Uma pessoa pode molhar o beijo em batom e queimar as lentes de contato azuis numa redoma de kohl. Essa mesma pessoa pode ser estonteantemente sexy, viver alheia numa nuvem de patchouli e se chamar Alice. E você pode passar as noites de sábado montando a criatura como se ela fosse a Barbie. E era isso mesmo que eu fazia com Alice Cooper, meu namorado. Todos os brilhos e cintilâncias que eu repudiava, essas coisas que não cabiam na minha vida ascética de estudante de sociologia, eu deixava pra Alice. 

O único problema, ao menos no começo, foi onde. Na moradia estudantil era impossível. Recitávamos O Capital em leituras coletivas e eu disfarçava Reich em papel pardo. Então me movimentava numa vida dupla bandeirosa, fazendo o possível pra não esfregar na cara dos companheiros que eu tinha desbundado, era outra e meu entendimento do mundo ia além do que a gente aprendia nos livros e na sala de aula. 

Eu dividia Marx e Reich com uma boneca enorme, linda, de cabelos mais macios que um comercial burro de xampu. Eu queria ser muito burra de vez em quando. Nas madrugadas das sextas e sábados, das quatro às dez da manhã, por exemplo. Quando a gente voltava da rua cheias de tesão, se agarrando pelas escadas dos apartamentos de alguém. Nessas horas eu preferia não ser inteligente porque eu só sabia gozar bem burrinha e Alice era sexy como um Frankenstein montado com as partes de Marilyn Monroe, David Bowie e Mick Jagger. Então vocês imaginem que loucura era Alice. 

 

Daí a gente se amava feito loucas porque sabíamos olhar no âmago da outra e entender que catzo se passava no planeta. Esse há muito tinha perdido o eixo e vagava num limbo de ácido lisérgico e slow motion. Cabia a nós agitar com que houvesse à mão. Eu temperava meus dias com inteligência e burrice. Já Alice nunca dizia a verdade. 

Em um fim de semana, Alice sumiu. Reapareceu em um apartamento de nossas relações. Como eu estava mal e ela toda bela, resolvi ficar inteligente. Cobrei de Alice coerência e ela me veio com uma história ridícula sobre ter andado em Paris. E tirou da bolsa um frasco de perfume barato dizendo que era um presente comprado em Montparnasse. Espumei, mas não era do meu feitio perder a pose. Em vez, rasguei a fantasia. 

“Alice, você não passa de um mentiroso compulsivo, um travesti ridículo, um alienado. Tô cheia, vou procurar alguém de verdade.” 

Ele, minha Alice, minha primeira Barbie, me olhou como quem faz um favor. Em seguida, arrastou as plataformas até o banheiro e sacou o batom da bolsa. Fiquei olhando encostada à porta, pequena e arrependida. Retocou os lábios, apreciou o resultado e sussurrou pra que eu tivesse que me esforçar pra ouvir. Falou para si do outro lado do espelho: 

“Mas Alice, eu já disse que não sou mitômano”. 

Lavou o rosto, ajeitou as bolas e se apresentou: 

“Marcelo, estudante de cinema. É que eu gosto de fantasia, não sou veado.” Em seguida, improvisou um riff de guitarra no ar e cantou à Robert Plant: 

“E você, beeeibe, já virou passado, oh yeah”. 

Meu primeiro namorado era Alice Cooper, David Bowie, Mick Jagger e Jim Morrison comendo Marilyn Monroe ao mesmo tempo. Então vocês imaginem que loucura ele era. Eu e Marcelo ficamos por ali mesmo, reféns de Alice. Uma paixão dessas, nunca mais.  

Neuza Paranhos é tradutora, escritora e jornalista. Publicou Avenida Marginal (Com-Arte), além de contos nas revistas Cult e Ciência e Cultura – SBPC, jornal Rascunho e Jornal Le Monde Diplomatique. Vive em São Paulo com gatos, cachorros e marido.

 Publicado na Revestrés#38 – novembro-dezembro 2018