Cultura

Meu verso é meu quilombo ardente*

A negritude guia o caminho do poeta, professor e produtor cultural Nelson Maca.

Se o caminho do ativismo e da militância contra as desigualdades políticas, econômicas e sociais é marcado pela resistência e reivindicação de direitos, a arte e a produção cultural se convertem em importante arma nessa batalha. Para Nelson Maca, no caminho traçado pelas palavras não há espaço para dissociar a arte da militância. É na literatura que a luta também se encontra. 

Nelson Maca | Foto: Leo Ornelas

“Tudo que faço está dentro do recorte da negritude. É algo que vai além do coletivo cultural e artístico, é também uma entidade do movimento negro, porque, para a gente, não existe arte pela arte e nem existe militância sem arte. Nossa arte existe como militância e expressão”, aponta. “A minha literatura e a literatura negra são, em si, o movimento. Falar de negritude, beleza negra, falar da revolução, isso já é ser político”. 

Em sua poesia, Maca, 55 anos, fala da negritude cotidiana, narrativas que dão conta das violências, dores e da luta pela sobrevivência. As palavras formam um manifesto de revolta contra o sofrimento do povo negro, armas quentes que servem de levante e também de acolhimento. “Eu sou produtor cultural de negritude. Meu objetivo é esse: representar mais o negro e trazer mais pessoas negras para os espaços”, reforça o produtor cultural independente há mais de trinta anos, poeta e também professor de literatura do ensino superior. 

Tudo que faço está dentro do recorte da negritude. Para a gente, não existe arte pela arte e nem existe militância sem arte” – Nelson Maca.

O envolvimento com a negritude, associado ao seu entendimento como homem negro e às questões que isto envolve, fez com que saísse do interior do Paraná, onde nasceu, para viver em outros locais até morar definitivamente em Salvador. “Eu saí do interior para estudar, não foi por outra coisa. E foi ali pelos 14,15 anos que fui me aproximando da negritude e comecei a participar de coletivos negros e da militância organizada”, relembra. “Quando conheci a Bahia enlouqueci, porque vi aqui uma África. A negritude, os orixás, o carnaval, a estética negra, uma população majoritariamente negra, a autoestima. Então foi inevitável: vim morar aqui em 1989, transferi meu curso de Letras e mergulhei”, comenta. 

Nesse meio tempo, Maca percorreu o caminho da criação e da produção cultural intensa. Dos projetos, podemos citar as performances surgidas no grupo Tamborismo e na banda CandomBlackesia, além do lançamento de três livros: Gramática da Ira (2015), Go Afrika (2019) e Relatos da Guerra Preta ou Bahia Baixa Estação (2020), que levam o selo do Blackitude, coletivo criado há mais de vinte anos e voltado para produções culturais e outras atividades. “Nós surgimos como um coletivo de hip-hop, com break, grafite, rap. Depois abrimos para outras áreas e passamos a desenvolver atividades de literatura, poesia, cinema, etc”, narra. A iniciativa deu forma ao Sarau Bem Black e ao seu envolvimento com outros eventos culturais, como a Balada Literária. “A cidade me acolheu mesmo”, conclui. 

Com a pandemia, a produção cultural salvou os dias que seguiram carregados de dores e aflições inerentes ao momento caótico. As atividades presenciais foram interrompidas, mas a poesia passou a ser transmitida de modo on-line. “Percebemos no início que, mais do que nunca, a arte, a literatura, seriam importantes. Era muito mais do que necessidade. Tínhamos que nos adaptar porque, se essas produções subjetivas parassem, a gente enlouqueceria de vez”. Nesse contexto surgiu a Live Exú, anunciada de forma inusitada: um evento na madrugada, às quatro da manhã. “Eu fiz para tirar sarro, provocar, e a galera veio em grupo assistir, conversar, comentar. Continuei fazendo nas semanas seguintes”, solta. O nome faz referência ao orixá responsável por abrir caminhos: “é o orixá que vai sempre na contradição, quebrando as estruturas, enfrentando e causando conflitos, e essa era a ideia”, acrescenta. 

Nelson Maca | Foto: Antônio Terra

O evento seguiu ao longo de 2020, salvando as madrugadas pandêmicas com conversas, performances e reflexões. Suas atividades foram reduzidas quando outro projeto começou: a Oxalaive. Inspirando-se na estrutura da Live Exú, a Oxalaive passa a acontecer uma vez por semana, realizando entrevistas com convidados e promovendo saraus com diferentes participantes, acontecendo nas tardes de sexta-feira. “É o inverso. Segunda, a Live de Exu é teoricamente a abertura, e a sexta é o fechamento da semana. Um abre e outro fecha. Nós pegamos aquela simbologia de Exú e transformamos em simbologia de Oxalá”, explica.  “É uma ideia que não se limita à religião africana, no caso o Candomblé. Mas também são elementos da arte, da música e dos ritmos”, acrescenta. 

Estar atuando como produtor cultural permite a Maca a inserção de mais profissionais e artistas negros, com trabalhos que lidam diretamente com assuntos da negritude. “Quando eu viro o produtor de um evento eu não sou mais um poeta negro procurando espaço no evento: eu sou um poeta negro fazendo a curadoria. Se eu não vir outros negros, aí ninguém vai ver mais. Eu não posso perder esse compromisso”, explica. 

Essa é uma constante luta para promover o rompimento de padrões que se tornaram bases seculares da produção literária. “A literatura ocidental é muito canônica. São homens, brancos, adultos, heterossexuais, que seguem uma produção tradicionalmente escrita que se legitima pelo uso da língua padrão. Quem estiver dentro desse cânone é legitimado”, critica Maca. 

A produção cultural independente abre caminhos para que mais pessoas negras, LGBTQIA+ e indígenas possam se inserir no contexto. A escrita periférica, vista como marginal e que engloba as produções negra, feminista e indígena, é inserida em um coletivo identificado por Maca como “literatura divergente”. “Esse é um conceito que venho trabalhando. É a literatura que faço e milito”, explica. Para o poeta, a literatura divergente vem para romper os cânones. “Comecei a pensar que queria fazer parte de uma literatura que desobedecesse, que não se limitasse apenas a escrita e que não se enquadrasse no padrão dominante”, acrescenta. 

Assim, a literatura negra funciona também como quilombo, um lugar de identificação, partilha e luta, para romper a lógica excludente dos espaços. “Nós temos que ser a fissura da estrutura, o que vai rachá-la, fazê-la mudar”, finaliza Maca. 

*O título é um verso adaptado da poesia Instinto de Negridade, do livro Gramática da Ira (2015).

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