Por Samária Andrade
Fotos: @roque.moreira @fabiocrazychristian

Uma pequena multidão encheu as escadarias do Espaço Cultural Osório Júnior, no Clube dos Diários, em Teresina. Era 13 de julho, Dia Mundial do Rock, já passava das 21h e o evento que levou as pessoas ao centro quase abandonado e sem transporte público da capital do Piauí foram os shows gratuitos das bandas Narguilê Hidromecânico e Conjunto Roque Moreira. Nenhuma das bandas se define exatamente ou exclusivamente como rock, mas tanto faz. As pessoas foram ali para ouvir sucessos autorais dessas bandas e cantar junto algumas de suas melhores canções.

Narguilê Hidromecânico e público no Espaço Osório Júnior: ainda melhores do que lembrávamos.

A plateia tinha jovens, mas boa parte dos presentes era de 40+ e 50+. Um homem gritava “Fogo!” – numa referência ao Botafogo – antes do show começar. Depois, passou a gritar “Narguilê, eu te amo!”. Uma moça bebeu todas e derrubou uma fila de seis motos estacionadas na rua, no melhor estilo Rê Bordosa e suas ressacas homéricas. Compartilhávamos signos comuns àquela noite. Parecia que tínhamos voltado no tempo. E estávamos saudosos.

A Narguilê surgiu em 1998 e o Roque Moreira em 2001. A primeira, com uma mistura de rock, reggae, forró, punk e hardcore. O segundo, misturando rock, reggae e algo mais pop. Já passaram por várias formações, gravaram discos, tocaram no eixo sudeste do Brasil, fora do Brasil e estavam um tanto quanto parados/discretos/fora dos holofotes até fazerem a gente compreender naquele momento: eles são ainda melhores do que lembrávamos.

Em alguns pontos as músicas das duas bandas conversam entre si, como nas referências a ícones da região. O melhor hit do Conjunto Roque Moreira é Vendedor de Cajuína: “Sou um pobre trabalhador / Trabalhador de Teresina / Sou um pobre trabalhador / Sou vendedor de cajuína”. Estão nas duas bandas também as muitas referências ao que se pode chamar de uma “cultura canábis”, com músicas falsamente ingênuas e em busca da cumplicidade que encontram no público: “Que fumaça é essa / que sai pela janela? / É nada não mulher / fumaça de sentinela” – em Roque Moreira; e “Nóis fumo primeiro / nóis fumo e ‘voltemo’/ mas de fumar nóis nunca ‘deixemo’” – em Narguilê.

Conjunto Roque Moreira: o mesmo espaço, dois tempos

Impossível não reparar que os cabelos de Fábio Christian, o Fábio Crazy, vocalista da Narguilê, têm agora raízes brancas. Impossível não ignorar essa bobagem e embarcar no quase transe de suas interpretações e performances – tão convincentes que nem o som de baixa qualidade foi capaz de atrapalhar.

Algumas músicas do Narguilê têm letra curtinha e é a repetição, aumentando a intensidade, que faz banda e plateia compartilharem esse quase transe – como num mantra, se assim se pode chamar algo que não tem, por propósito, acalmar. E é bom que se diga: letras curtinhas, mas nem por isso menos críticas, a exemplo de Maquetes Loucas: apenas quatro pequenas frases de duas palavras, cada uma delas repetidas quatro vezes, seguidamente: “Maquetes loucas” – 4x / “Miniaturas alopradas”-  4x / “Microcosmo louco” – 4x / “Diminutivo alucinado” – 4x. E a crítica está feita – numa cidade meio maquete-decoradinha, pequena e com espírito de grandeza nas suas zonas mais abastadas. O efeito sobre o público é de impressionar. Sentiu?

Alguns dos maiores sucessos do Narguilê, como Forró do Mulambo, podem hoje levantar questões: “Nega pra namorar / Lá tem” – como se as “negas” estivessem, simplesmente, à disposição. No entanto essa mesma banda, no século passado, antes de se festejar o cabelo afro, já cantava “Eu só uso o meu cabelo natural / Quando eu acordo o meu cabelo já tá natural”.

Em outras músicas, vê-se um Narguilê crítico anárquico do capitalismo e da exploração do trabalhador: “Não confunda o meu trabalho com o do jumento / Ele trabalha o ano inteiro sem documento / Ele acorda bem cedo, não tem hora marcada / Não reclama com o patrão da sua jornada / No final do dia não tem lamento / Seu salário só dá pro alimento / Ele não vai no shopping center, muito menos no cinema / É só ele que vive esse dilema”. Depois, numa referência a Luiz Gonzaga, intérprete, banda e público voltam a partilhar o quase transe ao repetir-repetir: “O jumento é bom/O homem é mau”.

Daniel Huck, vocalista do Roque Moreira, e André de Sousa, guitarrrista nas duas bandas: trabalhador de Teresina

Sobre esse show, o músico e colunista do site Entre Cultura, Marco Antônio, publicou o texto “Eu vi o futuro, baby. Ele é passado”. Fala em “dois dos melhores exemplares do ‘rock de banda’ teresinense” e “dois putas shows numa noite”. Mas chama a atenção para um fato: “essas bandas são do início dos anos 2000. E nós estamos em 2024. Há algum problema nisso? Com os artistas, nenhum. Com a arte? Todos” – considera.

