roberto-burle-marxLuiz César Fernandes é um ex-banqueiro grisalho que está lá no alto do morro, de costas para um lago de curvas sinuosas e uma paisagem colorida e deslumbrante. Esse recanto paisagístico foi construído em 1948 e era a casa de Odette Monteiro – hoje, fazenda Maramaia, 400 hectares de vegetação exótica e nativa entre Rio de Janeiro e Petrópolis. O paisagista responsável nunca desapegou da obra. Vivia por ali mexendo nas plantas e contemplando sua própria criação. Só cessou as visitas quando, contrariando suas advertências, os novos donos construíram uma piscina, próxima a casa. “Ele passou dois anos sem falar comigo”, lembra Luiz. “Isso aqui é uma obra de arte, você não tira um pedaço de um quadro”, dizia irritado. Não era mais, totalmente, um jardim de Burle Marx.

Esta é só uma das histórias que ilustram o zelo que Burle Marx, artista, retratista, pintor, paisagista, botânico, jardineiro – e não cabem numa linha todas as definições sobre ele – tinha pelos projetos que desenvolvia. A residência de Odette Monteiro é um dos primeiros e está entre os mais famosos projetos – sozinho ganhou mais de 18 prêmios entre Alemanha, Nova Iorque e São Paulo. Era, talvez, o seu preferido, pela autonomia de criação que a proprietária lhe deu e pelas condições naturais do próprio local, margeado por serras e rios – é hoje um clássico do paisagismo moderno, estimado em 12 milhões de reais.

O lugar também é um exemplo perfeito da concepção de jardim que ele tinha – uma obra ordenada pelo homem e para o homem, que casa a arte da cor, a geometria e a botânica. Embora tenha feito belos jardins particulares, seus trabalhos dentro das cidades e em diversos parques públicos destacam o empenho de trabalhar para todos. O encontro com o arquiteto e urbanista Lúcio Costa foi o ponto de partida para isso.

Com formação em Artes Plásticas, Burle Marx levou aos jardins desenhos geométricos, jogo de cores e sombras, verticalidade e horizontalidade e vegetação exótica.

Nos anos 1930, o estudante de Belas Artes no Rio de Janeiro é chamado para juntar-se a equipe do arquiteto, que logo mais contaria também com uma figura essencial da arquitetura brasileira: Oscar Niemeyer. Com ele também Burle Marx trabalhou em obras importantes, como os jardins dos Ministérios das Relações Exteriores e da Educação em Brasília, o Parque do Ibirapuera em São Paulo e também o Conjunto da Pampulha, em Belo Horizonte. Isso só para citar alguns brasileiros. Burle Marx também assinou o projeto paisagístico da Avenida Atlântica (o famoso calçadão de Ipanema) e do Aterro do Flamengo no Rio; o jardim do Museu de Arte Moderna, do Palácio Capanema, da praça do Aeroporto Santos Dumont, do Palácio do Karnak (no Piauí – ver boxe), da Unesco em Paris, do parque Del Este na Venezuela, do Kuala Lumpur City Center Park na Malásia e do Biskayne Boulevard em Miami.

O que há de mais surpreendente nos projetos de Burle Marx? Esta é uma questão que os professores de arquitetura respondem com frequência nas cadeiras de paisagismo dentro das universidades. Alguns já trazem os conceitos levantados por suas obras na ponta da língua: a particularidade no desenho geométrico, com atenção para formas, linhas retas e curvas sinuosas, assim como a assimetria; o jogo das cores e das sombras; verticalidade e horizontalidade como efeito de artifício; o uso de vegetação exótica e todos os demais estratagemas utilizados pelo artista para orquestrar a natureza como um quadro a ser apreciado.

Os especialistas apontam entre as características bem particulares de seus projetos o uso de reflexos com lagos e espelhos d’água, além da implantação de espécies brasileiras no paisagismo. “Burle Marx tinha a capacidade de antever as adaptações naturais das espécies”, frisa Ivna Gadelha, arquiteta e paisagista. “Ele acreditava que as plantas possuem personalidade própria e respeitava isso”, aponta. “Abandonar o sentimentalismo e ter uma visão de sustentabilidade era algo muito vanguardista para a época”.

Não é à toa que seu trabalho é considerado o marco do paisagismo moderno – o livro “The landscape of man” traz Burle Marx em destaque na história do paisagismo no mundo, como a maior referência do século XX. “Ele foi o introdutor do gênero no Brasil e no mundo”, reforça Ivna.

Passear por um jardim de Burle Marx é abrir as portas para todos os sentidos: todas as percepções podem ser aguçadas ao interpretar o ambiente. Shows de beleza, tonalidade, formas, luz, sombras, cores, texturas, perfume, ritmo e movimento. O contraste entre as cores era usado propositalmente e algumas plantas tinham apenas a função de realçar outras, formando uma espécie de moldura. Tudo em perfeita sintonia que dialoga com o entorno do espaço e seus usuários.

