Quando Marcello Dantas recebeu da arqueóloga Niéde Guidon a encomenda: “eu quero criar um museu para falar sobre a natureza”, ele pensou: “Nunca alguém havia feito uma afirmação tão abrangente para mim: um museu sobre a natureza é um museu sobre tudo e, por isso, correria o risco de ser um museu sobre nada”. Essa historinha está em um dos painéis de entrada do Museu da Natureza, inaugurado no sul do Piauí no último 18 de dezembro, em terras do município Coronel José Dias, próximo ao Parque Nacional Serra da Capivara. Concluído em apenas 18 meses desde o início de sua construção, um prazo muito curto para a ambição da obra, a peleja por recursos e o tamanho da história que conta, o Museu da Natureza está mudando a paisagem e o humor de uma das regiões mais secas do Nordeste brasileiro.  

Marcello Dantas, diretor artístico do Museu, topou o desafio e resolveu contar a história da natureza por meio do que rege as transformações no planeta: as mudanças climáticas. “As ambições de Guidon sempre precisam ser ouvidas com atenção”. Dantas é o nome por trás de algumas das maiores exposições realizadas no Brasil nos últimos anos, como “ComCiência”, da artista australiana Patricia Piccinini (mostra de arte contemporânea mais visitada no mundo em 2016) e, mais recentemente, a exposição RAIZ, uma retrospectiva do artista e ativista chinês Ai Weiwei. Conhecido por inovar no conceito de museologia, Dantas também assina o Museu da Língua Portuguesa e a Japan House, ambos em São Paulo. Com Niéde, já havia trabalhado na instalação do Museu do Homem Americano, inaugurado em 2009, em São Raimundo Nonato. “Tanto a pré-história quanto o trabalho da Fumdham (Fundação Museu do Homem Americano) me apaixonaram desde que os conheci, há 20 anos”, diz o curador à Revestrés. E complementa: “Não faria o menor sentido fazer esse museu em nenhum outro lugar que não onde se originou esse patrimônio e conhecimento.” A Fumdham é a instituição criadora dos dois museus do sul do Piauí, dirigida por Niéde.   

Foto: André Pessoa

O Museu da Natureza tem 1.700 m2 de área expositiva permanente e outros 700 m2 para eventos e exposições temporárias. São doze salas com uso de tecnologia e recursos interativos que contam a origem do universo, do sistema solar, da Terra, da vida e do clima. Na sala da megafauna, fósseis de animais pré-históricos encontrados na região e projeções em 3D que reproduzem esses animais. Um simulador de asa delta permite ao visitante experimentar a sensação de um voo sobre a Serra da Capivara. No final da exposição, um vídeo projetado no teto alerta para as alterações climáticas e destaca a responsabilidade do homem. Ele tem texto de Giuliana Bergamo e locução de Maria Bethânia, que não cobrou cachê. 

Se é possível falar do mundo contando a história do clima, logo fica claro que é impossível falar do Museu da Natureza sem falar de Niéde Guidon, a arqueóloga nascida em Jaú, interior de São Paulo, que estudou Pré-História na França e desde que conheceu a Serra da Capivara, no início dos anos de 1970, dedica não só suas pesquisas, mas a vida a essa causa. Aos 86 anos, ela tem dito em entrevistas que o Museu da Natureza é sua última aventura na Serra da Capivara. Logo após a inauguração a arqueóloga viajou e indicou pessoas a receberem Revestrés no Museu. 

Foto: André Pessoa

Suspiro no deserto 

“Ela me disse: Bete, faz um rascunho do Museu para anteontem. Vou viajar amanhã e preciso” – conta a arquiteta Elizabete Buco, autora do projeto original do Museu da Natureza, falando com bom humor sobre o espírito decidido de Niéde. O projeto, depois, passou por alterações, mas desde o início Elizabete o pensou como uma espiral: “porque a forma espiral aparece em quase tudo na natureza: do caracol ao mar. E também porque remete a evolução, a movimento ascendente.” 

Niéde queria chegar com desenho em punho na reunião que teria com o presidente do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES). “Ela achava – e era verdade – que o Museu do Homem Americano estava ficando pequeno para as descobertas que continuavam a acontecer nas pesquisas”, conta Rosa Trakalo, gestora financeira do projeto do Museu da Natureza. As negociação com o BNDES, órgão que financiou a construção do Museu, começaram em 2003, sendo atrasadas por burocracias ou mudanças de cargos. Finalmente, em 2013, foi assinado o contrato. Rosa conta que a liberação dos recursos trouxe uma condição: que fosse homologada a pista do aeroporto de São Raimundo Nonato, obra do governo do estado que se arrastava para ser concluída. Niéde então destinou um prêmio que recebeu em dinheiro a ajustes finais nas obras do aeroporto. 

