André Gonçalves

Farinhada

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O maior jogo de vôlei de todos os milênios

(texto publicado na minha coluna Farinhada, no jornal O Dia, em março/2006 – de volta porque o site do Mr. Zuckerberg fez com que eu e Ibinha voltássemos a nos falar mais de 30 anos depois dos fatos narrados fidedignamente – e com testemunhas!)

Semana passada contei aqui algumas peripécias do meu passado. Parece que fez sucesso. Recebi vários e-mails: um com alguém dizendo não acreditar que eu já fui cabeludo, outro pedindo que eu suba novamente aos palcos pra desbancar Mick Jagger, outro criticando porque chamei nosso astronauta de tomate espacial. Pelo visto, falar sobre a gente dá ibope, mesmo. Bem, depois desse sucesso, resolvi escancarar e contar mais alguma coisa lá de trás da minha vida. E, olha, essa eu contei pra pouquíssimas pessoas. Que não acreditaram em uma só palavra, o que me fez resguardar ainda mais esse pedacinho heróico de minha existência. Mas aí vai.
Eu já joguei vôlei. Certo, sou um tampinha, mas joguei, numa época em que minha altura ainda era compatível com os demais da minha idade. Fui descoberto, e isso é um orgulho que trago comigo, pelo professor Adolfo Guilherme, que, bem antes de me descobrir, chegou a ser treinador da Seleção Brasileira Feminina. Jogando uma pelada nas quadras do Minas Tênis, em BH, seu Adolfo me viu, me chamou num canto e disparou: “Menino, você leva jeito. Quer treinar comigo”? Eu tinha 13, 14 anos. E foi aí mais de um ano com “seu” Adolfo, divertidíssimo, treinando e sonhando em crescer mais alguns centímetros e ser um novo William. Mas, peraí, essa não é a estória, é a introdução. Feita, aí vai o “causo”.
Então, jogava vôlei. Mas acabou que fui morar no Rio de Janeiro. E fiz dupla de vôlei de praia com um amigo, o Ibinha. O Ibinha tinha um nome pomposo, aristocrático: Eduardo João Henrique Haas Gonçalves Júnior. Mas era duro, ferrado como eu, e combinava mais com Ibinha, mesmo. Era meu amigo, colega de escola e dupla na praia. Inseparáveis. Éramos da mesma turma na oitava série. E, um dia, se na praia não ganhávamos de ninguém, tivemos nosso nome inscrito na galeria dos heróis mundiais do esporte, apesar de ninguém saber disso.
Nossa turma, a 802, chegou à final do torneio de vôlei da escola contra a 801. Eu de levantador, o Ibinha na entrada e o Zé Ricardo, que na época treinava no Fluminense, na saída de rede. Dos outros, confesso, não lembro. Mas o trio era quase imbatível. Só que, sabe-se lá porque, no dia da final nosso time não foi. Fomos só eu e Ibinha. Os dois e mais a torcida, o outro time, a diretoria da escola e meio mundo. Mas cadê o time? Íamos perder por WO. Mas, conversando com o professor de educação física e, no caso, juiz do jogo, ele permitiu que entrássemos em quadra, eu e Ibinha. Perder por WO era muito feio. Claro que todo mundo previa um massacre, mas entramos em quadra aplaudidíssimos pela iniciativa. Até que, dentro da quadra, eu e Ibinha começamos a dar um show. Ninguém acreditava. Eu e ele, sem reservas, sem mais ninguém, começamos perdendo o jogo, mas equilibramos ainda no primeiro set, que ganhamos de virada. A torcida, em êxtase, começou a gritar nosso nome. A 801 mudou o time todo, entrou gente, saiu gente, e eu e Ibinha firmes, gigantes (eu nem tanto, mas entenda meu entusiasmo). A cada lance, um joelho esfolado, uma cabeça dolorida, mas ponto para a dupla da 802. Nós, claro. Que, acredite você ou não, ganhamos a partida. Eu e Ibinha derrotamos um time inteiro, com seis titulares e seis reservas. É verdade! Olha, to dizendo! Tenho centenas de testemunhas!
Tá bem, tá bem… Não precisa acreditar. Ninguém acredita mesmo. Mas vou procurar o Ibinha pela net e trago ele aqui pra você ver. Pode esperar.