Artista que era, costumava fazer os projetos em guache, o que resultou em verdadeiras telas abstratas, prontas para serem emolduradas e irem à parede – muitas das plantas originais são mantidas em arquivo no seu escritório, ativo até hoje no Rio de Janeiro. É como se ordenar a natureza em sintonia bela e plena fosse, antes de tudo, uma obra de arte.

O jardim tropical

Roberto Burle Marx nasceu em 1909, em São Paulo, filho de pai alemão recém-imigrado e mãe pernambucana de origem francesa e holandesa. Aos sete anos começa sua própria coleção de plantas mas só aos 19, quando viaja com a família para a Alemanha e conhece o Jardim Botânico de Berlim, é que descobre aquilo que mais lhe encanta no Brasil: a flora tropical.

Rio Poty Hotel/Blue Tree Hotel

Rio Poty Hotel/Blue Tree Hotel

Encantado com a pluralidade de espécies de seu próprio país, é Burle Marx o primeiro paisagista a romper com o modelo de jardim europeu tradicional – do ponto de vista estético, ele deixa de lado a artificialidade do jardim barroco e o naturalismo do jardim romântico que lhe pareciam inadequados para o Brasil. Para ele, era preciso prestar atenção em um outro tipo de vegetação que estava completamente desvalorizada no país. “As pessoas quando veem a floresta, veem só o mato. Não distinguem as espécies. Imagine, num lugar com mais de cinco milhares ao nosso dispor!”, diz em entrevista de 1989.

Ele já havia passado dos 70 quando decidiu coordenar uma expedição científica à Amazônia. Botânicos, arquitetos, paisagistas e fotógrafos percorreram mais de dez mil quilômetros em 53 dias de exaustiva rotina de observação, coleta de espécie, documentação, catalogação e embalagem de plantas vivas. O resultado foi a descoberta de quase 100 espécies, desconhecidas até então – algumas, como a orthophytum burle-marxii, nomeadas em sua homenagem.

Intelectual, adorava literatura, música – era barítono – teatro, falava sete idiomas, gostava de cozinhar – diz a lenda que até as saladas que saiam de sua cozinha vinham esteticamente harmonizadas – fez pinturas, esculturas, retratos, tapeçaria, cerâmica, joias, figurinos e cenários para óperas. Foi autodidata em arquitetura paisagística, pois sua formação acadêmica era em artes plásticas. Os que com ele conviveram (Burle Marx morreu em 1994, aos 84 anos) são unânimes em dizer que era exigente e gostava de quebrar os padrões, com o atrevimento comum aos curiosos: “Quando eu não tiver curiosidade pela vida, é melhor não viver mais”.

Praça da saudade

No Piauí dos anos 1970, Burle Marx assinou dois projetos paisagísticos, ambos no centro da cidade de Teresina: o jardim do Palácio do Karnak, sede do governo estadual, construído 1972; e a Praça Monumento Da Costa e Silva, em 1975.

Praça da Costa e Silva

Praça da Costa e Silva

Seu contato por aqui era através do arquiteto carioca Acácio Gil Borsoi, que deixou obras relevantes na capital piauiense. Borsoi foi contratado em dois momentos: primeiro durante a gestão de Alberto Silva (1971-1975), na qual reformou o Karnak e seu jardim, e no segundo, por Dirceu Arcoverde. Borsoi era amigo pessoal de Burle Marx e sempre o convidava para assinar o tratamento paisagístico das obras, conduzidas na época pela construtora Lourival Parente.

A Praça Da Costa e Silva foi construída em forma de monumento, uma homenagem ao poeta e às águas, com cascata, fontes, espelhos d’água, plantas aquáticas.

Embora popularmente conhecida como Praça da CEPISA (hoje Equatorial), a Praça Monumento Da Costa e Silva, como o próprio nome sugere, foi construída em forma de monumento para homenagear um dos mais famosos poetas do estado – autor da letra do hino do Piauí – o “poeta dos rios”, o “poeta da saudade”, Antônio Francisco da Costa e Silva.

Eram 20 mil metros quadrados de um terreno com desnível, às margens do rio Parnaíba – tudo isso foi considerado no projeto do artista, que aproveitou a parte mais alta para implantação do monumento com a cascata. Ali também, por baixo da marquise, uma placa de concreto continha a biografia do poeta e painéis de acrílico (posteriormente trocados por aço escovado) nas paredes. A intenção de Borsoi era que o monumento servisse de mausoléu do poeta, fato que nunca aconteceu.

