Vício Maldito! 

O marido, que não fumava,

saiu no meio da noite pra comprar cigarro.

Voltou dez anos depois, com câncer nos dois pulmões. 

 

O amor 

Amaram-se como se fosse a primeira vez.

E era a última. 

 

Caligrafia 

Voltou dos braços da amante decidido a propor divórcio.

Encontrou a casa vazia e um bilhete na porta da geladeira.

Chorou só de ver a letra. 

 

Os mortos não envelhecem 

Meu pai me olha do porta-retrato, jovem para sempre.

Sorri, mas vejo nele o horror de quem olha um velho que outro dia carregou no colo. 

 

 

O amor quando acontece 

Não fez as unhas, não se depilou,  não vestiu a lingerie de renda preta.

E amou-se loucamente a noite inteira. 

 

A onça 

Debaixo da cama a onça velava o sono do menino.

Ontem voltei à casa de infância:

a onça já não tinha dentes;

os pesadelos comeram-me a alma. 

 

Mãe da Praça de Maio 

Não dormia enquanto o filho não chegasse.

Então, uma noite, nunca mais dormiu. 

 

O senhor tolere, isto é o sertão 

O barulhim das’água dum riacho seco,

o estrebucho do sapo no bucho da cobra,

o zunir de grilos e tiros:

Deus, armado, a mando do Demo… 

 

Os amantes da Terra Redonda 

Despediam-se com lágrimas de nunca mais, quando um deles lembrou:

– A Terra é redonda!

E sorrindo seguiram então em direções opostas. 

 

 

O baile 

Os dedos dele nas frestas do meu vestido e eu rezando:

Deus, que a orquestra não pare, que não venha a manhã, o amanhã, os filhos, a vida. 

 

Coração materno 

Nada mais triste que a mãe enterrar o filho.

Mas aquele bem que mereceu: ele já com a boca cheia de terra, e ainda me xingando com os olhos. 

 

Partilha 

Na separação, eu e o cachorro ficamos com meu pai;

minha irmã e o gato, com minha mãe.

E cada um de nós passou a ser só metade. 

 

Um homem e sete destinos 

Tinha vários destinos à sua escolha.

Quis o destino que escolhesse o pior de todos. 

 

Paixão e fé 

Eu de joelhos, rezando, ele vem, levanta meu vestido, rasga, me pega por trás, bate na minha bunda,

não, ele não vem,

e eu de joelhos, rezo. 

 

Querido Papai Noel 

Eu quero um sapatinho daí no outro natal o senhor me dá a janela pra botar o sapatinho e quando puder o senhor põe um brinquedo no sapatinho.

 

Matadouro 

O patrão botou a culpa em mim,

mas os bois e as vacas é que tramaram tudo.

Ah! Deu gosto ver a carinha de alegria deles na hora da fuga… 

 

Dia dos namorados 

Comprou três calcinhas idênticas, mas de numerações diferentes.

Agora espera uma namorada.

Qualquer uma: P, M ou G. 

 

 

O fim do mundo 

Soube, por fonte segura, que o fim estava próximo.

Bebeu, fumou, cheirou, chorou, trepou, comeu, fodeu e deu.

Até hoje processa o profeta. 

 

O microconto do século 

Queria escrever o romance do século.

Mas quando o avião começou a cair, só teve tempo para o microconto. 

  

* A coletânea que você lê agora foi extraída do livro estórias mínimas, de microcontos de até 140 caracteres. 

José Rezende Jr é mineiro de Aimorés, radicado em Brasília. Ganhou o prêmio Jabuti com o livro de contos Eu perguntei pro velho se ele queria morrer (e outras histórias de amor). Tem seis livros publicados, entre os quais o romance A cidade inexistente, finalista do Prêmio Oceanos e do Prêmio São Paulo.

Publicado na Revestrés#47. 

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