É preciso estar atento para acompanhar toda a agenda: Instagram, Facebook, Whats App, estas são as formas de tomar conhecimento dos espetáculos, debates, performances e exposições. Também é necessário desviar o caminho, sair das avenidas e, às vezes, entrar em ruelas. Tem que observar menos as grandes fachadas e placas luminosas e, mais, pequenas portas, galpões e amontoado de pessoas.

Quem visita ou vive a rotina de Teresina chega a duvidar da existência desses lugares. E quem não desconfiaria? Equipamentos públicos culturais insuficientes, sucateados ou inacessíveis, funcionamento nebuloso e uma verba disponível que é de fazer chorar o carroceiro e o burro. No entanto, há quem nade contra a corrente.

Do Núcleo de Estudo das Espacialidades Contemporâneas da USP, campus de São Carlos, o professor Dr. Ruy Sardinha Lopes sugere que está se generalizando, em nossa sociedade, a ideologia que preconiza a flexibilidade, a emergência de ações espontâneas e os espaços não institucionais. “As práticas colaborativas, os espaços outsiders e as formas alternativas de circulação e consumo de arte, em grande medida viabilizados pelas novas tecnologias de informação e comunicação, tornariam boa parte dessa produção não somente viável, mas primordialmente mais criativa ou artística, uma vez que dotada de maior liberdade”, afirmou Ruy Sardinha para a reportagem Cadê a cultura que estava aqui? Parte II da Revestrés.

Balde, Sobrado, Campo e Salve Rainha refletem uma cidade espelhada, de ponta-cabeça, do avesso. Alinhavados pelo fazer cultural, três dos espaços compartilham um contexto comum: o fechamento do Galpão do Dirceu, em 2015, após 10 anos de atuação na cidade. Porém, todos eles dispõem da mesma circunstância: artistas administrando espaços com produção fora do itinerário mainstream, que estão engrossando o caldo da movimentação artística na cidade.

Salve Rainha 

Foto: João Albert

Entre 1954 e 2011, às margens do Rio Poty, funcionou o Sanatório Meduna: 3.356 metros quadrados, 120 leitos, dois pátios e um edifício com dois andares. O hospital psiquiátrico de modelo manicomial idealizado e construído pelo Dr. Clidenor de Freitas Santos colocava em prática tratamentos como o eletrochoque, a insulinoterapia, malarioterapia, entre outras formas consideradas, na época, como métodos de cura. Fechado há mais de cinco anos, este foi o lugar que abrigou a última temporada do Salve Rainha. 

Em média, 10 mil pessoas chegam a circular em cada domingo de temporada do evento, que reúne exposições, shows, apresentações artísticas, feiras e rodas de conversas em diferentes espaços públicos da cidade. Há quase três anos ocupando lugares subutilizados e discutindo patrimônio histórico e cultural em Teresina, o coletivo hoje agrega quase 30 integrantes que atuam de maneira voluntária, entre artistas, jornalistas, advogados e estudantes. “Eu associo o Salve Rainha a um organizador de espaços”, diz Sam Jales, estudante e integrante do coletivo. 

Tudo começou na Praça Ocílio Lago. Atrás dos paletes, coroa de papel na cabeça e avental de cozinha no pescoço, Júnior Araújo preparava mojitos no prédio da Fundação do Humor ocupado com exposições e shows. Quase dois anos depois de ter idealizado temporadas na antiga Câmara Municipal de Teresina, debaixo da ponte Juscelino Kubitschek e inaugurado o quiosque do Café Sobrenatural no Parque da Cidadania, ele e o irmão, Bruno Queiroz, foram vítimas fatais de um acidente automobilístico que comoveu a cidade e deixou Jader Damasceno com sequelas até hoje.  

