(por Márcio Trigo)

 

No dia da morte de Demo, o sol, como que saudando a boa notícia, brilhava intensamente emoldurado pelo céu azul, limpo de  nuvens.

Tudo partiu do serviço de inteligência da polícia militar. Acertaram a hora e o local. Dizem que foi obra de xis-9, o cara tinha muitos inimigos. Também não era para menos, Demo era considerado pelos amigos, se é que havia algum, o mais cruel e sanguinário traficante que passou pelas favelas do Rio. Ninguém escapava do seu apetite por sangue. Ele tinha prazer em esquartejar os inimigos. Até os parceiros que vacilavam sofriam as piores torturas em suas mãos. O ódio que ele trazia era coisa de alma ruim, vinha de vidas passadas, diziam alguns. Outros costumavam dizer que sua mente era doente. O fato é que, naquela manhã, o Rio acordou mais leve. Demo, com apenas 18 anos, comandava cinco favelas. Não pertencia a nenhuma facção e obtinha a obediência pelo terror. Aboliu o “micro-ondas” do alto das favelas para construir o “açougue”, onde cortava carne humana e… Comia, num ritual que causava medo no mais corajoso facínora. Ele comia carne humana como quem participava de um churrasco. Só não tinha samba, ele detestava pagode. As favelas sob o seu comando eram proibidas de tocar samba.

Funk só quando ele não estava. O coração era seu prato predileto, e quanto mais cru melhor. Dizia que a força de um coração batendo era a vitamina para sua coragem. Nenhum policial teve a audácia de enfrentá-lo: PM? Civil? Federal? Bope? Exército? Frente a frente com ele ninguém, ninguém jamais ficou.

Morreu numa emboscada. Não teve tempo nem de reagir. Atiraram por trás. Foi muito tiro. Todos agradeceram sua morte. A polícia, a sociedade civil, o governo e também seus comparsas, que não aguentavam mais ficar sob o domínio do terror.

No seu enterro só uma presença: Laurilene. A menor conhecera o traficante quando pequena, ela tinha cinco e ele, nove. Demóstenes fora criado pela mãe, que queria ver o filho advogado. O pai de vez em quando aparecia bêbado para dar uma surra na mãe e no garoto. Na última vez que apareceu, amanheceu morto em condições misteriosas. O corpo todo retalhado e sem coração. As vizinhas, faladeiras, puseram a culpa no menino, que a partir desse dia passou a ser chamado de Demo. A mãe não acreditou e discutia com quem pusesse a culpa no garoto.

– Isso foi coisa desses traficantes a quem Themístocles devia.

Ao lado da mãe, só quem o apoiava era a amiga Laurilene. Era comum ver os dois brincando, isolados de todos. Aliás, a menina era a única pessoa, além da mãe, a quem Demo respeitava. A mãe morreu logo depois. Sozinho, foi quase expulso da comunidade. Dona Zulmira foi a líder do movimento.

– Esse menino tem que sair daqui.

Ele não é coisa boa. Seus olhos são um poço de ódio. Ele não respeita ninguém.

Isso era verdade: ele não respeitava ninguém. Com a morte da mãe, a única pessoa que ele ouvia era Laurilene. E ela o ajudou quando Marquito Cabeça, o chefe do tráfico, pediu a dele. A menina enfiou Demo na casa da avó e, contrariando toda a comunidade, fez o garoto escapar da caçada. Ele não só escapou como decepou a cabeça do Marquito e passeou com seu troféu por toda a comunidade.

A partir daquele dia, assumiu o tráfico daquela favela em Botafogo. Com apenas quinze anos, passou a comandar um dos morros mais rentáveis da Zona Sul. Dona Zulmira, coitada, não viveu para ver seus netos se formarem. E assim foi feito com todos que se atreviam a contrariá-lo.

Laurilene, ainda uma criança, chorava a morte do “marido”. Sua dor era intensa. Passou dias sem falar e sem comer. A família, que, a princípio, se alegrou por vê-la de volta, ficou preocupada com sua saúde. O amor que sentia por aquele monstro não tinha explicação. Não questionava seus métodos. Em contrapartida, Demo a tratava como rainha. Tinha as melhores roupas, os melhores perfumes, até joias valiosas a menina ganhava.

Jurou vingança, mas seu jeito, sua compleição franzina, não a ajudavam muito. Procurou os antigos “amigos” de Demo, mas esses pareciam mais felizes sem a presença de seu líder nefando. Revoltada, Laurilene, aos berros, os chamou de todos os impropérios que conhecia e ainda criou outros que ninguém entendeu. A corja não lhe fez nada. O clima de terror que o traficante ainda exercia os deixava temerosos.

Sozinha na casa em que morara durante três anos com Demo, a menina chorava. Clamava por Demo. Pedia para que a morte chegasse rápido. Queria estar ao lado de seu amado. Queria sentir seu cheiro azedo. Queria ser possuída pelo menos uma vez pelo único homem que tivera. Não mais saía, vivia trancada, rezando para deuses, santos e sabe-se lá mais o quê. Pedia para todos a volta de seu homem. O interior de sua casa mais parecia o interior de um túmulo, com diversas velas e oferendas. A janela ela não abria. Talvez por isso não percebeu a for-te chuva que se armava. As nuvens pretas e carregadas responderam ao sol, que reinara absoluto por mais de quinze dias. O vento intenso destelhava alguns barracos mais humildes da comunidade. Os raios cortavam o céu, seguidos por barulhentos trovões. A noite iria ser sinistra. Laurilene, alheia ao que ocorria fora, não ouviu quando bateram à sua porta. Na ausência de resposta a porta se abriu, e, do lado de fora, molhada pela chuva, uma senhora de cabelos brancos pediu para entrar. A menina não respondeu. Estava deitada, só de calcinha, olhando para o o    teto, e parecia não estar neste mundo. A velha senhora entrou sem falar nada, sentou na única cadeira que havia e passou a fitar Laurilene. A jovem continuou olhando para o teto. De repente, como se tivesse despertado de um sonho tranquilo, ela sentou na beira da cama.

