IDENTIDADE

Rosas amarelas era isso o que ela queria. Dúzias delas para espalhar pelos quatro cantos da casa, do mundo. Queria respirar perfumes exóticos e banhar-se em águas coloridas. Queria vida. Buscava no outro o que nela minguava. Colhia cada gota de chuva como se fosse um licor e embebedava-se dele. Passos de bailarina se perderam no tempo. A marcha era outra, um pouco dura, um pouco claudicante. Mas caminhava, sem parar. Entrava dia e caía noite. Seus olhos miravam à frente procurando a vida que viria. Ah, sem dúvida, viria. A Vida apaziguada, ela queria agora uma vida apaziguada. Com os medos resolvidos e as dores anestesiadas ela podia dizer-se: estou pronta para a terceira vida em mim. São tantas e foram tantas as mulheres que viveram nela. Descascava-se agora como fizera com a cebola graúda que pusera no arroz. Chorava. Tirar as cascas sempre pressupõe dor. Em silêncio o fio amargo corria pelos olhos cerrados. Ela, que era doce, amargara. E não se dera conta quanto. Pensava nos enganos e nas noites escuras. Só e sombra. Era como um ponto final na luta contra o que já sabia perdido. As cascas no lixo existencial, as cascas apodreceriam. O miolo ah! esse estava vivo ainda e palpitava. Ela pensava no que fazer com a vida recolhida. E retirou-se em seu castelo. Como fizera em criança se olhava no espelho do móvel antigo. Via tantas faces. Brincava com as faces diversas. Olhava para os espelhos que a multiplicavam e escolhia a face preferida. Qual seria a dela de fato? A do espelho multifacetado? A da foto? A do quadro? Ganhara outra face. E as demais subsistiam ainda, ainda?!

***

PIETÀ

Não sabia quando começara a verter lágrimas grossas, cumpridas, pesadas. Sabia que de seus olhos antigos brotava um líquido contínuo e doce, e, às vezes, salgado como se fosse água do mar. Chorava ou destilava dor? Se parasse esse fluxo, explodiria ou incharia como um balão de gás e se perderia entre as nuvens num voo sem rumo? Não sabia dizer e por isso continuava sua missão: chorar e secar até que o algodão ensopasse e a vida lhe desse uma trégua. Pensava ser impossível ter tanta água em seu corpo esmirrado. Seria um desígnio de Deus condensar em seus olhos essa água sem fim? Deveria pagar alguma promessa esquecida? Reparar algum erro ancestral? Um crime, traição, algo inominável? Por que chorava a mulher? Nenhum parto a fizera chorar assim, algum aborto teria rasgado sua alma a ponto de chorar a vida arrancada? Ou um amor afogado na taça egoísta de um orgasmo solitário? Mentiras são lavadas na água corrente? Um passo mal dado, um decote mais ousado, alguma rasura no caderno, algum deslize na cozinha? Não sabia dizer, mas o choro não era visto por mais ninguém além dela. Saía pelas ruas e os conhecidos a cumprimentavam normalmente. Aos amigos, ao padre não tinha coragem de confessar. Era uma coisa tão sua! Travesseiro, colchão, lençol, esses eram testemunhas do choro noturno. Um filho poderia entendê-la, mas eles estavam longe… Um marido, um amante, mas eles seguiram outro caminho quando o viço secou no seu rosto… Seu rosto seco no espelho. Ali ela via as lágrimas escorrerem, ali ela lavava o choro e secava o caminho sulcado na pele flácida. No espelho procurava respostas e engolia as perguntas confundidas com o choro. Por quê? No espelho via uma escrava amamentando o filho do senhor, ela também chorava, chorava leite e lágrimas, seu filho lhe fora tirado para servir na casa grande. Via a judia no campo de concentração que chorava a separação de seus filhos e o extermínio de seus irmãos. Via

Maria que chorava seu Filho Crucificado. Mulheres choravam às portas das fábricas. Ofícios perdidos. Mulheres choravam nos escombros dos terremotos. Filhos perdidos. Mulheres mortas por serem bonitas demais, inocentes demais, frágeis ou fortes demais. Vidas perdidas. Todas no espelho. Ela ficara para chorar por todas elas. Nesse momento as mulheres tomavam seu rosto e choravam no espelho. Do lado de cá, pela primeira vez, seus olhos secos se iluminaram. Ela entendera sua missão.

(Publicada na Revestrés#28 – Dezembro 2016/ Janeiro 2017)