Das histórias

Toda família tem histórias, e são essas histórias, reais ou inventadas ou imaginárias ou bem sólidas que, juntas, fazem a história de uma família. A minha, como todas, tem muitas, em especial as histórias de viagens do tataravô do meu bisavô, que em tempos bastante remotos rodou o mundo, Ásia, Europa, Oceania, passou ainda pela África e conheceu as Américas como ninguém mais e que, dizia ele, andou por tantos lugares que descobriu que os continentes são oito, os mares dezesseis e oceanos são nove. Essas afirmações contrariam as noções e afirmações da ciência contemporânea mas, enfim, são falas do tataravô do meu bisavô e isso basta para que as tomemos como a mais pura e cristalina verdade, já que era homem honrado e não mentia, exceto quando dormia e falava enquanto sonhava, mas aí não sei se seria possível que se afirmasse que mentia, já que sonhava, e sonhos são sempre o que existe de mais real e verdadeiro.

Então o tataravô do meu bisavô, ao retornar para casa numa viagem de volta que levou cerca de três anos após nove meses desbravando a região da Rondívia, chegou a Thang Long, hoje Hanoi, capital do Vietnam. Era uma manhã com garoa e, mineiramente acocorado às margens do rio Vermelho, o tataravô de meu bisavô tomava tranquilamente seu phò com pedaços de frango, coisa que muito lhe apetecia. Ao terminar, levantou-se e, ao procurar a sombra de uma árvore para descansar, percebeu uma pequena aglomeração. Chegando perto viu que as pessoas cercavam uma moça que rodopiava. Rodopiava. Rodopiava. O vestido azul em redemoinho, pedaços de céu orbitando em torno da moça que, alheia a tudo, rodopiava. Rodopiava. Rodopiava. Rodopiava. O tataravô do meu bisavô dominava como poucos a língua vietnamita e perguntou por que a moça rodopiava. Uma senhora explicou que a moça era uma vendedora de rodopios e cobrava o que hoje seria equivalente a dois dongs por rodopio e, como isso era bastante barato no mercado nacional de rodopios, as pessoas estavam pagando para vê-la rodopiar. E ela rodopiava. Rodopiava. Rodopiava. Rodopiava.

Meia hora ficou o tataravô de meu bisavô observando os rodopios da jovem que vestia céu, e a cada rodopio ele tentava olhar nos olhos dela mas ela rodopiava de olhos fechados. O tataravô de meu bisavô conseguiu perceber que a moça que rodopiava rodopiava com um breve sorriso no rosto, além dos olhos fechados. Até que a moça que rodopiava começou a rodopiar um pouco mais lentamente, um pouco mais lentamente, u m  p o u c o   m a i s   l e n t a m e n t e,  u    m     p    o   u    c    o       m    a    i   s      l    e    n    t    a    m   e    n    t    e. Até que parou. O tataravô do meu bisavô finalmente conseguiu olhar nos olhos da moça que rodopiava. Ela tinha os olhos agora abertos mas olhava para algum lugar que não existia. As pessoas iam se afastando lentamente, até que ficaram apenas a moça que rodopiava e o tataravô do meu bisavô. Contava o tataravô do meu bisavô que a moça que rodopiava passou ainda algo próximo a duas horas olhando para algum lugar que não existia, e durante esse tempo ele ficou ali, em frente a ela, que não o via.

Até que em algum momento a moça que rodopiava e olhava para algum lugar que não existia percebeu que o tataravô do meu bisavô estava ali, olhando para ela. Ele contava que ela abriu um sorriso um pouco maior, moveu a cabeça como se lhe agradecesse por algo, recolheu algumas moedas que estavam pelo chão, segurou a barra do vestido de céu à altura dos joelhos e saiu, caminhando tão levemente que mais flutuava que caminhava.

