Toda família tem histórias, e são essas histórias, reais ou inventadas ou imaginárias ou bem sólidas que, juntas, fazem a história de uma família. A minha, como todas, tem muitas, em especial as histórias de viagens do tataravô do meu bisavô, que em tempos bastante remotos rodou o mundo, Ásia, Europa, Oceania, passou ainda pela África e conheceu as Américas como ninguém mais e que, dizia ele, andou por tantos lugares que descobriu que os continentes são oito, os mares dezesseis e oceanos são nove. Essas afirmações contrariam as noções e afirmações da ciência contemporânea mas, enfim, são falas do tataravô do meu bisavô e isso basta para que as tomemos como a mais pura e cristalina verdade, já que era homem honrado e não mentia, exceto quando dormia e falava enquanto sonhava, mas aí não sei se seria possível que se afirmasse que mentia, já que sonhava, e sonhos são sempre o que existe de mais real e verdadeiro.

Então o tataravô do meu bisavô, ao retornar para casa numa viagem de volta que levou cerca de três anos após nove meses desbravando a região da Rondívia, chegou a Thang Long, hoje Hanoi, capital do Vietnam. Era uma manhã com garoa e, mineiramente acocorado às margens do rio Vermelho, o tataravô de meu bisavô tomava tranquilamente seu phò com pedaços de frango, coisa que muito lhe apetecia. Ao terminar, levantou-se e, ao procurar a sombra de uma árvore para descansar, percebeu uma pequena aglomeração. Chegando perto viu que as pessoas cercavam uma moça que rodopiava. Rodopiava. Rodopiava. O vestido azul em redemoinho, pedaços de céu orbitando em torno da moça que, alheia a tudo, rodopiava. Rodopiava. Rodopiava. Rodopiava. O tataravô do meu bisavô dominava como poucos a língua vietnamita e perguntou por que a moça rodopiava. Uma senhora explicou que a moça era uma vendedora de rodopios e cobrava o que hoje seria equivalente a dois dongs por rodopio e, como isso era bastante barato no mercado nacional de rodopios, as pessoas estavam pagando para vê-la rodopiar. E ela rodopiava. Rodopiava. Rodopiava. Rodopiava.

Meia hora ficou o tataravô de meu bisavô observando os rodopios da jovem que vestia céu, e a cada rodopio ele tentava olhar nos olhos dela mas ela rodopiava de olhos fechados. O tataravô de meu bisavô conseguiu perceber que a moça que rodopiava rodopiava com um breve sorriso no rosto, além dos olhos fechados. Até que a moça que rodopiava começou a rodopiar um pouco mais lentamente, um pouco mais lentamente, u m  p o u c o   m a i s   l e n t a m e n t e,  u    m     p    o   u    c    o       m    a    i   s      l    e    n    t    a    m   e    n    t    e. Até que parou. O tataravô do meu bisavô finalmente conseguiu olhar nos olhos da moça que rodopiava. Ela tinha os olhos agora abertos mas olhava para algum lugar que não existia. As pessoas iam se afastando lentamente, até que ficaram apenas a moça que rodopiava e o tataravô do meu bisavô. Contava o tataravô do meu bisavô que a moça que rodopiava passou ainda algo próximo a duas horas olhando para algum lugar que não existia, e durante esse tempo ele ficou ali, em frente a ela, que não o via.

Até que em algum momento a moça que rodopiava e olhava para algum lugar que não existia percebeu que o tataravô do meu bisavô estava ali, olhando para ela. Ele contava que ela abriu um sorriso um pouco maior, moveu a cabeça como se lhe agradecesse por algo, recolheu algumas moedas que estavam pelo chão, segurou a barra do vestido de céu à altura dos joelhos e saiu, caminhando tão levemente que mais flutuava que caminhava.

E o tataravô do meu bisavô contava que sentiu uma vontade grande de rodopiar também, e ali, no mesmo lugar, começou a fazer como a moça que rodopiava, e fez isso primeiramente bem devagar, depois um pouco mais rápido, e cada vez mais rápido. E rodopiava. Rodopiava. Rodopiava.  Rodopiou por vinte horas sem parar, e depois desse tempo foi reduzindo a velocidade nos rodopios, rodopiando um pouco mais lentamente, um pouco mais lentamente, u m  p o u c o   m a i s   l e n t a m e n t e,  u    m     p    o   u    c    o       m    a    i   s      l    e    n    t    a    m   e    n    t    e. Até que parou. O tataravô do meu bisavô rodopiou tanto que o chão em que pisava foi cedendo aos poucos, e ao fim de seus rodopios ele estava três metros abaixo. O tataravô do meu bisavô contou então que durante quase duas horas ele não conseguia deixar de olhar para algum lugar que não existia, e que era um lugar bem bonito e azul. E que ao fim desse tempo, após algum esforço para sair do buraco onde havia se metido rodopiando, percebeu que era noite. E que, apesar de sentir algo que nunca havia sentido antes e, segundo ele, nunca mais deixou de sentir depois, retomou o caminho na estrada que, três anos depois, o levaria de volta para casa. Não era mais o mesmo.

Toda família tem histórias, reais ou inventadas, e essa é mais uma das histórias que o tataravô do meu bisavô contava de suas vivências pelo mundo e seus quem sabe oito continentes. São histórias como essa que fazem a história de minha família, e atravessam os séculos. E, mais que histórias, são nossas melhores verdades, as verdades mais sólidas, as que são suporte e norte das almas dos que me são próximos.