Ontem à noite, de repente, os cães latiram fortemente.

Não sei se prenunciavam algo ou se apenas reagiam a uma ameaça invisível. Aconteceu no dia seguinte à interdição da ponte velha, quando decretaram que ninguém poderia atravessá-la.

Não eram apenas os da vizinhança. Dava pra ouvir os ganidos desesperados do outro lado do rio. Aquela agonia me deixou devastado. De repente silenciavam, mas era só para, em seguida, começar tudo novamente, como se atendessem a um comando.

E agora estou aqui, com o ouvido colado, tentando ouvir sua respiração.

Tudo isso eu ouvi de dentro do meu quarto, pela janela lateral, de onde eu não podia sair. Estranhei o fato de não haver sinais de vizinhos acordados pelos latidos desesperados dos cães. Digo isso porque nas outras torres do condomínio nenhuma luz se acendeu. Quando silenciaram de vez, voltei a dormir e me agarrei na esperança de que com os primeiros raios do sol a vida seguiria seu curso normal.

Mas o sol não veio.

Acordei por volta das nove da manhã e pensei que ainda era noite. Que eu tenha testemunhado, aquilo nunca acontecera antes, a não ser pelas histórias do meu avô sobre uma noite escura e longa que eles atravessaram solitários.

Só me dei conta do que estava acontecendo quando olhei pela janela e me deparei com a grande quantidade de caminhões perfilados. Aos poucos eles iam estacionando ao longo da rua, de um lado e de outro, todos com os faróis ligados, o que me fez lembrar a procissão do fogaréu por ocasião das comemorações do senhor morto na minha cidade natal. Sequer desligaram os motores, a julgar pela fumaça que saía pelo escapamento. Sobressaltado, me dirigi à porta, mas não pude sair, não conseguia abri-la totalmente. Havia uma borboleta gigante impedindo minha passagem e ela ocupava quase toda a extensão do corredor. Negra como o breu do asfalto, exceto pelos pontinhos avermelhados que julguei serem os olhos, se é que borboletas possuem olhos. Não deu pra saber se estava viva ou morta. Por um impulso vindo não sei de onde, fechei a porta imediatamente. E agora estou aqui, com o ouvido colado, tentando ouvir sua respiração. Não tenho certeza, mas algo me diz que outras borboletas gigantes e negras como a noite, mesmo mortas, avançam rapidamente. São tantas que umas se amontoam sobre outras. Nessa altura, mesmo se eu quisesse abrir a porta, não conseguiria.

J.L.Rocha do Nascimento é contista, poeta, professor da Uespi e juiz do TRT. Filho de Oeiras, é membro do grupo Confraria Tarântula de contistas e do grupo Juízespoet@s, com os quais publicou diversos livros. Autor de Um clarão dentro da noite e Os pés descalços de Ava Gardner.

Publicado em Revestrés#49.

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