E o tataravô do meu bisavô contava que sentiu uma vontade grande de rodopiar também, e ali, no mesmo lugar, começou a fazer como a moça que rodopiava, e fez isso primeiramente bem devagar, depois um pouco mais rápido, e cada vez mais rápido. E rodopiava. Rodopiava. Rodopiava.  Rodopiou por vinte horas sem parar, e depois desse tempo foi reduzindo a velocidade nos rodopios, rodopiando um pouco mais lentamente, um pouco mais lentamente, u m  p o u c o   m a i s   l e n t a m e n t e,  u    m     p    o   u    c    o       m    a    i   s      l    e    n    t    a    m   e    n    t    e. Até que parou. O tataravô do meu bisavô rodopiou tanto que o chão em que pisava foi cedendo aos poucos, e ao fim de seus rodopios ele estava três metros abaixo. O tataravô do meu bisavô contou então que durante quase duas horas ele não conseguia deixar de olhar para algum lugar que não existia, e que era um lugar bem bonito e azul. E que ao fim desse tempo, após algum esforço para sair do buraco onde havia se metido rodopiando, percebeu que era noite. E que, apesar de sentir algo que nunca havia sentido antes e, segundo ele, nunca mais deixou de sentir depois, retomou o caminho na estrada que, três anos depois, o levaria de volta para casa. Não era mais o mesmo.

Toda família tem histórias, reais ou inventadas, e essa é mais uma das histórias que o tataravô do meu bisavô contava de suas vivências pelo mundo e seus quem sabe oito continentes. São histórias como essa que fazem a história de minha família, e atravessam os séculos. E, mais que histórias, são nossas melhores verdades, as verdades mais sólidas, as que são suporte e norte das almas dos que me são próximos.

Autobiografia não autorizada de Maria Quem

(Tiro 1)

Meu nome é Maria. Maria Antônia Almeida de Bragança Fernandes Oliveira Melo Da Silva e Silva. Isso, Silva duas vezes. Silva é nome de pobre. Vai ver é por isso que eu tenho dois Silvas. Nasci pobre. Muito pobre. Silva de pai e Silva de mãe. O resto, Antônia de Almeida de Bragança Fernandes Oliveira Melo, não é de ninguém. Minha mãe que inventou pro meu nome ficar grande. Mas meu nome não tem nenhum dábliu ou ípsilone. João, Maria, José, Pedro, sempre foi nome de pobre. Mas rico hoje em dia chama os filhos de João ou de Maria pra parecer humilde. Eles enchem o peito e falam cheios de orgulho: viu como somos humildes? Quanto mais simples, mais rico. Quanto mais enrolado, como Westerson, Winston Allyson, Eulanajra, Margilaine, Westinghouse, mais pobre. Mas Silva não, é mesmo sobrenome de pobre. Meu nome é Maria. E eu tenho dois Silva.

x=y

112-copia

 

O coração de Rita Hayowrth anda um tanto acelerado: uma extrassístole levemente alucinada deixa a moça sorrindo pelos cantos. Isso ocorre com alguma frequência e nessas horas ela finge que não é com ela, mas desta vez Rita Hayworth tranca a porta, fecha os olhos, respira fundo e logo já está desembarcando em Paris, levando nas mãos apenas o pequeno coração palpitante. Hoje Rita Hayworth está particularmente confiante. Ela ergue os braços e aponta o coração para o sol, pálido, mas suficiente. O coração de Rita Hayworth começa a piscar, indicando para a moça o caminho a ser seguido. Cada passo de Rita Hayworth faz o coração piscar mais rápido, e um pouco mais, e mais um passo e o coração pisca ainda mais rápido. Rita Hayworth atravessa toda a Paris e causa algum estranhamento. Até que a dois passos de Pigalle o coração de Rita Hayworth se acende por inteiro e brilha tão intensamente que ilumina dois quarteirões inteiros da Frochot. Rita Hayworth olha para os lados e o coração parece lhe querer voltar pela boca. A moça vê a casa número 1 e pensa: “O número um de todos os amores desse mundo está aqui”. Mais uma vez Rita Hayworth fecha os olhos e suspira, e assim Rita Hayworth já está dentro da pequena casa. O coração de Rita Hayworth, é bom que se saiba, não diferencia x de y, como qualquer coração que se preze deveria fazer. Há uma voz que canta. A voz abraça Rita Hayworth, que tem agora o coração batendo novamente dentro peito e no ritmo que ela sempre achou o melhor de todos. A voz se insinua lentamente, e Rita Hayworth está feliz como nunca quando a voz morde delicadamente seu lábio inferior, e mais feliz ainda quando a voz entra suavemente por todos os poros já então completamente livres de qualquer cobertura, e infinitamente feliz quando sente o cheiro da voz e percebe que a voz tem cheiro de grama úmida em manhã de inverno. Rita Hayworth entende nesse momento todo o sentido da frase que tatuou há nove anos na coxa esquerda: “Let the seasons begin, it rolls right on, let the seasons begin, take the big king down”. E dorme, profundamente.