Quando a construção do Museu finalmente começou (27 de junho de 2017), o projeto original já tinha as mudanças solicitadas pelo BNDES, como a retirada do elevador – pela dificuldade de manutenção que teria. Não há elevadores nas cidades mais próximas. Isso exigiu que a altura do prédio fosse reduzida. A solicitação também atendia à necessidade de diminuir custos. “Foi difícil. Nós vemos que faltam detalhes” – diz, exigente, a arquiteta – para depois concluir com um sorriso: “Mas está funcionando”. 

Elizabete e Rosa conversam com Revestrés no restaurante do Museu recém-inaugurado. Contam que aquela área, dois meses atrás, havia se transformado numa oficina de montagem onde circulavam cerca de 50 pessoas diariamente. “Demos muito trabalho para a região. Praticamente todo o pessoal que trabalhou aqui foi local”, conta Elizabete. A obra foi finalizada ao custo de 13,7 milhões. “Se você pensa que o Museu do Amanhã (Rio de Janeiro) custou 300 milhões, este consumiu muito pouco”, avalia Rosa. 

A expectativa é que o Museu da Natureza se mantenha com os ingressos dos visitantes. “Hoje é o sétimo dia desde a abertura e já passamos dos dois mil visitantes. Em São Paulo isso não é nada. Aqui é demais!”, fala a gestora, animada. E completa: “Eu estou sentindo uma coisa muito bonita: as pessoas estão incorporando o Museu, estão sentindo orgulho em relação a ele”.  Marcello Dantas, que ficou até o dia da inauguração, confirma o sentimento: “Muita gente que nunca tinha posto os pés em um museu está indo e amando”. E diz o que espera: “que as pessoas venham a amar esse museu como um grande patrimônio delas”. 

Com esta construção está criado um complexo turístico cultural no sul do Piauí, que inclui o Parque Nacional Serra da Capivara – patrimônio mundial da humanidade pela Unesco, com a maior concentração de arte rupestre em todo o mundo – e os dois museus: Museu do Homem Americano, e agora, o Museu da Natureza. Era essa a ideia? “Era a ideia da doutora Niéde, como sempre. Desde a escolha do terreno. Ela disse: ‘tem um morrinho ali’”, conta Elizabete. O terreno, já pertencente à FUMDAHM, fica em área externa ao parque, a poucos metros da entrada principal. O Museu da Natureza surge na paisagem como uma surpresa no final de uma estradinha de terra, formando um conjunto harmonioso com a vegetação e montanhas de pedras. 

Foto: André Gonçalves

Mulheres superpoderosas 

Ao lado de Niéde, Elizabete e Rosa formam um improvável trio de mulheres trabalhando na Serra da Capivara e morando na região. A paulista Elizabete está lá há 22 anos e conheceu o Parque por intermédio de sua irmã, educadora, que visitava a região. Rosa é uruguaia e mora no local há 26 anos. Conheceu Niéde ainda nos anos de 1970, quando esta começava a visitar aquelas pedras cheias de pinturas. Era período da ditadura militar uruguaia (1973-1985 – como a ditadura brasileira, esta também violou direitos humanos, usou tortura e tem histórico de desaparecimento de civis). “Eu não tinha futuro algum e ela me resgatou e me levou para estudar na França. Doutora Niéde sempre foi uma pessoa muito especial”. Rosa estudou Arqueologia, mas afirma que prefere as coisas com início, meio e fim aos tempos infindáveis da ciência pré-histórica. Nos últimos 10 anos se dedicou ao Museu da Natureza, mas também trabalha com empresa de turismo, ajudando na logística de se chegar até o Parque. “Eu brinco que me transformei no backup da doutora Niéde”. É a ela que Niéde recorre quando precisa lembrar datas e outras informações.   

Quando perguntamos se os ingressos de visitantes serão suficientes para manter o Museu, elas dizem que também vão vender camisetas e outros objetos na lojinha do Museu. O plano parece utópico, mas quem duvidaria que essas mulheres podem torná-lo infalível?  