Marco Antônio dá ênfase à ideia de passado (“finado rock”, “finado Boca da Noite”) e levanta questões que merecem reflexão: a cidade parou de produzir novos artistas? Eles estariam sendo ignorados? O texto argumenta: “A cidade parece aquele menino mimado: cresceu, mas ficou preguiçosa. Sem curiosidade. Acostumada com o conforto do conhecido”. Por fim, conclui: “Ao final do evento, a sensação é de que foi um lindo show do passado. Foi ruim? Não. Foi ótimo. Mas nós já chegamos no futuro e eu ainda espero um presente”.

Sobre essas questões podemos pensar em algo que não se restrinja a Teresina, mas ao modelo de produção de indústria cultural que, encontrada a fórmula, dedica-se à reprodução, e não à invenção.

Mas outros pontos devem entrar na análise desse suposto futuro a que teríamos chegado. Um deles é a desarticulação total que atingiu a cultura nos anos pandemia-Bolsonaro e a indústria da música, em particular, com os avanços tecnológicos. Shows em profusão pelo país e cheios de públicos diversos dão mostras do quanto estávamos precisados desses reencontros. As políticas públicas de gestão de cultura jogam papel central nesse campo. Daí que, enquanto fazemos/tentamos fazer precisamos, ao mesmo tempo, pensar no formato “editais”. Sim, eles têm se tornado a possível forma mais “justa”. Mas quem julga os editais? Sob que critérios? Sob que preparo? Corremos o risco de estar numa fase um tanto técnica de julgamento de produções culturais, ticando pontos atendidos burocraticamente, e podendo deixar passar o que (ainda) não vimos ou compreendemos – um papel que também cabe à arte.

Fábio Christian Crazy e Narguilê: “O jumento é bom/O homem é mau”.

Uma onda revival de shows e artistas na música, teatro, televisão, não é um fenômeno localizado. Os exemplos são fartos, no Brasil e no mundo. Isso também nos diz que aquilo que estamos gostando no presente, não precisa necessariamente ser taxado de passado. Essas caixinhas estão menos para espaços definidos cronologicamente e mais para vasos comunicantes (ps: mas bem que o Conjunto Roque Moreira podia atualizar os vídeos no Youtube). Além disso, parece que viver de trends e modinhas que surgem nas redes sociais numa manhã para nos cansarem à noite está realmente nos deixando exaustos. E, talvez, precisemos parar um pouco e (re)ver algo que nos dê indícios de alguma permanência.

Aí entra outro ponto importante, articulado com as mudanças nas Tecnologias de Informação e Comunicação (TICs): a fragmentação da mídia e a velocidade das mudanças nessa área também atuam numa sensação de não permanência e instabilidades. Eugênio Trivinho diz que vivemos uma “dromocracia cibercultural” (dromo, de correr, corrida). É essa dromocracia que hoje enfrentam artistas ou qualquer um em busca de falar com seus públicos (jornalistas, publicitários, políticos etc.). Mensagens pulverizadas e em superabundância nas mídias sociais têm um resultado diferente do que trazem os chamados veículos de massa. Além do que, dependentes de plataformas digitais não transparentes e desreguladas, artistas experimentam modelos de comunicação que não estão de todo disponíveis a estratégias que já pareciam compreendidas em suas lógicas anteriores.

O jornalismo como um todo também pisa em terreno movediço nas mídias sociais, ainda que o marketing “venda” que já domina tudo por ali. Em grande parte das vezes o jornalismo tem cedido a informações caça-cliques. Enfrentar isso exige sair de uma certa zona de conforto que, ao final, também está sufocando esse jornalismo. No jornalismo cultural significa, por exemplo, sair da repetitiva cobertura de celebridades e da batida agenda cultural para se arriscar a pensar e ajudar a pensar. É isso o que faz Marco Antônio.

O show que reuniu Narguilê Hidromecânico e Conjunto Roque Moreira teve patrocínio da Secult – Secretaria da Cultura do Governo do Piauí e é preciso, sim, que haja políticas públicas que apoiem e possibilitem existir as mais diversas manifestações culturais. E que isso seja feito permitindo uma produção de modo livre e independente. Aquele 13 de julho foi muito mais que uma noite reunindo bons artistas e suas produções autorais – e isso já seria suficiente. Todas as questões surgidas a partir dali são uma mostra disso.

A despeito de se poder reclamar sobre a necessidade de espaço para outros artistas, ainda é importante que se diga: Narguilê e Roque Moreira não estão “tomando” espaço. Estávamos todos, sim, perdendo espaço.

A fumaça continua a sair daquela noite. E ainda tem muito pra queimar.

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Samária Andrade é jornalista e professora de jornalismo. Doutora em Comunicação (UnB) e coordenadora do grupo Trampo Pesquisa (UESPI).

Narguilê Hidromecânico e Maquetes Loucas

Conjunto Roque Moreira e Sentinela