Na margem do rio Parnaíba, a água balança sem parar quando a embarcação azul se aproxima. Desde 1977, Sebastião Vasconcelos, o Sessé, se divide entre o motor, o leme da lancha e o rio. Das 6 da manhã às 6 da tarde ele está ali, contemplando a vista feita de céu e água: vigilante, sorridente e atento a cada pessoa que se aproxima em busca da travessia entre a  avenida Maranhão, em Teresina e a  avenida Piauí, em Timon, no Maranhão. Aos 63 anos, é o responsável por embarcar, de uma ponta a outra, quase trezentas pessoas por dia entre as duas cidades. O negócio de Sessé começou com o avô, Benedito Vasconcelos, e depois foi do seu pai, Ney Rodrigues Vasconcelos. De lá para cá, as instalações da embarcação mudaram e ela foi rebatizada: agora se chama 4 de Abril. “É uma homenagem ao aniversário da minha mamãe”, explica o condutor. Guiar o barco, respeitar o som das águas e o percurso do rio já são o cotidiano da terceira geração, com Sessé. 

Foto | Maurício Pokemon

O trajeto, feito em menos de um minuto, custa R$ 2,50 e pode ser pago à vista ou pelo PIX. Sessé ainda está se habituando à nova tecnologia de recebimento, o que explica a dificuldade de lembrar o código do pagamento eletrônico quando solicitado. “No tempo do papai era só em moedinha. Agora o dinheiro é assim, anda circulando invisível”. As instalações internas não são as mesmas de cinco décadas atrás. Pequenos reparos na pintura, bancos e parte elétrica tentam combater a força do tempo e continuar permitindo a locomoção das pessoas. Nada muito radical, apenas o suficiente para manter o legado da família de barqueiros. “É como se durante esse tempo todo a gente tivesse sido empresários do rio. Mas é preciso respeitá-lo”, conta à reportagem, como se fosse um segredo.

Por mais de uma vez o motor da lancha deu algum problema técnico – ou Sessé esqueceu de renovar o óleo. Nesse momento, é preciso calma e paciência. “Não tem muito o que fazer, é esperar o Velho Monge mandar a onda pra gente encostar na ‘beirinha’”. Velho Monge, a quem Sessé se refere, é o próprio rio Parnaíba. Ele não sabe bem o porquê e nem quando aprendeu a chamá-lo assim, mas a vida toda ouviu quem veio antes dele chamar o rio por esse nome, como uma entidade – e agora repete aos mais jovens. Preservar as histórias de quem vivia no entorno do rio, as lendas e o nome a ele dado, sobretudo, é sinal de respeito. “Toda a minha vida cabe nesse rio”, declara, olhando profundamente para as águas. 

“É como se durante esse tempo todo a gente tivesse sido empresários do rio. Mas é preciso respeitá-lo” – Sessé, barqueiro.

Velho Monge: literatura, geografia, história e um monte de outras coisas 

A expressão “Velho Monge” aparece no poema “Saudade”, de Da Costa e Silva, nascido em Amarante, no Piauí, autor do hino oficial do estado e considerado o poeta das águas. A espuma nas margens do rio fez o piauiense enxergar “barbas”, como as de um sábio ancião (“Saudade! O Parnaíba – velho monge/ As barbas brancas alongando…E, ao longe,/ O mugido dos bois da minha terra…). 

Foto | Maurício Pokemon

O nome ficou e segue nas gerações que acompanham os quase 1485 quilômetros de extensão do rio, cortando parte do Nordeste do país. O Parnaíba nasce na Chapada das Mangabeiras, fronteira do Piauí com Tocantins, em uma altitude de 709 metros. Seu caminho assina uma divisa entre Piauí e Maranhão, feita inteiramente de rio. Sinuoso, com trechos retilíneos e raros para a geografia, é um rio confinante, um rio de fronteiras. Antes de se perder no Oceano Atlântico, ao norte entre Piauí e Maranhão, recorta um labirinto de água doce e salgada com cinco braços do rio na saída para o mar, chamado de Delta do Parnaíba.