No primeiro painel do Museu, um texto de Niéde faz uma retrospectiva de sua vida na Serra da Capivara, desde que ela ouviu falar do que ali havia, há mais de 50 anos, num estado sobre o qual “pouco sabia e que se transformou na minha casa, na minha razão de pesquisar e trabalhar” – diz o texto. Niéde conclui fazendo uma homenagem aos que a guiaram “nas difíceis trilhas da caatinga, que nos abriram as portas de suas casas”. No dia da inauguração, a arqueóloga ainda fez homenagem aos seus primeiros guias. Alguns, já falecidos, foram representados por suas famílias. Perguntada se Niéde estava feliz, Rosa admite que a amiga é pouco expressiva nas alegrias, por isso vai preferir responder mostrando uma foto. Puxa um celular e mostra a imagem de uma Niéde radiante: “Tirem suas conclusões”.  

Um assunto que ronda as conversas sobre a instalação do Parque Nacional Serra da Capivara dá conta da insatisfação de antigos moradores da área, que tiveram que ser retirados. Se esse tema não está esquecido, parece adormecido, enquanto aquele sentimento de orgulho, de que falou Rosa, torna-se indisfarçável. Roseli Landim é o sorriso simpático que instrui as pessoas na saída do prédio do Museu da Natureza. Numa região com poucas oportunidades de trabalho, ela diz que disputou a vaga para serviços gerais com umas cem pessoas e, agora, de carteira assinada, é umas das 14 funcionárias do Museu. “Quem entrou aqui ganhou na mega-sena”, diz. “Eu passo o dia num lugar bonito desse, vendo gente bonita do Brasil e do mundo!”  

Sobre como é trabalhar com Niéde, Marcello Dantas responde: “A Niéde sempre reclama, não sorri muito, mas ela é espetacular, tem uma inteligência rara e capacidade de síntese e objetividade. Adoro ela, adoro sua força!” 

Para além do Museu, o entusiasmo do momento se estende ao Parque Nacional Serra da Capivara, onde trabalham 68 guias, todos moradores da região, alguns com formação em curso superior ou técnico pelas universidades e instituições de ensino instaladas na região após chegada do Parque. Há campi da Univasf (Universidade Federal do Vale do São Francisco), da Uespi (Universidade Estadual do Piauí), do Ifpi (Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Piauí), Núcleo de Ensino a distância da Ufpi (Universidade Federal do Piauí), além de universidades particulares.    

 A guia Ana Paula, neta de antigos moradores da região e moradora da Comunidade Sítio do Mocó, considera o Parque e os dois museus “uma benção” para a região. Ao cruzar com um grupo de turistas do sul do país foi possível ouvir explicações científicas sobre as pesquisas no Boqueirão da Pedra Furada e a conclusão: “Antes eu não era nada. Agora eu sou Alexandre, guia”.  

Além da visibilidade que está conferindo ao local, o Museu da Natureza é combustível de novos afetos, dado ao inegável cuidado com que foi projetado e construído e ao modo como vem sendo percebido pelos moradores. Na despedida do Museu, Roseli afirma que muita coisa vai mudar: “eu vou ter até que aprender inglês”. E você já sabe algo? Com o sorriso que quase dispensa palavras, ela diz: “Thank you.”  

Foto: André Gonçalves

Como chegar 

De avião até Teresina ou de Petrolina. Depois o trajeto é feito de veículo próprio ou alugado, ônibus ou vans até São Raimundo Nonato. O aeroporto inaugurado em São Raimundo Nonato recebe apenas aeronaves particulares. 

Distâncias 

– De Teresina: 523 km 

– De Petrolina: 397 km 

Utilize app de navegação por GPS, pois as estradas estão mal sinalizadas. 

Museu da Natureza 

Em Coronel José Dias, a poucos metros da entrada do Parque Nacional Serra da Capivara. 

Aberto das 13 às 19h (ingresso até às 18h. Fechado às terças-feiras) 

Inteira: R$ 30,00 (trinta reais). 

Meia para estudantes, pessoas acima de 60 anos e grupos acima de 10 pessoas. 

Parque Nacional Serra da Capivara 

Aberto das 8h às 18h (ingresso até às 17h).  

A entrada no Parque é gratuita, mas o visitante deve solicitar o serviço de guia na entrada do parque ao custo de 150,00 reais por grupo. Esse investimento fica integralmente com o guia. 

Considerado Patrimônio Mundial pela Unesco, o Parque é administrado pela FUMDHAM em cooperação com Instituto Chico Mendes (ICMBio) e Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN).   

Museu do Homem Americano 

Em São Raimundo Nonato. 

Aberto das 9 às 18h (ingresso até às 17h. Fechado às segundas-feiras). 

Inteira: R$ 18,00 (dezoito reais). 

Meia para estudantes, pessoas acima de 60 anos e grupos acima de 10 pessoas. 

Publicada em Revestrés#39 – janeiro-fevereiro de 2019.