Como português, neto de Vicente, não tenho futuro. Encerrado na água-furtada de São Jorge, indago se teria sido no passado um navegante ou um poeta que mesmo sem o dom da escrita, semeara em torno palavras incandescentes, todas sem dono. 

Sob o abrigo da imaginação, que é minha morada, percorro as vielas pisadas pelos miseráveis que me antecederam em Lisboa. Em frangalhos, eles, como eu, lusos anônimos que morreram sem deixar pistas, e apiedo-me. Nestes momentos consola-me ter lido de forma quase desumana o poeta maior da língua, sob a vigília do professor Vasco, que não sei se ainda vive, a quem nunca paguei tributo por me ter ofertado Camões e o Infante D. Henrique. 

O poema interminável de Camões que encerra nossa história, apontado pelo professor como salvador da pátria, infernizou-me no início. Segundo o mestre, havia da parte do vate o deliberado propósito de erigir um inexpugnável muro em torno com o propósito de ser galgado e vencido com garra e então chorar. Graças ao Infante ter confirmado a grandeza das aventuras marítimas, o poema de Camões poupou-me do sacrilégio de odiá-lo. Isso constato nos dias de agora, e mais tarde, o significado de ser parte desta lamurienta humanidade. 

À noite, ora jovem e ora velho, forçado pelos anos, gostava de esticar o corpo no colchão e apagar os indícios da vida. Como fosse, eu trazia o estigma do vencido, ciente, no entanto, de ter salvo do naufrágio o longo poema da lavra de Camões que não escrevi. Esquecido ele de resgatar da morte a escrava Bárbara. 

Releguei, como ele, as mulheres à perdição. Em prol de Os Lusíadas prestes a ser concluído, deveria ela ter sobrevivido. Logo quando estava o poeta a embarcar em uma viagem que o levaria alhures, até ocorrer o naufrágio. Mas como ele, ao salvar-se e deixar Bárbara sucumbir, também terei eu feito ao longo da vida as escolhas corretas, privei-me de critério moral? 

Fui débil sempre, uma franqueza vinda da mãe que me odiava. Não tenho, porém, como redimir-me. Salvar a mim e a Bárbara. Sem troféu, pois, sigo para o inferno. Nada sou além de mim mesmo. Caso em meio a um surto proclame ser Camões, nada roube dele. É um direito conferido a qualquer português. Quem nasceu onde seja desta terra ganhou do Poeta um certificado de senhor da língua. 

Com certo rasgo de euforia, eu amanhecia no mercado à procura de trabalho, pronto a oferecer o corpo jovem. Extraía então as escamas, as guelras, as vísceras dos peixes que, antes de serem colhidos pelas redes, debateram-se agônicos em nobre batalha. E tão briosos foram que mereciam ser inscritos nos frontispícios da história. 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Nélida Piñon | Foto: divulgação

Nélida Piñon é a primeira mulher a presidir a Academia Brasileira de Letras (ABL). Em 2005, pelo conjunto da obra, recebeu o Príncipe de Astúrias. Em 2021 , comemora os seus 60 anos de literatura desde a publicação de Guia-mapa de Gabriel Arcanjo (1961). Doutora honoris causa de importantes universidades, como Florida Atlantic, Montreal e Santiago de Compostela.

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Esse texto é o Fragmento 33 do romance Um dia chegarei a Sagres (Record, 2020), de Nélida Piñon. 

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