Naquela sexta-feira, 27 de janeiro, a estudante de Jornalismo Janaina Bezerra arrumava os cachos do cabelo no alto da cabeça, colocava argolas nas orelhas, passava batom, e se enchia de perfume, enquanto andava na ponta dos pés entre os pequenos cômodos da sua casa na Santa Maria, Zona Norte de Teresina. Estava com o sorriso largo porque havia comprado o primeiro notebook da família, que serviria para ela e as irmãs. Há alguns meses o limite do cartão de crédito não havia sido suficiente para fazer aquisição do equipamento. Naquela tarde, sua mãe, Maria do Socorro, voltou para casa chorando por não ter condições de realizar o desejo da filha. Agora tudo era diferente. As coisas pareciam estar mudando. 

Janaína Bezerra | Foto: João Victor Nunes

Enquanto se aprontava para ir à calourada organizada pelos colegas de faculdade, fazia planos: segunda-feira daria início a venda de bolos no pote, feitos em casa, para vender na universidade, e garantir o dinheiro da reforma do seu quarto. Confidenciar isso à Socorro parecia uma forma de acalmá-la, quase como se garantisse o seu retorno para casa no outro dia. Mas nenhum plano foi adiante.

Durante a madrugada, Socorro não teve notícias da filha. Acordou com uma dor aguda no peito, e o marido, Adão Bezerra, se queixava de enxaqueca. Pela manhã, as dores que pressentiram a tragédia tiveram resposta: Janaína havia sido encontrada morta. Naquela noite, um mestrando de Matemática, Thiago Barbosa, tinha arrastado a jovem negra para uma sala a que possuía acesso, estuprou e assassinou Janaína. Foram seguranças da UFPI, no dia seguinte ao crime, que viram o rapaz carregando-a nos braços, já sem vida, pelo campus.

Depois que ela foi tirada da gente, esses momentos são as únicas coisas que nos sobraram” – Janiele Silva, irmã de Janaína.

Dez meses depois do assassinato da jovem, Socorro não quer esquecer que um dia antes de perder a filha, a menina estava feliz. Mesmo que seus olhos fiquem marejados quando toca no assunto, ela continua falando sem embargar a voz. No começo da tarde da última quinta-feira (30), ela participou do descerramento da placa de inauguração do Memorial Janaína Bezerra e do painel em homenagem à estudante no espaço Anfiteatro no departamento de Comunicação Social da UFPI (Universidade Federal do Piauí). Tanto o memorial, quanto o painel, são ações de iniciativa do Centro Acadêmico de Comunicação Social (Cacos), com apoio  do Centro de Ciências da Educação (CCE). A emoção parecia escapar dos seus olhos durante as primeiras apresentações. Quando o silêncio ocupou o palco do anfiteatro, ela gritou: “Janaína, presente!”. Em coro, a plateia respondeu: “Janaína, semente!”. 

Painel em homenagem a Janaína Bezerra | Foto: Francisco Clarin

O painel que antes era cinza ganhou o rosto de Janaína, com um largo sorriso e as costumeiras argolas douradas, e também virou palco para uma série de atividades culturais organizadas pelo IX Simpósio Internacional sobre a Juventude Brasileira (Jubra), evento realizado por universidade e institutos do Piauí e Maranhão que, nessa noite contaria com homenagens e declamações de poesias. No mural, ilustrado pela artista visual Ivih Ribeiro, foi grafitado os seguintes dizeres: “Mas não esqueci de falar”, à esquerda. “Falo em poesia negra”, à direita.

Para a plateia formada por professores, professoras e visitantes,  o clima era de certa insatisfação e revolta. Quando integrantes do Cacos subiram ao palco, a membra Clara Bispo relembrou que aquele não era um dia feliz na UFPI. Nem esse, nem os outros após a morte de Janaína. “Nos esforçamos pelas homenagens, mas não era para elas estarem acontecendo. Era para Janaína estar aqui, fazendo seus trabalhos com a gente. Janaína merecia estar viva”, disse no microfone.  

Há pouco menos de dois meses, quando se tornou pública a pena de Tiago pelos crimes de estupro, homicídio, vilipêndio de cadáver e fraude processual, veio a frustração: 18 anos e seis meses de prisão, quando a estimativa prevista pela acusação era de 70 anos. O número caiu porque o qualificador de feminicídio, quando há menosprezo e violência em razão do gênero da pessoa, não foi incluído. E agora, quase um ano após o crime, as coisas pouco mudaram na universidade. O medo e insegurança, para muitas mulheres e pessoas negras, parece o mesmo. 

Uma das artistas que subiram ao palco foi a poeta Psico Afrodite. Ela relembrou que, há poucos dias, um estudante de geografia foi assediado dentro do campus, à noite, por um homem desconhecido. “Se masturbou em direção ao estudante dentro do banheiro masculino”, detalhou a nota do Centro Acadêmico de Geografia (Cageo) nas redes sociais. Na sua letra, ela soltou versos sobre poucas possibilidades quando se é negra e pobre, e como, mesmo após a morte de Janaína, situações de assédio e violência continuam sendo sufocadas ao invés de combatidas. Ela pediu para que a plateia repetisse: “Interventor não é reitor”. A plateia obedeceu. 

Família de Janaína | Foto: Vitória Pilar

Enquanto Afrodite lançava seus versos e vaias à Administração Superior, a família de Janaína (mãe, pai, irmãs, tias e primas), acomodada na primeira fila, foi conduzida por servidores da UFPI em direção ao estacionamento. Quem estava no local achou estranho o movimento de servidores que se formou para levar a família às pressas, no momento das críticas e denúncias dos estudantes. À reportagem, a diretora do CCE, Eliana Alencar, explicou que a responsabilidade com o translado da família era somente até o horário do descerramento da placa, que marcava a entrega do memorial como cerimônia oficial. E voltariam assim que encerrasse, não estendendo o compromisso até às atividades do Jubra. “O motorista também tinha horário de encerrar suas atividades, que já estava extrapolando às 19h”. 

Para não perder a carona oferecida pela UFPI até a sua casa, um trajeto de quase 14 quilômetros, a família aceitou ir embora antes de assistirem a todas as apresentações preparadas em memória da filha pela comunidade acadêmica. Não era esse o desejo da família: “Queríamos ter ficado até o final. Era uma homenagem para nossa irmã”, contou Janiele Silva, por telefone. “Depois que ela foi tirada da gente, esses momentos são as únicas coisas que nos sobraram”. 

Em nota enviada à reportagem, a Administração Superior da UFPI declarou que desde o retorno às aulas presenciais em julho de 2022, foram adotado medidas abrangentes para fortalecer a segurança nos Campi. Em lista, citam melhorias na segurança efetiva, como aumento de câmeras, moto-rondas e restrição de acessos noturnos, assim como parcerias com instituições como a Polícia Militar e a Secretaria de Segurança. Segundo a instituição, ao longo dos ultimos meses, foram desenvolvidos debates, seminários, e a elaboração de políticas e protocolos, com destaque para a implementação antecipada de medidas contra o assédio sexual.

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