Quando li as matérias sobre a condenação de Pedro Coimbra nesta manhã, tomei a liberdade de escrever algumas palavras em defesa de um dos maiores atores da nossa época e, mais ainda, em defesa da arte, essa defensora frágil e aparentemente descartável da nossa democracia. Não vou tratar aqui de atacar nenhum dos muitos detratores de Pedro (até mesmo para evitar mais processos), mas vou defender, com unhas e dentes, um artista que corre o risco de cumprir detenção de até quatro anos por uma peça de teatro! 

Em tempo, para aqueles que não acompanharam o ocorrido: o dramaturgo sergipano Pedro Coimbra apresentou, há um mês, uma interpretação de Malone Morre, do irlandês Samuel Beckett. Em pouco mais de duas horas, Coimbra interpretou integralmente a antinarrativa que conta os delírios de um moribundo, deitado nu em uma cama de metal. No entanto, o que chamou a atenção dos dois juízes que agora o condenaram nesta terça não foi a nudez (tema já obsoleto para o discurso conservador), mas o estado em que Coimbra estava no palco. 

O que chamou a atenção dos dois juízes que agora o condenaram nesta terça não foi a nudez (tema já obsoleto para o discurso conservador), mas o estado em que Coimbra estava no palco. 

Coimbra apresentou peça terrivelmente gripado – de maneira deliberada. “Malone está morrendo desde o início”, contou o artista. “Eu queria sentir o incômodo mais próximo de ter seu corpo se desfazendo em sensações insuportáveis”. No meio da temporada de gripe desse ano, em maio, Coimbra frequentou UPAs por toda a cidade de São Paulo, tomou trens e metrôs em horas de pico, e chegou até mesmo a carregar lenços de desconhecidos no bolso. O objetivo era sentir-se realmente doente, “com dores de cabeça latejantes e as articulações em chamas”, e só então estrear a peça, para a qual vinha ensaiando há cerca de um ano. 

Mas a fidedignidade da doença não era a única coisa que o ator procurava. “Acima de tudo eu queria estar doente porque é o que estamos todos […] Em vários sentidos, mas, principal e inegavelmente, fisicamente”, conta ele, que sempre foi um crítico da atuação pífia do estado nas periferias. 

Nascido no interior de Sergipe em 1981, Pedro Coimbra foi adotado por uma família de alta classe de Aracaju, que lhe conferiu uma série de privilégios que possibilitaram que ele se tornasse um dos atores mais premiados do país. Estudante de piano desde cedo, Coimbra foi estudar música na Irlanda, onde conheceu o teatro. Ao voltar para o Brasil, trabalhou em várias companhias de teatro e apresentou criações memoráveis, como o Hamlet no Metrô, em que a saga do príncipe da Dinamarca era realizada dentro de vagões ao longo de todo o trajeto da Linha Vermelha, durante a semana em horários de grande movimento. 

Suas ideias pouco convencionais fizeram muitos críticos revirarem os olhos, mas também abriram as portas de um mundo novo. Hoje, Pedro Coimbra coleciona prêmios dentro e fora do país, como o troféu APCA, o prêmio Bibi Ferreira e o prêmio NAACP, dos Estados Unidos. E, agora, mesmo assim, Pedro Coimbra é processado por supostamente botar em risco a vida das 80 pessoas que assistiram a sua peça (lotação máxima nos dois dias!) no pequeno teatro alugado na Mooca, onde interpretou o velho moribundo de Beckett. 

O teor dos dois processos é, em si, tão absurdo quanto a peça. No primeiro, um inominável juiz escreve que “a peça em questão e seu autor cometem crime disposto no Art. 132 do Código Penal que caracteriza exposição nociva da vida ou da saúde de outrem a perigo direto e iminente”. Já no segundo, outro douto magistrado compreende a gripe como uma “moléstia grave”, evocando o Artigo 131 do Livro de Penas e fala em “dolo”, dizendo que “o perigo apresentado ao público alcança dignidade jurídico-penal, denotando relevo e conteúdo significantes”. 

Falei com Coimbra nesta manhã, logo após um encontro com seu advogado, e ele me disse que nunca havia sofrido um ataque tão brutal. “Os juízes provavelmente são amigos e fãs de Shakespeare”, brincou com seu bom humor habitual. Contudo, não pude deixar de notar a preocupação e o esgotamento em seus olhos. É cruel dedicar-se de corpo (literalmente!) e alma a uma arte que é apunhalada por capricho. Do Queermuseu, de Gaudêncio Fidélis, e do La Bête, de Wagner Schwartz, ambos em 2017, sem jamais esquecer das perenes criminalizações do samba e da capoeira, farsescamente derrubadas por lei no fim do Governo Vargas, até o desdém contemporâneo dado ao rap, ao grafitti, ao funk (há uma proposta de lei para criminalizá-lo, não?), a arte brasileira sofre de uma miopia branca calcada em uma estética fria. Uma miopia que olha para manifestações diversas, novas ideias e críticas mordazes, mas vê ameaças ofensivas e lê artigos empoeirados. 

Me lembro de uma conversa que tive há alguns meses com Paulo Henrique Amorim sobre Coimbra, quando eu disse que o jovem preparava uma releitura de Beckett, ao que o saudoso Paulo Henrique respondeu, com sua notória galhofa: “O menino está corretíssimo. Nada mais parecido com nosso Brasil do que um bom Beckett”. 

Que os deuses de lá tenham piedade de Pedro Coimbra, já que os daqui não os tem. Que este inverno passe e essa loucura possa morrer, como Malone. Evoé! Salve todos os Pedros Coimbra! 

Victor Cruzeiro é Mestre em Comunicação pela UnB, estudando a expressão da dor nos diários íntimos de Frida Kahlo e Roland Barthes. Bacharel em Filosofia pela Unicamp. Foi professor de Filosofia no ensino médio no DF e professor de Estética da Comunicação e Oficina de Argumento e Roteiro na Faculdade de Comunicação da UnB.

Publicado em Revestrés#42-julho-agosto de 2019.

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