O JUNTA Festival – Dança e Contemporaneidade – realizou a sua décima edição: o JUNTA X (15 a 20 de outubro de 2024). São 10 anos realizando, em Teresina, Piauí, um acontecimento difícil de definir, já que é muito mais que dança: talvez esteja melhor representado na palavra – também fugidia – contemporaneidade. Em todas as edições, Revestrés esteve acompanhando a programação. No JUNTA X, discutimos entre nós alguns dos espetáculos e, agora, partilhamos nossas impressões, sensações e sentimentos, em textos assinados por Samária Andrade e André Gonçalves. São textos movidos muito menos pela ideia de uma crítica formal, e muito mais pelo que as atividades aqui elencadas provocaram – e continuam reverberando. A cada semana, partilhamos um texto novo. Acompanhe.
Por André Gonçalves e Samária Andrade | Fotos: Victor Martins
No Nordeste, o Bumba Meu Boi é mais que festa: é um mito fundacional, mitologia viva de morte e renascimento, encenada entre batidas de tambor, ladainhas, tecidos coloridos e suor. Nele se conta a história de Catirina, mulher grávida que deseja comer uma língua de boi. Seu desejo é simples, mas bastou desejar para que se tornasse uma ameaça. Por amor, obediência ou medo, seu companheiro mata o boi favorito do patrão apenas para satisfazê-la. É esse desejo de Catirina que desencadeia o drama.

Seu desejo é simples, mas bastou desejar para que se tornasse uma ameaça. É esse desejo de Catirina que desencadeia o drama. | Foto: Victor Martins
Dentro dessa história grandiosa, Catirina sempre ocupou lugar paradoxal. Ao desejar a língua do boi, gesto que dá início e move toda a trama, ela é força motriz do enredo, mas permanece marcada como causadora de ruína. Sob a beleza vibrante e colorida do Bumba Meu Boi há, também, uma história amarga: uma mulher é alma e peça-chave da narrativa, mas também bode expiatório. Sua fome é pecado e, seu desejo, a origem da queda e da desordem. Essa voz feminina, no mito nordestino, é ao mesmo tempo fundamental e marginalizada, silenciada e necessária para o drama. A língua do boi é para ela, mas a história nunca é sua, já que Catirina é o desejo que carrega a culpa, a mulher que provoca o colapso da ordem e que, por isso, precisa ser calada dentro da narrativa que ajudou a construir. Para “reparar a falta” de Catirina há rituais, pedidos de perdão, negociações e, ao fim, o boi renasce e a festa continua, mas Catirina desaparece no silêncio, dispensada de qualquer alegria.
É contra esse destino silencioso que Amanda Oliveira dança. Em A Boia, apresentada no festival Junta X, ela não apenas encarna Catirina, mas a reinventa. No espetáculo, rompe o ciclo de culpa e reescreve o centro da festa no corpo da mulher, que deseja e não deve se desculpar por isso. O próprio título do espetáculo já é um gesto de insubmissão: A Boia. Em uma entrevista, chegou a explicar que não era “a bóia”: é “a bôia” como feminino de boi, como modo de inscrever um novo corpo no espaço abafado da tradição. “Bôia”, falado com acento fechado, com a ironia de quem diz “o jogo virou” e desvia o eixo, feminiza o boi, desloca a centralidade do animal para a mulher. Não é mais o boi que comanda a festa, nem sua morte que organiza a roda.
Sozinha no palco, numa solidão difícil que poderia pesar mais que o figurino, Amanda é uma só, mas também é muitas. É Catirina, a protagonista, ou são várias, as Catirinas. Cada gesto seu convoca as mulheres cuja fome foi transformada em fardo, a voz transformada em vazio, Catirinas que atravessaram todos os tempos. Talvez por isso o público tenha sido trazido para mais perto, para cima do tablado no qual ela dança. Com o espaço reduzido, a plateia tão próxima, cria-se um espaço de ficção e fricção em que não há distância que seja segura para o espectador. Somos obrigados a ver, a ouvir, a sentir o corpo que dança e que desafia, e estamos perto demais de seu desamparo. Ela nos olha nos olhos, de todos nós, e talvez seja o olhar de Amanda a linha mais tensa desse espetáculo: olhar que fende o ar como uma lâmina, que carrega, com doçura, fúria e esperança, a memória de quem nunca foi autorizada a desejar. Olhar de quem foi ensinada a baixar os olhos, mas que agora sustenta o mundo inteiro em seu gesto de encarar, que não pede desculpas.