Uma nova grande narrativa?

Talvez o que tenhamos deixado passar despercebido quando Lyotard nos disse que havia chegado ao fim a época das grandes narrativas foi o fato de que, na verdade, vivemos em múltiplos tempos, dentro de um “agora”: alguns de nós vivem no século 21, outros no 20, outros não passaram do 19 e há quem diga que temos grupos que vivem, ainda hoje, no período medieval (e até anteriores).

Com isso nós, que nos acreditamos “de esquerda”, nos permitimos fragmentar ao máximo nossas agendas e nossa pauta reivindicatória. Claro, já que isso que chamamos de pós-modernidade contempla essa infinita multiplicidade de referências e até mesmo nenhuma ao invés de um “norte”. E nos dissolvemos em nossas subjetividades, tantas, incontáveis, superpostas em nós mesmos e em possibilidades sem fim. E aí não somos “a” esquerda, mas quase infinitas “esquerdas”, que muitas vezes tentamos impor às demais e nos posicionar em uma linha reta sendo que, usando uma geometria ideológica de possibilidades como modelo, talvez fosse melhor tentar nos localizar enquanto “esquerda” em um dos pontos de um megágono tridimensional e maleável.

Então estamos nesse megágono que flutua e gira e não tem nenhum rigor de forma e nossos opositores, lá na lógica do século 19, seguem com um discurso que tem como base apenas aqueles três pontos que vêm, talvez, do século 17 e formam o esqueleto do conservadorismo: tradição, família e propriedade, que também pode ser lido como hierarquia, deus e capital, e, mesmo que aqui e ali eles tenham suas incongruências, o esqueleto segue sendo algum norte, apesar de, sim, esqueleto pós-cadáver, e uma estrutura. E os una.

Uma hora esse esqueleto ia sair dos armários mofados e se aproveitar da nossa multiplicidade, que ao mesmo tempo é nossa maior força e maior fragilidade, para tentar nos derrubar e, como está na letra “t” do tripé, nos levar de volta ao passado, mal-estruturado e feio, porém pronto, ao invés de nos projetar para um futuro desconhecido, mas possível de ser construído.

Zizek disse ali que nisso de pós-modernidade tudo se tornou demasiadamente próximo, promíscuo, sem limites, deixando-se penetrar por todos os poros e orifícios. Começo a pensar que ele está certo e que tudo isso, que poderia ser mesmo nossa grande oportunidade, se tornou nosso maior problema, já que essa promiscuidade e falta de limites e porosidade permite que o passado, o mofo e o retrocesso se mantenham vivos, fortes, firmes, e a superposição de tempos vividos possibilita que “os outros” tentem reassumir o comando de tudo usando uma nova grande narrativa: a narrativa do “não há nada melhor que isso”, ancorada na hierarquia social da tradição, no estruturalismo moral da família regida por um ser divino, e no capital, na propriedade, no acúmulo.

Vai ser uma luta difícil. Talvez precisemos também de uma nova grande narrativa. Será? Mas qual?