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(Foto: Mauricio Pokemon)

Há quem escute música procurando prestar muita atenção em aspectos formais e técnicos da melodia e composição. E há quem escute e se emocione sem ao menos saber o porquê. Sopro, percussão, cordas, instrumentos diferentes compondo a mesma canção. Há quem diga que é ciência. Há quem diga que é pura emoção.

Pensar na harmonia, técnica e precisão de uma orquestra impressionada – um monte de gente passeando por notas regidas pelo maestro – aquela figura que, como condiz ao nome, conduz tudo com maestria. Técnica, compasso, ritmo: a beleza e encanto de uma peça em execução.

O quanto há pra entender na música clássica? A complexidade das composições, a cadência perfeita de pessoas tirando sons de instrumentos que, combinados, despertam sensações que até quem diz não gostar desse estilo, acaba se rendendo. O quanto há para se viver dela? O bastante para que passe de lazer a profissão.

Estamos falando de arte – mas de um negócio também. A pesquisa mais recente sobre o mercado fonográfico brasileiro, feita pela Associação Brasileira de Produtores de Discos (ABPD), aponta que, do total de vendas de discos em 2011, 73,5% foi de música popular brasileira, 25,2% de artistas internacionais e somente 1,3% de música clássica. Os números estão em queda, mas acompanham o movimento de declínio na venda de CDs e DVDs em todo o mundo.

No caso da música clássica, a renovação de artistas talvez seja sintomática: estamos no século XXI e ainda hoje se toca Mozart – um legado que talvez leve outro século para ser substituído. Ainda que apareçam novas peças, ninguém vai desprezar o que já se convencionou chamar de clássico. Os músicos falam de seus professores, mestres ou ídolos dando enorme importância à linhagem a qual pertence – foram através deles que muitos conheceram, pela primeira vez, a magia de um acorde. “Fui aluna de Emmanuel Coelho Maciel”, “Meu compositor preferido é Claude Debussy”, “Estudei piano com Luizão Paiva” ou “Aprendi regência com Beethoven Cunha” e por aí em diante. O conhecimento percorrendo gerações, definindo um modo de fazer, um gosto em comum.

Apesar dos problemas de renovação de público, a música clássica atrai indivíduos muito mais diversos do que tendemos a pensar. Nessa reportagem, ouvimos alguns nomes da nova geração da música clássica e nos deparamos com perfis diferentes – e ao mesmo tempo semelhantes – unidos pelo estudo, a dedicação e o amor pelo que fazem. Gente que busca sentimento atrás da nota musical, que pode trocar o violino pela rabeca, o coral pela sala de aula e um violão clássico por guitarras, sem perder a capacidade de se alimentar de som.

O clássico é pop

Beethoven, Chopin, Bach, Mozart, Stravinsky, Tchaikovsky. Imortalizados por suas composições, continuam sendo referências internacionais da música clássica. Por séculos, essas sinfonias ocuparam os teatros e cortes, mas eram privilégio de poucos. Porém hoje, a música clássica está nas praças, nas escolas, nas universidades e nos shoppings.

“A música clássica tem estruturas formais e complexidades técnicas variáveis que a tornam, para muitos, incansável. Não é verdade. O leigo, o ouvinte comum, desde que tenha a oportunidade de contato com esse tipo de música, termina por encontrar um mundo de beleza imensa”, diz Frederico Marroquim, pianista e crítico musical.

Foto: André Gonçalves

A produção de clássicos utiliza cada vez mais a tecnologia e a linguagem pop. Do lado de outros estilos, a clássica constitui fonte de inspiração. A verdade é que a divisão entre música clássica e música pop existe mais na imaginação do que na realidade. Entre os músicos, essas barreiras diluem-se no simples dilema de saber tocar bem. “O estudante de música tanto pode ir pro campo da música erudita como da popular, e ele vai tocar com a mesma qualidade técnica, com a mesma perfeição”, diz Samuel Fagundes, professor de Regência, Sopro e Orquestração da Universidade Federal do Piauí. “Não existe uma diferença dentro do estudo. O aluno pode enveredar por qualquer caminho, a essência é a mesma”.