Tentamos fazer vibrar alguma frequência que movimente a cidade – Ana Carolina Magalhães Fortes

“O Salve Rainha tem se preocupado em desenvolver rodas de conversa com questões de relevância social, especialmente ligadas à juventude”, afirma Ana Carolina Magalhães Fortes, advogada e integrante do coletivo. Constantemente convidados por escolas públicas, universidades e faculdades, as ações desenvolvidas vão desde debates sobre o próprio fazer cultural do grupo, passando por temas como feminismo, saúde mental, arte e patrimônio até oficinas no parque ou demais espaços da cidade, além de campanhas como, por exemplo, de conscientização no trânsito. “A própria Academia reconhece esse caráter de renovação que o Salve Rainha traz para a arte e cultura em Teresina. A memória e a relação das pessoas com muitos espaços da cidade foram totalmente ressignificados”, diz.   

Com apoio insuficiente e irregular do governo e município, patrocínios pontuais de empresas, o coletivo segue funcionando com a venda de comidas e bebidas no quiosque do parque e aos domingos de temporada. Além da articulação do evento, que envolve viabilizar o espaço, sistematizar programação e garantir funcionamento adequado das atividades, o coletivo precisa driblar outros empecilhos: com pouco ou nenhum suporte, o transporte de materiais e o lugar adequado para guardar obras e equipamentos têm sido os maiores desafios. “Talvez, a visibilidade que a gente ganhou tenha sido em razão de Teresina ser um lugar de oportunidades escassas, mas o fato de ter continuado existindo foi por esforço interno”, reconhece Ana Carolina. 

A ideia de tirar a arte dos espaços institucionalizados e levar para as ruas os colocou sob diferentes holofotes: público diverso e fomento de produção artística. “A arte ainda é vista como consumo de luxo, como algo glamourizado”, coloca Renata Fortes, jornalista. “Muitos deles não entram artistas, mas acabam se desenvolvendo artistas e é por isso que a gente faz oficinas, para dar essa abertura”, diz a artista visual Renata Reis à respeito de novos integrantes, colaboradores e pessoas interessadas em produzir ou mostrar seu trabalho.  

O que inicialmente era um jovem sozinho fazendo mojitos e mobilizando artistas na cidade tornou-se uma rede agregadora de pessoas e uma galeria itinerante a céu aberto. “E não pense que só nós somos capazes de fazer isso. De jeito nenhum! Sempre dizemos que o Salve Rainha pode ser reaplicável”, reitera Renata Fortes.  

Com o lema resistir, insistir e existir, arte e ativismo social se misturam. Performance que inclui nudez para protestar contra o machismo e a homofobia, rainha de temática negra, ações de visibilidade LGBT´s estão no repertório de shows, exposições e debates. “Tentamos fazer vibrar alguma frequência que movimente a cidade”, diz Ana Carolina. “A gente abre espaço para uma menina fazer oficina de empoderamento para mulheres negras, se isso não é fazer político, o que é?”. 

 

Campo

Foto: Maurício Pokemon

“É um espaço para se pensar, fazer e desfazer com arte e ações afins, em Teresina-Piauí-Brasil”. Há quase dois anos funcionando no bairro São João, zona Leste de Teresina, esta é a definição nas redes sociais do espaço tocado pelo coreógrafo Marcelo Evelin e pela produtora Regina Veloso, com a colaboração de residentes e parceiros, após quase 10 anos de Núcleo/Galpão do Dirceu. “A estética que a gente dialoga aqui tem relação com a dança contemporânea. Busca um questionamento, valorizando os processos e tendo esse caráter de discussão. São obras abertas, que não têm um entendimento pronto”, diz Regina.  

O primeiro projeto aberto ao público aconteceu em janeiro de 2016. Em parceria com entidades holandesas, Campo Aberto reuniu 16 artistas e produtores residentes, selecionados via convocatória, obtendo mais de 80 inscrições vindas de 14 diferentes lugares do Brasil e de outros países, como Uruguai, Colômbia e Portugal. “O campo é um lugar privado que tem procurado criar um lugar do comum e isso vai modificando o ambiente, as maneiras de agir das pessoas e constrói um ativismo nos micromundos que é importante existir”, afirma a produtora. A residência artística resultou na instalação performática Arrow in the Heart, sob direção e produção dos holandeses Tamar Blom e Job Rietvelt. Desde então, o espaço tem recebido residências artísticas, encontros, conversas e concepções coreográficas.  

