E lá estavam os dois respirando o ar engordurado daquele restaurante de beira de estrada, Ingo com sua azia de estimação, Miguel com uma carga de pressentimentos que lhe chegava a pesar nos ombros. Aos poucos, o local começava a se esvaziar. E nada que mereça ficar para a história ocorreu até perto da meia-noite.
Nessa hora, as carretas que traziam os componentes eletrônicos do Amazonas entraram no posto de combustíveis e se encaminharam, lentas e majestosas como dois paquidermes amestrados, rumo ao estacionamento. Ingo se mexeu na cadeira, inquieto. E soltou um palavrão quando, grudado nas carretas, passou um carro de escolta, um Chevette, com quatro marmanjos de boné e, na certa, armamento pesado a bordo.
E não foi só isso.
E nada que mereça ficar para a história ocorreu até perto da meia-noite.
Também chegou ao posto um caminhão do Exército, que, antes mesmo de parar por completo, despejou da carroceria uma dúzia e meia de soldados armados com fuzis automáticos, que se espalharam em busca de posições estratégicas. Ingo tocou o estômago e deu um gemido.
Fodeu, Miguel.
É com a gente?
Pode apostar que é.
Por instinto mais do que por coincidência, ambos pensaram nas armas no porta-malas do carro, o que fez com que olhassem ao mesmo tempo na direção do estacionamento – para descobrir que o Opala vinha recebendo mais atenção do que deveria do oficial coxo e de seus recrutas; um deles espremia o rosto contra o vidro do para-brisa, tentando enxergar o interior do veículo. Ingo se virou para Miguel:
Caímos numa ratoeira.
Três outros militares se acercaram do capitão, trocaram continências e o grupo se concentrou na parte traseira do Opala. Por fim, um civil usando paletó e gravata se juntou a eles, um gordo com uma submetralhadora presa ao ombro por uma alça.
Ingo reparou que o recruta tinha se agachado e inspecionava debaixo do veículo com uma lanterna. Não ia demorar para encontrarem a escopeta e a pistola escondidas no porta-malas. Ele questionou Miguel:
Qual é a situação do carro?
Ainda tá com a placa original. Puxei hoje cedo de um estacionamento no centro.
Era verdade, ao menos em parte: na manhã daquele dia, Miguel recebera as chaves e se apossara oficialmente do Opala no pátio central da polícia. Ninguém poderia ter dado queixa de furto.
Ingo coçou no queixo a barba que despontava. Uns fios avermelhados. Entre as pernas de Nádia, os pelos também eram avermelhados. Lembrar disso causou um sobressalto em Miguel. Um estremecimento. Ingo notou, e confundiu com uma reação de nervosismo diante da situação que enfrentavam.
Miguel, eles não sabem quem está com o carro. Vamos esperar pra ver o que acontece.
E o que aconteceu a seguir não serviu para tranquilizar ninguém. Ao contrário: deixou os dois num estado ainda maior de tensão. Acompanhado de alguns soldados, o capitão postou-se na porta do restaurante, onde deu início a uma operação pente-fino, abordando quem saía. Estava em busca do dono do Opala.
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Trecho de “Baixo esplendor” (2021) romance de Marçal Aquino que marca a volta deste autor à cena literária, dezesseis anos depois do sucesso de Eu receberia as piores notícias dos seus lindos lábios.
A história de “Baixo esplendor” se passa no ano de 1973, um dos períodos mais duros da ditadura militar no Brasil. Miguel é um agente do setor de Inteligência da polícia civil que se infiltra em quadrilhas sob investigação. Ele se aproxima de um grupo de ladrões de carga, tornando-se íntimo de Ingo, o chefe, que não só apadrinha sua entrada no bando como lhe apresenta a irmã, Nádia, com quem Miguel inicia um relacionamento.
Marçal Aquino é jornalista, escritor e roteirista de cinema e TV. É paulista e tem obras lançadas em vários países. Entre seus livros estão O amor e outros objetos pontiagudos, Faroestes, O Invasor e Eu receberia as piores notícias dos seus lindos lábios.
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Publicado na Revestrés#50.
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