Aos 35 anos, Samuel faz parte da nova geração de músicos eruditos – aqueles com menos de 40 anos, flexíveis, que passeiam do clássico ao pop e encabeçam concertos contemporâneos. Carioca, formou-se em música pela Universidade Federal de Minas Gerais e especializou-se na área de regência e performance. Com a Jazz Sinfônica, projeto que lidera há dois anos na Ufpi  e envolve alunos da graduação em Música e Extensão, une a orquestra dos moldes eruditos a uma big band de jazz. O resultado é uma sonoridade que explora territórios musicais nada comuns e produz uma estética inovadora. “Com a Jazz eu pego coisas que é do popular, o jazz, o samba, o blues, a disco music e misturo com o erudito com a mesma qualidade musical que exige os padrões musicais”.

Ao contrário do que se pode pensar, a música clássica, segundo o maestro Cássio Martins, não está neste patamar inatingível, que muitos consideram. Ele, que se formou no Conservatório de Música Pavan Capparelli, e é mestre em Performance Musical também pela Ufmg, acredita na acessibilidade de ingressos e ocupação de diferentes espaços para disseminar o estilo. “Ainda precisamos convencer o público de que o teatro não é somente para os cultos e para a elite”, afirma. “Os grupos precisam ir para os bairros, divulgar que o teatro também é deles. Tem que oportunizar concertos em espaços de maior circulação e oferecer preços mais populares”.

O leigo, o ouvinte comum, desde que tenha a oportunidade de contato com esse tipo de música, termina por encontrar um mundo de beleza imensa.

Fred Marroquim

Amante profissional

Entre os meses de julho e agosto de 2014, David Teixeira passeava entre os maiores nomes da música clássica no Brasil e no mundo. Ele, que cursa Música na Universidade Federal do Piauí, foi selecionado, aos 25 anos, para o Festival Internacional de Campos do Jordão – o maior no estilo na América Latina.

O Festival é reconhecido pelo critério rigoroso em sua seleção de bolsistas. “Eles exigem um perfil de aluno padrão, com idade limite e nível técnico específico para cada instrumento”, comenta David, que toca viola erudita. A classificação é feita através de vídeos que os próprios candidatos mandam. David foi escolhido junto a outros 144 músicos de todo o mundo – distribuídos em classes de instrumentos, composições e regência. Durante três semanas eles assistem aulas ministradas por renomados professores, tudo custeado pelo Festival.

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(Foto: Mauricio Pokemon)

“Foi uma experiência inesquecível, enriquecedora e gratificante”, diz o violinista que começou os estudos musicais aos sete anos – mas acredita que a ligação com a música vem de muito antes, da barriga da mãe. “Ela estudava canto na igreja, e acredito que vem daí essa minha relação com a música”. Ele escuta quase tudo do erudito – Bach, Mozart, Dvorak e outros – mas também vai de rock como The Strokes, Apocalyptica e Blink 182. “A música para mim é algo divino, tem poder sobre mim”, confessa. “Ela me faz ver as coisas de forma diferente, me consola, é meu refúgio e minha força”. A declaração é exagerada como a de um amante a moda antiga. “Não consigo imaginar minha vida sem ela”.

Expressão sem rótulos

“Todos os homens são iguais. Mas alguns são músicos”, é o que diz uma imagem compartilhada no facebook de Lucas Coimbra Mesquita, 25 anos. Natural de Brasília, toca contrabaixo e começou a sua história na música quando veio morar em Teresina, em 2004.

O plano era um cursar outra coisa, mas Lucas acabou conhecendo a galera da música e iniciando no violão. Montou uma banda e fez o curso técnico de Música no Ifpi, onde aprendeu a ler e escrever partituras. “Foi aí que começou minha história como compositor”, conta. Mostrando a versatilidade, ele também toca baixo na banda Bia e os Becks, formada por amigos para tocar nova MPB.

Lucas escreveu a primeira peça erudita inspirado por Philip Glass, um compositor contemporâneo. Chama-se “Odisseia no Mar”, mas nunca foi executada. A partir daí, não parou mais. Compôs também uma peça em homenagem ao professor João Valter Ferreira, que se despedia do Ifpi e recebeu esse presente do aluno.

Ele entrou para o curso de Música na Ufpi em 2010, onde aprendeu canto com a professora Deborah Oliveira e de lá para cá participou de óperas e teatro musical – como a Ópera do Malando no 34o CIVEBRA, apresentado no Teatro Nacional de Brasília, e a montagem de Jesus Cristo Super Star em Teresina. Na Jazz Sinfônica, Lucas é baixista e arranjador – e alguns concertos montados pelo professor Samuel Fagundes executam sua peça intitulada “Azul”.

