Quando notas de Real estampadas com “Lula Livre” começaram a ser recusadas em estabelecimentos pelo país, houve um bar no Rio de Janeiro que fez diferente: quem pagasse a conta com cédula carimbada tinha direito a 10% de desconto. Na semana em que o filho “zero três” de Jair Bolsonaro citou sua habilidade de fritador de hambúrguer nos Estados Unidos como credencial para ocupar o cargo de diplomata, o mesmo bar anunciou em suas redes sociais: “Estamos contratando chapeiro com experiência em diplomacia”. Outro dia, entre uma reportagem e outra do site The Intercept Brasil sobre as mensagens secretas da Lava Jato, lá estava o bar enviando um recado ainda mais direto, dessa vez para o ex-juiz e atual ministro da Justiça Sérgio Moro, por meio de uma frase impressa no rodapé do cupom fiscal: “Um bar pode ter opinião política, um juiz não. Moro lesa-pátria”.
No bar do Omar, pequeno oásis no bairro do Santo Cristo, alto do Morro do Pinto, na capital fluminense, é assim. Nenhum problema em ser parcial, ativista, de esquerda. “Petralha”, se preferirem. As pistas estão por todo o ambiente. No quadro assinado pelo artista Will Barcelos em que se vê um Luiz Inácio gigante todo desenhado com carimbos de “Livre” e que deve permanecer na entrada por tempo indeterminado. Na placa de rua Marielle Franco – homenagem à vereadora do Psol assassinada há um ano e seis meses, um crime ainda sem solução. No mural com o slogan de “Lula Livre” grafitado nas cores do arco-íris. No bottom da camiseta do garçom. Nos adesivos aqui e ali. No cardápio inspirado pelo famoso PowerPoint usado por promotores contra Lula – mas agora quem está no centro do esquema são os famosos bolinhos do Omar.
O bar existe há pelo menos 20 anos e começou como uma hamburgueria. Foi só há pouco mais de dois anos, entre o impeachment de Dilma Rousseff e a prisão de Lula, que o lado mais, por assim dizer, militante do local rebentou. Omar Machado Monteiro, o proprietário, lembra o primeiro post, que deu origem a uma série de outros. “A gente usou uma foto bonita da mão do Lula e escreveu na nossa página que o Bar do Omar apoiava o bom velhinho e que ele não estava só”, conta. Para Omar, essa era uma forma de demonstrar solidariedade ao homem que, na sua opinião, vinha sofrendo uma injustiça atrás da outra com denúncias infundadas e processos carregados de convicções sem provas. “A gente vestiu a carapuça de que é Lula porque aquilo foi muita covardia. Tudo de ruim era atribuído a ele. Mas foi no governo dele que vimos melhorar a qualidade de vida do brasileiro”, diz Omar, casado com Ana Helena e pai de Omar Júnior e Mariana, ambos com diploma universitário.
Em um país partido ao meio, Omar viu a página ser atacada por comentários agressivos que fizeram cair a avaliação do bar e o deixaram em uma posição quase desconfortável. Quase. “Porque aí veio também uma corrente do bem de gente que se identificava com nossa opinião”, recorda. Hoje, mais de 57 mil internautas seguem a página do bar no Facebook e quase a mesma quantidade no Instagram e no Twitter. Isso fez multiplicar os clientes que costumam disputar vaga no salão com vista deslumbrante para a região portuária ou se acomodar como podem nas mesinhas da calçada. Tem a turma prevenida, que leva até canga de banho para estender no local e permanece lá, “felpuda, curtindo o bar lotado”, como sugeriu uma das postagens. A tradicional roda de samba do fim de semana já não cabe. Foi transferida para o Circo Voador, um conhecido espaço de shows da cidade, e atraiu tanta gente na estreia que uma segunda edição foi agendada para 11 de outubro, dia do aniversário de Cartola.
A mente por trás dos posts inventivos – que acabaram por transformar o bar, de boteco simpático apreciado por alguns, em um badalado reduto progressista do Rio – é do filho do dono, Omar Júnior, um jovem de 29 anos que nem de longe esperava tamanha repercussão. “Quando os primeiros posts começaram a ter um engajamento gigantesco, eu pensei em parar”, confessa. “No início foi bem complicado, muito ódio, muita gente xingando”. Hoje, o local é frequentado por pessoas de todo lugar, como um grupo de professores americanos que descobriu o bar nas redes sociais. Reparem em quem chegou o burburinho: “Lula adorou saber de sua luta. Teve contato através de seu advogado em Curitiba a quem repassei suas primeiras manifestações de apoio. Lula ficou emocionado e feliz”, dizia um post que os proprietários fizeram questão de compartilhar nas redes, com o coração aos pulos.
Omar Júnior revela que o humor foi a forma que encontrou para lidar com o momento atual. “As pessoas já estão muito acostumadas a compartilhar tristeza, melancolia. Eu sempre gostei de fazer piada, de ser bobo”, conta ele, que costuma misturar, de maneira inteligente, referências históricas e políticas com o que se ouve por aí. “Sempre gostei dessas sinapses. Juntar isso tudo na página do bar acabou ficando fácil”. Omar Júnior ainda aposta no diálogo para mudar o mundo e fala sério quando defende que “uma frente única de esquerda é primordial para que consigamos combater esse governo que está aí e conversar com setores que antes foram esquecidos pela esquerda”. O pensamento defendido na entrevista também foi parar nas postagens do bar, de um jeito um pouquinho mais jocoso: “Vontade de pegar Fernando Haddad, Guilherme Boulos, Marina Silva, Manuela d´Ávila, Ciro Gomes e Flávio Dino, trancar tudo aqui no bar e falar: vocês só saem daqui quando uma frente única de esquerda estiver montada, entenderam? Agora, vai abraçar o coleguinha. Igual criança”. O post teve 857 comentários, a grande maioria deles favorável à proposta.
