O jardineiro Hernandes chegou caminhando à delegacia, as criaturas do subsolo repudiando suas pisadas no chão.  

Depôs a arma nua na mesa do delegado ao modo amigável dos vencidos.   

O velho sob o chapéu conhecia Hernandes. Vira brotar todas aquelas almas do povoado, parto a parto. “Achei que conhecia um e todos”, pensou, “mas ninguém conhece ninguém”. Convencido de que essas diferenças fazem o planeta girar, abriu o ventre da arma e deu por falta de uma das seis pétalas. Quando girou o carrossel, o odor da morte tomou o recinto com sua alfazema.   

O cabo, deitado no quarto ao lado sonhando com fugas, tossiu.   

“Atirei na menina, capitão”, disse o jardineiro, os braços vencidos ao longo do macacão azul, os olhos afogueados, o suor empapado sob o queixo.   

Lá fora um rastro de gelo queimava a relva, cruzava a ponte, asfalto, areia, até onde um corpo adormecia vigiado por sombras.  

Imagine quando brotasse o amor daquele botão

“Por qual motivo, Hernandes? Diga-me para a Terra continuar a girar, aqui.”  

“Ia completar doze anos. Todos sabem: essa é a idade em flor das africanas. Elas ficam tão lindas que a gente esquece a cor, não é verdade? Seus peitinhos ficam tão duros, os lábios vermelhos, seus olhos faíscam. O patrão mesmo gostava de cochichar inglês e outras línguas, a linguona no ouvidinho, a menina no colo dele o tempo todo; e já nem se envergonhava disso. E eu? Eu não podia? Ora, somos iguais. A escravidão acabou.”  

O jardineiro continuava: “Ah, não aguentava mais resistir a ela. Durante a noite, a pretinha não me deixava dormir, sonho sobre o outro. Estava cansado de amolecer diante daquela obra-prima da criação.”  

Não parava: “Além disso, estranho pedido me faziam: ‘Mate a negrinha’. O jardim inteiro gritava: rosas, hortênsias, as mulheres com nome de flores: ‘Mate a negrinha. Não tem o direito de ser bonita desse jeito’. Então, eu atirei nela.”  

Entregava-se.   

“Alguém tem de barrar certas belezas. Imagine quando brotasse o amor daquele botão”, repetia Hernandes, dia e noite, encarcerado por sombras no lodo da cela, sonhando com rosas brotadas de cadáveres na primavera, enquanto nasciam cada vez mais flores negras entre os cardos , à beira da estrada. 

 

Sidney Rocha é cearense de Juazeiro do Norte e mora em Recife. É autor dos romances Sofia, uma ventania pra dentro (1994), Matriuska (2009) e O destino das metáforas (2011), pelo qual recebeu o Prêmio Jabuti na categoria Contos e Crônicas.

Publicado na Revestrés#34 – Janeiro-fevereiro de 2018.