Aos 25 anos, David Teixeira, aluno da UFPI, foi selecionado para o Festival Internacional de Campos do Jordão,  o maior no estilo na América Latina.

Jeonai Batista também encontrou na música sua principal forma de expressão. Ele entrou na Escola de Música de Teresina aos 15, e logo depois começou as aulas de canto e piano na Escola de Música Adalgisa Paiva (Emap) da Ufpi. Entre seus mestres estão os pianistas Luizão Paiva e Beetholven Cunha, com quem começou as primeiras noções de regência.

Hoje, aos 27, estuda canto, piano e regência em Campina Grande, onde está há três anos. “Eu gosto de música bem feita, bem elaborada, que tenha melodia, fraseado, harmonia. O rótulo não me interessa muito”, esclarece. “Mas a maioria do que eu escuto, toco e canto se enquadra no que chamam de música erudita”, diz afirmando que seu compositor favorito é Claude Debussy. “Por conta de sua sonoridade, e, claro, da belíssima Clair de Lune”.


Poesia que vem do som

Aos 33 anos, Wanya Sales acredita que seu destino musical foi escolhido por sua mãe. “Ela me botou num coral infantil, aos quatro anos, que ficava perto da minha casa, uma comunidade carente no Parque Alvorada”, relembra. Do coral Raio de Sol foi parar na Orquestra de Câmera, que começava a se formar e recrutava jovens interessados a aprender a tocar um instrumento. Era o embrião da Orquestra Sinfônica de Teresina, em 1993.

Com o professor Emmanuel Coelho Maciel, Wanya começou a aprender violino, por volta dos 14 anos. “Algum tempo depois eu entrei como bolsista na Orquestra, já sob a regência do Aurélio Melo, e aqui estou até hoje”. Wanya se divide em ensaios e apresentações da orquestra com o grupo Valor de PI, onde troca o violino pela rabeca e percussão, e o clássico pelo popular. Além disso, tem sempre agenda cheia de apresentações em eventos sociais, como casamentos e inaugurações. “Tem fim de semana que toco de sexta a domingo, sem parar. As pessoas estão valorizando mais e é um mercado que paga bem para músicos bons”.

A violinista decidiu que ia viver da música quando tentava conciliar o curso de contabilidade com os ensaios da orquestra. “Como eu já era bolsista, tinha um compromisso ali. Logo depois assinaram a minha carteira e eu pensei ‘é, isso aqui tem futuro”.

Hoje ela está prestes a concluir o curso de Música na Ufpi, dá aulas de violino e rabeca na Escola de Música de Teresina e acredita na educação musical para uma cultura mais rica. “Quem bem souber educa os filhos com música”, diz ela, mãe de duas meninas que já estudam sanfona, bateria, e, é claro, o violino. “Esse instrumento aqui já me levou a conhecer quase o Brasil todo”, orgulha-se. “Vivo e me sustento disso, e sou feliz por ter uma profissão que é sempre divertida”.

Quem também se diverte nos ensaios da OST é Tarso Aurélio, violista, que entrou ali em 2005. Aprendeu violão com os irmãos quando criança, ouvia muita MPB, Pop Rock e Beethoven. “É uma outra linguagem, tipo poesia”, explica. “Aprender a ouvir, depois a ler, treinar solfejo e entender o sentimento de cada composição”. Tarso pratica o que chama de engenharia reversa “Tento decodificar os sons da música e desvendar os sentimentos do compositor naquela melodia”.

Aprender a ouvir, depois a ler, treinar solfejo e entender o sentimento de cada composição. Tento decodificar os sons e o que o compositor quis passar naquela melodia.

Tarso Aurélio, da OST

Música para vender

Ainda é notável a informalidade no mercado de música piauiense – a parcela formada por músicos “práticos” ou “amadores”, como se costuma chamar aqueles que não possuem o conhecimento acadêmico. “Existe um mercado para ele aqui e em todo o Brasil, mas, pela experiência que eu tenho, raramente esse músico consegue hoje alcançar altos escalões da música”, aponta o maestro Samuel Fagundes.