Amanda funda uma nova Catirina, que deseja sem culpa, que não precisa pedir perdão e que permanece. A Boia é, assim, um rito de inversão. Ela não destrói o Bumba Meu Boi: desestabiliza a tradição ao revelá-la por dentro. | Foto: Victor Martins
Há um instante em que a boia parece sangrar, e o sangue que escorre ameaça nos molhar os pés: nesse momento, somos remetidos à necessidade de se ter a coragem de sangrar para renascer. Na dança da boia seu corpo ora vacila, ora finca raízes, ora corre como quem foge de uma sentença já recusada, como quem escapa de um destino que não escolheu. A fuga é exasperante. É o gesto de quem rasga o roteiro imposto, de quem se recusa a participar de um teatro, uma peça que não escreveu. Amanda dança a história. Não a história oficial, mas a dança do que foi omitido: a força que pulsa por baixo da culpa, a autonomia dos corpos que a tradição se habituou a docilizar. O que importa deixa de ser a expectativa do retorno do boi e a restauração da “ordem” pela autoridade-homem, autoridade mágica, branca e religiosa, e passa a ser a manutenção da mulher em cena, central e inteira.
A artista não dança para repetir. Dança como quem exige autonomia e liberdade para escrever novas histórias, descobrir novas vontades, ouvir e falar com suas vozes. Dança para refazer e funda uma nova Catirina, que deseja sem culpa, que não precisa pedir perdão e que permanece. A Boia é, assim, um rito de inversão. Ela não destrói o Bumba Meu Boi: desestabiliza a tradição ao revelá-la por dentro, ao arrancar suas máscaras de festa para mostrar que, por trás das cores e ritmos, existem estruturas de opressão que ela carrega e perpetua.
No final de A Boia não há boi ressuscitado, nem festa, nem paz restabelecida. Há cansaço, silêncio e um palco encharcado pelo que escorre de um corpo em absoluta insurgência. E isso nos lembra que dançar, às vezes, é o mais profundo ato de insubmissão.
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André Gonçalves é artista, escritor, publicitário, Mestre em Comunicação e Doutorando em Filosofia pela UFPI (Universidade Federal do Piauí).
Samária Andrade é Jornalista, Professora de Jornalismo da UESPI (Universidade Estadual do Piauí) e Doutora em Comunicação pela UnB (Universidade de Brasília).
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FICHA TÉCNICA DO JUNTA X:
Direção Geral: Datan Izaká, Janaína Lobo e Jacob Alves
Curadoria: Datan Izaká, Janaína Lobo, Jacob Alves e Mariana Pimentel
Curadoria INCUBADORA: Mariana Pimentel
Direção de arte e design gráfico: Sérgio Donato
Produção JUNTA X: Wilena Weronez
Produção Circulação JUNTA EXPANDIDO: Datan Izaká e Tulipa Braga
Produção INCUBADORA: Hellen Mesquita
Assistente de Produção: Paulim Beltrão Marathaoã
Receptivo: Tulipa Braga
Fotógrafo: Victor Martins
Storymaker: Cristian Sousa
Vídeo: Victor Martins, Cristian Sousa e Joseph Oliveira
Assistente de direção técnica: Kassyo Leal
Iluminação: Ulisses Pimentel
Montagem geral: Javé Montuchô e Philipe Marinho
Apoio: Anna Raquel, Savana Victória e Larissa Sousa
Bilheteria: Abner Oliveira e Laysa
Lojinha: Laysa Bruna
Textos/legendas: Joseph Oliveira
Libras: Wesley Cardoso, Deuselania Ferreira, Mario Sousa, Josenilda Xavier de jesus e Agatha WAchholz
Social Media JUNTA EXPANDIDO: Mozart Meneses
Social Media: Joseph Oliveira
Assessoria de Imprensa: Tertuliano Vicente e Joseph Oliveira
Edição de vídeos/fotos: Joseph Oliveira
Gerenciamento de anúncios e Tráfego Pago: Abner Oliveira
Apoio: Casa Redemoinho de Dança / Corpo Rastreado / Escola Estadual de Dança Lenir Argento / SESC PI / Biblioteca Cromwell de Carvalho / Complexo Cultural Theatro 4 de Setembro / Pappardelle / Mercado do Pão / Consulado Geral da França em Recife
Produção Executiva: Equipe PROMULTI
Supervisão Administrativa: Alba Roque e Tamara Andrade – Corpo Rastreado
Realização: JUNTA e PROMULTI