Ela repousava na banheira quando ficava feliz. O meu pai que contava. Contava que depois do repouso ela pingava seiva de alfazema nos pulsos e atrás das orelhas, que atrás das suas orelhas havia cachoeiras, que pratarias saltavam à superfície para reverenciar o sol. Contava que depois ela vestia o penhoar de seda com tanto zelo, que até as formigas interrompiam o obstinado trabalho para observá-la, como se quisessem aprender mais sobre a meticulosidade dos gestos. Contava que depois ela o aconchegava no colo de modo que a principal paisagem fosse o seu seio esquerdo. Descrever o sentimento diante de tal paisagem lhe era impossível, mas eu insistia, conta pai, conta pai. E então o meu pai contava, esboçava uma tentativa, para que eu também conseguisse repousar, era só assim que eu conseguia. Quando o meu pai contava que ali era como viver no tempo das primeiras montanhas, no tempo Daquele que não posso escutar o nome, no tempo Daquele que o meu pai conheceu no colo dela. O meu pai contava que o colo dela era um altar, um altar que não tinha sido construído por homens, mas erguido com o hálito das luas. Que ali aconteciam coisas aparentemente estranhas, quer dizer, estranhas para os outros, os que se arrastam procurando com desespero se desvencilhar dos seus vazios. Já para o meu pai tudo era ninho habitado, tudo ali lhe era harmoniosamente familiar, cada fresta dos tacos encerados, cada videira estampada nas cortinas. Se havia mistério, era só pelo deslumbre das velas, que apesar de serem muitas e estarem todas acesas, só provocavam o essencial das sombras. Mas que se caso surgisse um excesso, por descuido repentino do seu olhar, ou por artimanha da própria epifania, ainda assim seria apenas para a consagração do fogo. O meu pai contava que ali se vivia numa sucessão de eternidades, e que mesmo depois, quando ela fechava o penhoar de seda e guardava o seio esquerdo, quando ela acomodava a cabeça do meu pai no travesseiro com igual zelo, quando ela apagava vela por vela sem nenhum vestígio de pressa, que mesmo depois, quando a luz encontra todos os motivos para sentir saudade de si mesma e se transformar em melancolia, mesmo depois, o leite passava a escorrer delicadamente pelas paredes do quarto, passava a pingar como chuva na janela, e com a música, essa sim absolutamente indescritível, trazia de longe um sono de amor e morte para os dois. E então eu insistia, pai, pai, por que eu nunca vi ela assim? Por que eu nunca vi a minha mãe feliz? E o meu pai sempre me dava a mesma resposta: Porque ela não te ama.

*(fragmento da peça – inédita – Amadeleite  – a ser publicada em 2017 pela Carniceria Livros)

(Publicada na Revestrés#28 – Dezembro 2016/ Janeiro 2017)