Um casal reencontrava-se um ano em vez, para noticiar a vida. Naquele dia especificamente, ela se pesou na cama, contando os fardos. Ele mal escutava, empolgado em compreender a logística da divisibilidade humana, e ela, desconfiada de ausência, lhe acarinhou as costas frias. 

– Isso não faz mais sentido. 

– Isso o quê? 

– A gente. 

– Foi você quem me ligou. 

– Não ligaria? 

– Talvez. Nunca passamos de ano. 

– Seria melhor que não tivéssemos combinado. 

– Nunca chegamos a combinar… quem disse? Afinal, nem lembro. 

– Faz quantos anos? 

– Três, que você foi embora. Cinco de namoro. 

Ele sempre silenciava primeiro. Apesar do tempo ido, sua maneira de evitar falácias à beira dos choques da convivência era o que fazia Fernanda se reapaixonar. Fosse insensatez, e era, cedeu a mais uma paixão de duas horas. Mas em seguida, cheia de orgulho, prometeu em nunca mais. 

Passaram-se dois, três, quatro anos, e ele simplesmente não a solicitou. Fernanda lembrou-se dele vez ou outra, como quando comprou um apartamento ou passou num concurso, em que teve reprimida vontade de compartilhar, quem sabe, alguma parcela de felicidade. Só que havia o marido, sempre presente; com ele viajava ou ia jantar fora em celebrações como essas. 

Certa ocasião, no supermercado, enquanto escolhia o leite do Lucas, alguém esbarrou seu carrinho no dela. Sem tirar os olhos da prateleira, Fernanda apenas aconchegou o carrinho para si. Alguém se rebelou: 

– Vai mesmo fingir que não me conhece? 

Ela se virou, realmente apertando os olhos. Depois de relutar contra a memória, cumprimentou-o sem muita lisonja. 

– Vejo que está bem – ele parecia decepcionado. 

– Não lembro quando não estive. 

– Quer tomar um café ao sair daqui? 

– Meu marido vem me buscar. 

– Pra quê essa mágoa? 

– Quem disse que estou magoada? 

– Não quer falar comigo. 

– Você que nunca mais… – hesitou, a criança. 

– Seu marido me atendeu da última vez, me ameaçou de morte – sussurrou. 

– Quê? 

Ficou de face acinzentada; olhou-o profundamente no intuito de verificar em qual parte do rosto a mentira se denunciava. Ele, no costume, calou-se de olhar rijo, tipicamente omisso e sedutor. Antes de se retirar, deixou em sua mão: 

– Este é o meu cartão, caso precise de móveis projetados. 

Fernanda observou-o ir. Continuou ali, colocando os suprimentos necessários no carrinho, contendo Lucas para não quebrar nada. Pouco depois, tirou o cartão do bolso e o rasgou. 

– Não mexa, meu filho, isso é lixo. Dos piores. 

O marido chegou quando já estavam na fila do caixa. Ao colocarem as compras na sacola, depararam-se com uma briga dois caixas após. Uma mulher esganiçada esbofeteava o peito de um homem; este parecia alheio, tanto aos golpes como ao resto do mundo. Era ele, o bonito, alguém quase ninguém. No instantâneo, recordou-se: anos atrás lá estava ela, lidando com um sociopata, culpando a si pelos erros dele, completamente desvairada pelas inverdades que ele conduzira. 

A família foi embora pela saída oposta, queriam evitar a vergonha alheia. Em casa, inconformado e ainda tonto com o que vira, seu marido disparou: 

– É incrível como alguns homens não sabem cuidar de suas esposas, não é, meu amor?

Vanessa Trajano é escritora e professora de língua portuguesa com mestrado em estudos literários pela Ufpi. Possui 10 publicações, entre elas Mulheres Incomuns (2012), Poemas Proibidos (2014) e Ela não é mulher para casar (2019).

Publicado na Revestrés#40 – março-abril de 2019.