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Senhora Helena.

Antes de qualquer coisa, peço desculpas pela demora em respondê-la. Há tempos não peço desculpas por nada nem a ninguém, nem dou explicações sobre o que quer que seja a quem quer que seja. Não percebo porque alguém haveria de se interessar e já não disponho mais de pudores que me provoquem a necessidade de me desculpar por algo que tenha feito, dito, pensado ou desejado. Mas aqui, senhora Helena, abro uma exceção, e exceções também são coisas que não costumo abrir, salvo em condições extremas. Como essa, ao me corresponder com a senhora.

Há pessoas que pensam, provavelmente, que sou amargo. Que sou estranho. Que sou arrogante. As pessoas pensam o que querem, senhora Helena. Não me importo com elas. Sinceramente, não faço a mínima sobre o que passa na cabeça de qualquer pessoa desse mundo. Todos pensam muito sobre tudo, o que significa que não pensam nada sobre nada. A única pessoa a quem eu daria explicações, pediria desculpas ou coisa que o valha seria Beatriz. Mas me senti aqui tocado pela sua carta, veja só, a segunda que recebo da senhora em tão pouco tempo. Há anos não recebia nada, como já disse, e pela segunda vez recebi seu envelope verde, o que provocou em mim uma reação bastante curiosa. E é a essa reação que se deve minha demora em respondê-la.

Ao receber seu envelope verde, senhora Helena, não senti medo. Não, desta vez não senti nenhum medo. Ao contrário, senti vontade de cantar. A senhora canta, senhora Helena? Eu não canto. Nunca. Sou incapaz de emitir um arrulho sequer, ou mesmo um som gutural, ou mesmo de movimentar os lábios para qualquer lado com a pretensão de que deles saia uma melodia. Uma vez minha mãe fez uma competição em casa, senhora Helena. Éramos cinco irmãos, eu o mais velho, depois duas meninas, depois outros dois meninos. A competição consistia em cada um cantar a melodia que mais lhe agradasse e, pelo voto direto de todos, o que melhor desempenhasse a função de rouxinol-mirim ganharia um mês de sorvetes e uma semana sem fazer as lições de casa, que seriam realizadas por minha mãe. Evidente que meu pai não imaginava nada disso. Na minha vez de cantar, senhora Helena, emudeci. Minha boca ficou presa na forma de um “o”, e era impossível movimentá-la. Passei três dias assim, senhora Helena. Uma paralisia, que gerou muitas visitas médicas, cerca de duas mil injeções de um líquido amarelo em minhas nádegas e o pânico eterno de cantar. Esse pânico ainda se tornou maior e se transformou em vergonha já que meus irmãos, depois do fatídico, para mim, concurso caseiro, formaram um grupo vocal, agraciado em Viena como a maior revelação da música erudita na Europa. Desde então, não canto.

Sua carta, então, me deu vontade cantar. Sentei na escada do meu edifício, senhora Helena, respirei fundo e, sem me dar conta do que fazia, era Charles Aznavour e cantava Que C´est Triste Venise. Cantei, senhora Helena! E os vizinhos abriram as portas, e mesmo assim eu não me sentia intimidado, e todos olhavam admirados, não sei se por alguma eventual qualidade musical ou pelo estranho fato de alguém como eu, segurando um envelope verde, cantar Que C´est Triste Venise, sentado na escada. Ao fim, senhora Helena, aplaudiam. Aplaudiam-me com fervor. E ouvi alguém gritar “bravo”, e alguém me jogou flores do último andar. Eu era Aznavour, senhora Helena. Eu cantei. E foi sua carta que me fez cantar. Mas fiquei sem entender porque Que C´est triste Venise. Nunca fui a Veneza. Mas subi, senhora Helena, em meio aos abraços efusivos dos vizinhos, e li sua carta, e agradeço por querer me ajudar a encontrar Beatriz. Não creio que isso seja possível. Reencontrar Beatriz. Mas decidi algo. Vou a Veneza, senhora Helena.

Há anos não saio deste cubículo em que vivo, nem desta cidade. Vou tomar um trem, porque não tenho pressa, as pessoas sempre têm muita pressa e eu não tenho nenhuma. Não admito viagens por avião. Toda viagem deveria ser por terra, para que se perceba o deslocamento do tempo. Enfim, vou a Veneza.

Se me permitir, enviarei nova carta. Não sei se lhe incomodarei.

Ia falando tanto de mim que quase me esqueço de algo que realmente me causou surpresa, até estranhamento. Senhora Helena, eu lhe afirmo que nunca, jamais, enviei uma carta sequer em envelope cor de vinho. Não sou afeito a esses caprichos, senhora Helena. Meus envelopes, digo novamente, são como eu: sem cor. São sempre brancos. Completamente brancos. Não creio que seja daltônica. Mas nunca utilizei envelopes cor de vinho. Não compreendo. Não compreendo porque me dizes que os meus envelopes são cor de vinho.

Outra coisa: surpreende-me também a qualidade de sua escrita em francês. Pude deduzir que é brasileira, mas que lindo seu modo de escrever em francês. Nem Blanchot o faria tão bem. Já viveu em França?

Um abraço,

H.