O espaço era, antes de tudo, uma homenagem às águas, representadas pelas fontes, os espelhos d’água, as plantas aquáticas e as placas com poemas do poeta que talvez mais exaltou o Parnaíba. Pensando nisso, Burle Marx resguardou quatro locais para bancos, três deles voltados para a contemplação do rio – hoje, visivelmente impossível, por conta das grades que cercam o local e a ponte José Sarney, construída em 2002.

Em todos os lugares do mundo as obras de Burle Marx são espaços turísticos e locais requisitados para passeio, o que não ocorre aqui” – Wilza Gomes, arquiteta

As arquitetas Wilza Gomes e Karenina Matos, coordenaram em Teresina um grupo que estuda as obras de Burle Marx pelo Nordeste. Aqui, os estudantes, guiados pelas professoras, recuperaram a história da praça para ver que intervenções foram feitas no projeto original ao longo dos 40 anos que seguiram. O traçado permanece o mesmo, embora apenas 6 das 34 espécies sugeridas no projeto sejam encontradas hoje na praça. Além disso, os pesquisadores identificaram 17 espécies que não foram especificadas nos originais de Burle Marx.

“As placas com poemas foram arrancadas, o monumento está pixado, as espécies aquáticas não existem mais e as fontes não funcionam”, destaca Wilza. “Nossa cultura, de um modo geral, não é de preservar”, comenta. “Casa a gente tomba, mas jardim é algo vivo, precisa de manutenção diária para sobreviver”. Para a arquiteta, que considera Burle Marx um humanista, ter uma obra dele na cidade é um privilégio. “Em todos os lugares do mundo as obras de Burle Marx são espaços turísticos e locais requisitados para passeio, o que não ocorre aqui”.

Marcelo Mourão, coordenador da área central da SDU (Superintendência de Desenvolvimento Urbano), afirmou que a prefeitura dispôs de uma verba para ajeitar a pavimentação de todas as praças daquela região. “Não é grande coisa, mas para se ter ideia, só para recuperar as fontes seria necessário um valor maior do que a verba que eu tenho para todas as praças”, afirma por telefone. “O piso de lá é uma pedra de Piracuruca que nem existe mais no mercado, estou tentando uma similar para não ficar com cara de remendo”, informou. Marcelo encontrou em um depósito da SDU as placas com poemas e diz que em breve eles serão recolocados no local. “Realmente não sei dizer quem os tirou ao longo de tantas gestões”, pondera. “Estou tentando olhar para esse projeto com carinho, também sou um grande admirador de paisagismo”.

No Palácio do Karnak, sede administrativa do governo estadual, tantas reformas e gestões diferentes descaracterizaram o que foi proposto por Burle Marx.

Atualmente, não existe nenhum projeto em busca de um tombamento do espaço enquanto patrimônio cultural da cidade. O mesmo ocorre com os jardins do Palácio do Karnak, sede administrativa do governo estadual. Tantas reformas e gestões diferentes descaracterizaram aquilo que foi proposto por Burle Marx – a vegetação rasteira e arbustiva deixou de existir assim como houve modificação de algumas espécies. “Eu levo os alunos lá e é como fazer um trabalho de arqueólogo para identificar os traços originais que existiram ali um dia”, diz Ivna Gadelha. A assessoria do governo informou que a manutenção do jardim é de responsabilidade do gabinete militar do palácio e que a manutenção, replante, limpeza e poda do jardim é feita com certa frequência. Apesar das intervenções, ainda é o espaço que preserva os espelhos d’águas de que tanto gostava o artista.

O mais recente e menos alterado projeto de Burle Marx no Piauí é o jardim do Rio Poty Hotel, hoje, pertencente ao grupo Blue Tree Tower. Localizado na Avenida Marechal Castelo Branco, o projeto é de 1986 e teve Hugo Biagi Filho como paisagista colaborador. Há poucos anos o jardim sofreu uma forte intervenção quando o hotel mudou o acesso de entrada para carros e pedestres para a lateral. “Apesar de tudo ainda é onde conseguimos perceber com mais nitidez as características do trabalho de Burle Marx”, afirma Ivna. “Já era um paisagismo para interiores, que integrava o espaço externo e interno quando ainda nem se falava disso”, observa. Por ser, talvez, um espaço privado, o local preocupa-se com certa manutenção– ainda que nem sempre leve em conta a assinatura de nada menos que o maior paisagista do século XX.

(Matéria publicada na Revestrés#27 – Outubro/Novembro 2016)

Novas assinaturas de Revestrés estão temporariamente suspensas. Devido a pandemia de Covid, a Revestrés#45 circula online e pode ser baixada ou lida gratuitamente CLIQUE BAIXE O PDF (link para pdf) OU LEIA ONLINE (link issuu).

***