Lecionando no Piauí há dois anos, ele observa o receio de bons músicos em procurar uma qualificação. “Há certo medo de perder o mercado ou mesmo resistência ao estudo acadêmico”, avalia. “Ainda existe essa corrente forte do músico amador e isso faz com que a música erudita verdadeira não seja praticada, porque o erudito de verdade precisa ter estudo técnico, professores, regentes, para desenvolver um trabalho efetivo”.

Frederico Marroquim acredita no amplo mercado para quem escolhe o viés clássico. “Para novos compositores, abre-se um imenso leque de técnicas composicionais, que podem incluir paralelamente à criação, música popular, folclórica, regional, universal, dando-lhes uma roupagem clássica, ou seja, mais rica em sua forma, contemplando novas possibilidades melódicas e harmônicas”, explica. “Há e sempre haverá público para a música clássica”.

O mercado local também surpreendeu Cássio Martins, quando veio para Teresina em 2008 dar aulas na Ufpi. “O profissional de música em Teresina ainda é muito mal valorizado. Um buquê de rosas no altar de um casamento tem mais valor que o próprio músico tocando, vendendo ou ensinando música na cidade”, critica ele, que já assinou musicais como O Fantasma da Ópera, Mamma Mia e Se Todos Fossem Iguais a Você, em homenagem a Vinícius de Moraes. “Tem e não tem mercado. Há muita oportunidade na informalidade, com bandas e aulas particulares, mas formalmente quase não existe”, analisa. “Precisamos cobrar mais profissionalismo, enquanto isso não existir do lado de quem contrata e de quem oferece o produto, não vai haver valorização”, constata.

O trabalho como professor hoje visa, além da formação acadêmica, um incentivo à produção artística. Apesar da inovação musical dos artistas, o desafio tropeça em deficiências básicas, embora a lei 11.769 garanta o ensino obrigatório de música na educação básica. Este papel acaba sendo cumprido por cursos livres, aulas particulares e espaços culturais que disponibilizam o ensino de música no estado.

Existem projetos tímidos que envolvem a participação de jovens na música clássica. “No Piauí ainda são poucos e esbarram na falta de estímulo e incentivo do poder público”, coloca Fred Marroquim. “Isto não significa, entretanto, que não surjam talentos musicais extraordinários, oriundos da orquestra, de bandas, de grupos das mais variadas formações”.

Apesar disso, há iniciativas que resistem as dificuldades. O projeto Música Para Todos, por exemplo, existe há 15 anos e atende em torno de três mil alunos com aulas gratuitas de prática e teoria musical. É voltado para crianças e adolescentes que estejam cursando o ensino básico. “Esse projeto tem metodologia contundente com a realidade cultural de Teresina. Parte dos alunos que começaram comigo lá, hoje são alunos da universidade. Essa era uma das propostas: contribuir com um projeto para a cidade que revertesse em alunos ingressantes no curso de Música”, explica Cássio Martins.

 

Precisamos cobrar mais profissionalismo, enquanto isso não existir do lado de quem contrata e de quem oferece o produto, não vai haver valorização.

Cássio Martins, professor de Música

A orquestra do sertão 

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(Foto: Mauricio Pokemon)

Criada há 21 anos, a Orquestra Sinfônica de Teresina (OST) começou como Orquestra
da Câmara, comandada pelo maestro Emmanuel Coelho Maciel e ajudando bolsistas junto às comunidades menos favorecidas. Alguns nunca haviam estudado música.

Hoje a OST possui 60 músicos e é mantida pela Associação dos Amigos da Orquestra Sinfônica de Teresina, por meio da Fundação Municipal de Cultura Monsenhor Chaves e Prefeitura de Teresina. Tem sido exemplo de divulgação da música erudita
a todos os níveis socioculturais não só na capital, como em todo estado do Piauí.

O maestro Aurélio Melo, o atual regente e diretor da Orquestra, é também o nome por trás dos últimos espetáculos mais aclamados da OST: a cantata Gonzaguiana, que rodou o país inteiro homenageando o centenário do rei do baião ao dar arranjos sinfônicos à música popular do sertão; e o concerto Tropicália, interpretando músicas que marcaram o movimento e divulgando a obra do poeta e compositor piauiense Torquato Neto. “Nós procuramos aproximar a música  do público, fazendo uma fusão do erudito com o popular”, diz Aurélio.

 

(Publicada na Revestrés #16 – set/out – 2014)