–    Menina, eu vim porque você me chamou. – A velha, com o rosto todo marcado pelas rugas, aparentava muita idade, porém sua voz alta e firme desmentia sua aparência. E continuou: – Você pediu ajuda para muita gente, mas só eu atendi.

– Quem é você? – Laurilene não pareceu ter medo.

– Não importa quem eu sou. O que interessa é o que eu posso fazer por você?

–     Eu quero morrer…

–     Você quer morrer ou quer estar com o seu homem?

–     E faz diferença?

–    Faz. Você pediu muito. Ele não pode ir embora.

–     Onde ele está agora?

–    Aqui. Ali. Quem sabe? Só você pode encontrá-lo.

–     Mas eu não sei aonde ir…

–    No alto do morro, onde funcionava o “açougue”, tem enterrada, ao lado do mármore, uma cruz invertida. Desenterre-a, levante-a para o céu e clame por ele. Ele aparecerá.

Laurilene não pensava em outra coisa a não ser em reencontrar seu amado.

– Vá logo, pois os raios não podem acabar.

A menina, crédula e apressada, saiu de casa como estava. A chuva torrencial não a ajudava. Descalça, ela escorregou e várias vezes foi ao chão. Passou pelo “movimento”, que, por causa da água, estava funcionando no bar do Jeremias. A visão daquela virgem passando enlameada aguçou a libido da rapaziada. Laurilene chegou ao alto do morro e aproximou-se do mármore. Cavou usando as unhas, ao ponto de sangrarem. O buraco foi crescendo, mas nada de a cruz aparecer.

Ela, desesperada por encontrar o instrumento que a levaria a Demo, cavava cada vez com mais força. Não reparou quando foi cercada por uma tropa de traficantes sedentos por sexo e por vingar as barbaridades que seu “marido” fizera a todos.

– Aí, rapaziada, a virgem que o Demo não comeu tá querendo dar. Que é que a gente faz com ela?

Esse era o novo dono do morro, Toninho Peida. No reinado de Demo, ele era seu homem de confiança, mas nesse submundo confiança não tem o mesmo significado que tem no mundo comum. Laurilene nem deu ouvidos; continuou cavando.

Ela tá fingindo que não tá ouvindo. Aí, você tá muito gostosa. Parece aquelas piranhas que brigam na lama.

A corja se divertia, mas Laurilene queria a cruz.

– Não tá me ouvindo não, vaca!?Ao falar isso, Peida segurou um dos braços de Laurilene e a puxou para si. Seus seios nus tocaram a barriga do traficante, que aproveitou e enlaçou o corpo da menina.

– Agora eu vou fazer contigo o que aquele viado não soube fazer.

Arrancou a calcinha da menina, revelando seus pelos púbicos ralos e molhados. O marginal abriu a braguilha, mas quando estava puxando o pau para fora, por trás de todos, a velha, com sua voz firme, falou:

– Largue essa menina!

Peida, meio sem entender, jogou a menina nua no buraco e partiu para cima da velha.

– Olha aqui, vovó, o que eu vou fazer aqui é proibido para pessoas da sua idade. Dá o fora antes que a rapaziada faça com a senhora o mesmo que eu vou fazer com a garota. Não é, rapaziada?

Enquanto os marginais cercavam a senhora, Peida voltou para Laurilene, mas, nesse momento, ela, com os braços erguidos e a cruz invertida na mão, gritava para a chuva.

– Demo! Vem, meu amor! Eu sou sua! Vem! Um raio cortou o céu e atingiu a cruz, provocando uma descarga elétrica. Um clarão deixou todos cegos por alguns instantes. Aos poucos, com a visão voltando ao normal, todos puderam ver que Laurilene continuava ali: de pé, nua e com a cruz invertida na mão. Toninho Peida, ainda meio tonto, partiu para cima da menina.

– Vem cá, sua piranha. Agora você não me escapa.

– Toninho Peida, confiei em você. E você me traiu.

– A voz de Laurilene continuava a mesma, mas a confiança e a segurança com que falava e segurava a faca deixaram o traficante atordoado.

– E aí, rapaziada, a menininha tá me estranhando…

Nervosos, os demais traficantes não riram da piada do líder, pois sabiam que não era ela que estava falando. Peida continuou em direção da menina. Frente a frente, tentou puxá-la pelo braço. Foi um golpe só. Ela enfiou a cruz tão forte que atravessou o peito do marginal. Em poucos segundos ele estava no chão, e seu coração, na boca de Laurilene. Os outros, estáticos, não acreditaram no que estavam vendo: uma adolescente nua comendo o coração de seu chefe. A velha senhora chegou perto dela com uma manta e cobrindo-a falou:

– Agora vocês estão juntos. Aproveitem enquanto a vida desse corpo durar.

O Rio de Janeiro viveu dias terríveis. Ninguém podia entender como aquela menina bonita, virgem e com o corpo escultural passou a ser a bandida mais cruel, temida e procurada do Brasil.