O Parnaíba não era apenas uma inspiração, mas o próprio personagem” – Daniel Ciarlini, professor de Letras.

A ideia de um rio como um velho sábio, que conecta pessoas e fronteiras, deu inspiração para a criação de um programa de pesquisa na Universidade Estadual do Piauí (Uespi). Se o rio Parnaíba é como uma artéria que conecta o estado de norte a sul, o “Programa Velho Monge”, da Uespi, move seus tentáculos nas ciências humanas, da natureza e da linguagem para construir um acervo de memórias piauienses. No projeto estão envolvidos professores e estudantes dos cursos de Letras, História, Geografia e Ciências da Computação, nas cidades de Parnaíba, Floriano e Teresina, com um alvo: o Piauí atravessado pelo Rio Parnaíba e que emerge em literatura, cartografias, jornais e periódicos publicados. O programa cobre um período de 86 anos (de 1918 a 2004) e, desde seu surgimento, em 2016, os interesses são múltiplos. 

No campo que estuda a Literatura, Daniel Castello Branco Ciarlini, professor de Letras e coordenador geral do programa, explica que o rio é o elemento mais rico da expressão regionalista da literatura piauiense. Três das quatro mesorregiões do Piauí são percorridas pelo Parnaíba (Norte, Centro-Norte e Sudoeste) e, na literatura produzida nesses locais, o rio se faz protagonista de escritores e poetas. “O Parnaíba não era apenas uma inspiração, mas o próprio personagem”, destaca. Em um dos primeiros ensaios sobre literatura piauiense, escrito em 1939, por João da Rocha Cabral, é possível perceber que, nessa época, o rio já aparece como motivação da expressão piauiense no campo das Letras.

Tatiana Gonçalves de Oliveira, professora que participa do Programa Velho Monge na coordenação de conteúdos no campo de História, investigou as publicações do jornal O Popular, que circulou em Floriano a partir de 1912. Com a organização e categorização dos assuntos que circulavam no jornal, percebe-se um conjunto de narrativas atravessadas pelo rio Parnaíba, em uma ramificação de ligações econômicas e socioculturais. A investigação deu vazão para um estudo ainda maior. Com a aluna Rebeca Freitas, Tatiana aprofundou a varredura inicial, estudando as narrativas da chegada da gripe espanhola retratadas no jornal e como o rio Parnaíba teve participação nisso. Pela imprecisão dos números de casos, devido à falta de um sistema de saúde unificado no Brasil novecentista, não é possível saber quantas pessoas foram infectadas no Piauí pela pandemia do século 20. Porém, as rotas dos rios guiam o trajeto dos lugares por onde a doença pode ter chegado ao estado. Na cidade de Parnaíba, por exemplo, principal porto de navios que chegavam da Europa, foi onde houve o maior número de infectados, conforme as notícias do jornal. “As rotas do rio e as notícias apontam para essa relação, mais que econômica, mas com reflexos históricos sobre a funcionalidade do Parnaíba para o estado em muitas dimensões”, diz Tatiana.

O Parnaíba é um elemento da formação territorial, mas também um monte de outras coisas subjetivas e emocionais” – Erivaldo Oliveira, professor de Geografia.

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Em questões geográficas, o professor Erivaldo Costa de Oliveira tem tentado entender a formação do Piauí por meio da cartografia. Ele busca pensar no território a partir de como se deu o povoamento para ocupar as linhas fronteiriças do Estado. Nessa perspectiva, o rio Parnaíba entra como via de articulação entre as cidades piauienses. Com isso, o professor defende a ideia de que o território do Piauí, ainda em um Brasil-Colônia, não existia, mas formou-se, com o traçado do rio sendo determinante em sua constituição e formato geográfico político. Assim, durante o século 18, quando o Piauí ainda era capitania, o rio Parnaíba foi essencial para se pensar o estado como um lugar.

“O estado não é um elemento que existia na natureza, ele foi criado pela relação do homem com o espaço. Nesta relação, o rio, como um elemento material, influenciou na economia, relações sociais, escolhas de povoamento – desde a transferência da capital para Teresina até a arte e a literatura”, destaca Erivaldo. “Tudo isso é um elemento da formação territorial, é geografia, mas também é um monte de outras coisas subjetivas e emocionais”, finaliza o professor. 

