A você que me lê, com certeza. Em nada sou melhor ou pior que você atualmente. Claro, é indiscutível que, no passado, fiz pior minha vida que a maioria de vocês. Mas chove sobre mim também, não é? E faz sol. Estou tendo a oportunidade de desincorporar minha paixão de viver como qualquer um de vocês. E quero existir gravemente, como sol sangrando. Vou sempre querer dar boas notícias de mim a cada um de vocês que me leem agora. Aguardem.

Mas, religião, do verbo latino religare, ou seja, religar o homem à sua origem, Deus, preenche o motivo de nossa existência? Sim, em uma boa parte das pessoas. Mas, nós estamos aqui para mais do que isso, me parece. Acreditar, aprofundar e participar, tudo bem. Só que, em havendo um criador, este nos fez com um ou até múltiplos objetivos. E este é o objeto desta procura: descobrir o motivo da existência de cada um de nós.

Seja qual for o motivo último de nossa existência, uma coisa fica absolutamente clara. O propósito das pessoas de carne e osso, em qualquer lugar do mundo, é alcançar a felicidade. E esse é o nosso maior desafio. Nosso coração surrado resiste como um astro aceso porque acreditamos ser possível.

É a nossa esperança de conquistar essa satisfação de viver que nos faz suportar cada um dos dias de nossas vidas. Embora a linha de aço que tange o horizonte, acreditamos em nosso sonho de felicidade, por mais remoto nos pareça. E é isso que nos mantém firmes e fortes na luta.

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Luiz Mendes

24/08/2015.

 

*Luiz Alberto Mendes é escritor e colunista da revista Trip e, agora, também do site da Revestrés