(Texto publicado na Revestrés #21 – Edição Renato Castelo Branco – 2015)

Rio de Janeiro. Janeiro escaldava.

Não precisou do despertador. O verão entrava em seu quarto como uma bola de luz. Eram ainda sete horas e já acordara, embora permanecesse no leito, enrolado numa preguiça mortal: sentia-se estafado, como se não tivesse dormido toda a noite, sono pesado, roncando. O corpo mole, suado, surrado. Uma moedeira. Olhou para a janela entreaberta, por onde entrava um mormaço leve. A cortina, de voil fino, transparente, parecia de mármore, impassível, imóvel. Não teve ânimo de levantar-se, e esperou que ela chegasse. Depois da troca de cumprimentos – Oi, – Oi. – foi ao banheiro, urinou fartamente e, por hábito, escovou os dentes. No espelho do armário em cima da pia, um rosto cansado revelava rugas desconhecidas, uma calvície acentuada e olhos avermelhados. Lavou-se, mas não se livrou da imagem. Quando voltou ao quarto ela, como de costume, já o esperava sob os lençóis. Embora se contassem como vários anos daquela convivência, ela não se sentia totalmente livre para ver-se nua, nem gostava quando ele exigia que caminhasse pelo quarto, embora caminhasse, nua, atendendo à sua ordem. Sabia que a implacável trajetória do tempo havia autografado seu corpo, sentia-se gorda, volumosa mesmo. Ele sabia disso, porque esta cena se repetia sempre, toda segunda-feira, sem variações, como uma peça de teatro sem improvisos nem cacos. Era um ato, invariável, pronto, irretocável. Digamos assim: uma cena de filme, definitivamente aprisionada pelo celulóide. Como sempre ocorria, deitou-se, submergiu nos mesmos lençóis e esperou que ela o tocasse. Os dedos da mulher passearam pelos caminhos do quotidiano e terminaram no seu sexo, apalpado, acariciado e, finalmente, masturbado. Quando a ereção se impôs, ele envolveu em suas mãos a cabeça da mulher e lentamente a foi arrastando até que seus lábios absorveram o pênis intumescido. Abriu as pernas e nela repousou a cabeça da mulher e se amaram profundamente, as mãos dele segurando-a pelos cabelos, recomendando que tivesse cuidado com os dentes para não machucá-lo. Ela o sugava e envolvia seu sexo com uma saliva morna. Gozou. Virou-se de lado e voltou a cochilar, uns dois, cinco, uns poucos minutos. Levantou-se e foi ao banheiro barbear-se e banhar-se. Ela permanecia na cama, olhando para o teto. Henrique aprontou-se e se despediu.

– Quando sair, não se esqueça de bater a porta.

Lá em baixo, na portaria, ao deixar o elevador, sentiu-se completamente cego. Era uma manhã de lata, cheia de luz, faiscante, reluzente, brilhante, agressiva, soprano. O sol agudo batia em seus olhos, furava suas pupilas e ia mexer com o mais recôndito de sua alma como dardos envenenados, microscópicos dardos, incontáveis dardos, multidões de dardos, dardos vermelhos, dardos amarelos, dardos luminosos, dardos perfurantes dardos girassóis vangogueanos. Doía. Cobrindo os olhos com as mãos, tentando proteger-se contra o despotismo do branco, suando de novo, atravessou a calçada em busca da parada de ônibus, paletó dobrado no braço, laço da gravata desfeito, colarinho aberto, o lenço enxugando o suor da testa.

Quando pôs os pés no asfalto sentiu o chão mover-se. Com as duas mãos fez uma aba, para proteger-se da luz e olhar para a esquerda, no sentido do trânsito, para poder atravessar. De nada adiantou. O Gávea-Central vinha a toda velocidade, como um bólido.