Os professores e estudantes do Programa Velho Monge estão em fase de processamento e organização das informações. São mais de 200 gigabytes de documentos, imagens e textos, mais de 50 mil páginas de jornais e revistas, que fomentam a pesquisa. A ideia é lançar todo esse material em site próprio, disponível para novas pesquisas, permitindo que estudiosos de todas as ciências, dentro e fora do país, conheçam um acervo gigante de memória sobre o Piauí. E garantindo que não só pesquisadores, mas a população, possam ter acesso ao conteúdo explorado pelos estudiosos, como o próprio Sessé, já tão próximo do Parnaíba. O professor Daniel conclui: “Certamente poderemos entender mais a respeito do papel que o rio Parnaíba exerceu e exerce para o Piauí, tal qual o escritor Fenelon Castelo Branco chamou: a medula espinhal de sentimentos do piauiense”.

Cuidado com o rio abaixo e rio arriba

Com a futura publicação das investigações dos pesquisadores do Programa Velho Monge, não somente cientistas, mas também a população em geral poderá ter acesso ao conteúdo explorado pelos professores e alunos da Uespi. Uma dessas pessoas é o próprio Sessé, que não faz ideia que o Parnaíba tem os olhos da ciência mirando suas águas. O barqueiro não descarta a curiosidade com a investigação dos pesquisadores. Para ele, tudo o que diz respeito ao rio também lhe interessa. Inclusive saber como as águas que banham parte da sua história tem sido cuidada. 

Foto | Maurício Pokemon

O Parnaíba abastece quase um milhão de pessoas somente na região da Grande Teresina. Além disso, quase onze municípios são diretamente atendidos pelo Velho Monge, conforme apontam dados da Agespisa (Empresa de Águas e Esgotos do Piauí). Ao todo, o total de ligações domiciliares nestas cidades, contabilizados pela empresa no estado, ultrapassa 2 milhões de residências. 

Ao largo da importância do rio, o crescimento de esgotos clandestinos tem ameaçado a saúde das águas e a saúde dos moradores – tanto do lado do Piauí, quanto do Maranhão. Um levantamento realizado pela ONG Repórter Brasil, publicado em março de 2022, revelou que a água estava sendo contaminada por coliformes fecais. Os dados assustam e levantam a preocupação da importância do saneamento básico e tratamento de água e esgoto. O problema acaba esbarrando na desigualdade de saneamento no Brasil, principalmente nas camadas mais empobrecidas do país: quase 100 milhões de habitantes sofrem com a ausência de coleta de esgoto. O número equivale a quase 50% dos brasileiros, segundo IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística). 

O tratamento de água e o cuidado dos rios são intrínsecos ao bem estar da população, uma vez que a água in natura do rio Parnaíba até se tornar potável passa por processos que precisam atender os padrões estabelecidos pelo Ministério da Saúde. Segundo a Águas de Teresina, concessionária de tratamento na capital, são realizadas quase 120 mil análises, a partir de coletas realizadas em 120 regiões estratégicas da cidade, a partir dos Pontos de Controle de Qualidade (PCQs), feitas em laboratório para tornar a água apta para consumo. 

Para aplacar a desigualdade de saneamento na capital, até 2033, a empresa pretende universalizar a cobertura de esgotamento sanitário na zona urbana de Teresina. Atualmente, a cobertura no perímetro urbano é 42,5%. E para isso, o desafio é estar em consonância com a inclusão ambiental e garantir o uso respeitoso das tecnologias. “Uma empresa de saneamento depende de um melhor ambiente para ser sustentável. Sem rio, não há tratamento de água adequado e nem qualidade de vida na cidades”, explica o gerente de operações da Águas de Teresina, Alexandre de Oliveira. “Se aumenta a cobertura de esgoto, é possível permitir um maior tratamento da poluição dos corpos hídricos e consequentemente, melhorar a vida das pessoas”, explica.

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Reportagem produzida e publicada por Revestrés.

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