Foi de Omar Júnior, também, a ideia de montar o cardápio do bar todo inspirado nos acontecimentos recentes da história do país. A cerveja Petra, por exemplo, merece um “Parabéns por ‘Democracia em Vertigem’” – uma brincadeira com a diretora do documentário em cartaz na Netflix que, por coincidência, se chama Petra Costa. A Stella Artois, por sua vez, é apresentada como “verde por fora e vermelha por dentro”. Entre as bebidas, não podiam faltar “Lula Libre”, “Pepe Mojito” e “Martini Luther King”. No fim das contas, ir ao Bar do Omar é uma experiência em todos os sentidos. Dificilmente você sai do local sem ouvir pelo menos uma vez o grito de “Lula Livre”. Dia desses, bar lotado, a cozinha atrasou os pedidos. O próprio Omar, o pai, se dirigiu ao salão, desculpando-se e oferecendo uma rodada gratuita da “Omaracujá” – a batida famosa que sempre atraiu a clientela. Foi saudado aos gritos de “Olê, olê, olê, olá, Omar! Omar!”, o seu nome revezando com o do político mais querido de 10 entre 10 frequentadores do local.
“Eu acredito que foi nos bares que as decisões mais importantes da história foram tomadas e as grandes ideias ganharam forma” Omar Júnior
O dono do bar até acha que pode haver algum “bolsominion enrustido”, nas suas palavras, que apareça por acaso procurando saber como funcionam as coisas por ali. “Mas nenhum deles bota as garras pra fora”, garante. “O público que vem à minha casa hoje é a esquerda maciça. Só anda aqui mesmo quem acredita em um outro mundo possível”. Brincadeiras à parte, ele acrescenta que o bar é democrático. “A gente não fica falando só de política. É um local onde as pessoas se divertem, brincam e são bem tratadas independente de quem seja”. Para o filho, um bar é “a vanguarda das ideias”, um local onde lições são aprendidas. “Eu acredito que foi nos bares que as decisões mais importantes da história foram tomadas e as grandes ideias ganharam forma, seja numa roda de cerveja na Mesopotâmia, nos pubs europeus da década de 1910, ou nos botecos nos altos dos morros cariocas em 2020”.
No sábado, o motorista de aplicativo que apanhou a reportagem quis saber o que de tão interessante havia no bar, afinal a tarde ainda nem acabara e ele já fazia a segunda corrida para o local. Ao ouvir sobre os bolinhos – o de linguiça com queijo canastra é o mais pedido de um cardápio com muitas opções –, ele sorriu. Mas ficou animado mesmo foi ao descobrir que o principal ingrediente do lugar é a defesa da democracia e a bandeira de Lula Livre. Prometeu voltar ali como cliente. Só precisa chegar cedo, de preferência na hora em que o local abre. Aos fins de semana, exatamente às 13h13; quintas e sextas, a partir das 17h13, que os donos não cometeriam a imprudência de deixar esse horário redondo. “O último a chegar é filho de Januário” – impossível resistir aos posts.
Num começo de noite de uma quinta-feira de setembro, a família que veio de Florianópolis pegou a mesa mais disputada do bar, justamente aquela que fica na frente do mural grafitado, pano de fundo ideal para uma boa foto. “A gente estava há um mês programando essa viagem para conhecer o Bar do Omar”, diz Vera Santos, acompanhada do marido, um sobrinho e agregados. Valeu a espera. “Saímos daqui até com mais esperança”. Outra turma veio visitar o bar a convite da pesquisadora Geisa Bordenave, que havia descoberto o local ainda em 2012, antes da fama. “A parte ideológica é um atrativo a mais”, comenta. “Ao tornar pública a sua posição política, o bar até se expõe em certa medida. Mas é muito bacana estar em um local com pessoas que compartilham do mesmo pensamento nosso, principalmente nesse momento difícil”.
Geisa levou o namorado, Felipe Rocha, e os amigos Felipe e Ludmila Gonçalves, fundadores da Casa do Aprender Democrático e do Comitê Lula Livre, em Niterói, do outro lado da ponte. Chegaram de adesivo no peito. “Esse é o meu kit”, avisa Ludmila. Posaram para foto, polegar e indicador em ângulo reto, forma de L. “Estar em um bar com quem partilha do nosso mesmo ideal de país – que, aliás, não é nada parecido com isso que está acontecendo – é quase uma terapia”. Há quem diga que a revolução vai começar no Bar do Omar. “No Bar do Omar eu não sei, mas que a ideia vai surgir de dentro de um bar, disso eu não tenho dúvida”, jura Omar Júnior, convicto. Em uma das vezes que Revestrés esteve por ali, em meio ao coro de vozes ansiosas por dias melhores, havia a música. Chico Buarque no volume médio era quem se desculpava pela duração dessa temporada. “Mas não diga nada que me viu chorando e pros da pesada diz que eu vou levando”. Ainda bem que existe o Bar do Omar. Fica tudo um pouco mais fácil.
Publicado na Revestrés#43 – setembro-outubro 2019.
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