Última criação do estúdio Demolition Incorporada, plataforma de pesquisa e criação de Marcelo Evelin foi Dança Doente, obra que tem estreia em Bruxelas no mês de maio. O trabalho esteve inserido dentro do Teresina Tohoku, projeto que relacionou Teresina a Tohoku, cidade natal do coreógrafo japonês Hijikata Tatsumi. O projeto colocou em trânsito 40 artistas entre criadores, performers, teóricos, dramaturgos, produtores culturais de Teresina, Japão, Canadá, Holanda, Alemanha e de vários estados do Brasil. “Os artistas do Dança Doente foram solicitados a propor atividades com outros artistas ou com o público em geral da cidade, como uma maneira da arte poder se relacionar com a sociedade e que não seja só do produto espetáculo”, coloca Regina.  

A gente fica aqui procurando: ‘o que que dá pra gente fazer? – Regina Veloso

Um desdobramento de outras oficinas que aconteceram ali e que continuou mesmo após o término desse projeto foi o grupo de residentes que estão atuando no espaço de modo a compartilhar textos, processos artísticos e laboratórios. “Muita gente está vindo mesmo sem ter o vale transporte, cada um fazendo do jeito que pode. Ainda está sendo um investimento”, diz Dudu Moreira, artista residente do Campo.  

Outro cruzamento que atravessa esse modo de cooperar é a reflexão sobre a própria forma de continuidade do espaço. “Tem muita coisa em volta da criação que você tem em mãos. Isso amadurece o entendimento de outro lugar que precisa ser trabalhado e modifica o artista que começa a pensar gestão”, coloca Arthur Doomer, artista visual e residente. “Acabou o projeto e eu queria continuar mantendo essa relação com o Campo. Então, pensamos em outro tipo de troca, não só de dinheiro. Isso também é pensar formas de gestão”, diz Gui Fontineles, artista que, além de residente, está morando no espaço. 

Apesar da rede nacional e estrangeira de colaboradores e da articulação junto a artistas e entidades, o contexto escasso e, atualmente, acentuado para editais de arte e cultura, alcançou o Campo. “Na maior parte do tempo, a gente se financia com os cachês das apresentações da Demolition. Parte dele destinamos para a manutenção do espaço e, um projeto ou outro contamos com algum apoio específico”, conta Regina. “Nunca contamos com nenhum tipo de apoio da Prefeitura, nem de Governo do Estado”, reitera. Apesar da participação em editais e constante tentativa de viabilização das atividades o dia a dia pode ser maçante. “É o tempo inteiro tendo que lidar com empréstimo enquanto não chega outro dinheiro, e mil malabarismos”. 

Com atenção voltada mais fortemente para processos formativos, o espaço tem recebido desde performances até bate-papos sobre mobilidade urbana ou criações com manifestações políticas. “A gente sabe que é algo específico o que a gente faz aqui, que tem uma característica e que nem todo mundo está com abertura pra isso ou tem esse treino de estar participando de discussões, mas tem quem queira e é um hábito que a gente está criando”, considera Regina. “Esse costume de frequentar trabalhos de arte é muito restrito a uma parte da população, não é uma coisa que, em geral, as pessoas sequer compreendam para se sentir convidadas”, diz.  

Com dois estúdios, um escritório, um café-bar e mais de 1.500m² de área multiuso, o Campo se propôs a ser um ambiente de gestão e criação em linguagens contemporâneas.  “Deixa de ser uma visão prioritariamente de negócio e também é – não tem como negar que passamos por aí – mas passa por um entendimento do trabalho e isso é que gera relação com o mercado, a imprensa, os parceiros. Isso define completamente a maneira que a gente toma as decisões e conduz os projetos”, avalia Regina. “Pela lógica convencional não ter dinheiro significa ‘vamos desistir’. Aí a gente fica aqui procurando: ‘ah, não tem dinheiro, mas o que que dá pra gente fazer?’”. 

 

Sobrado 

Foto: Lysmark Lial

Concebido para ser, inicialmente, um sobrado, o espaço surgiu da ideia de um café. “Eu fui buscar a Nici Ibiapina, arquiteta, para fazer o projeto do café e, quando eu estava falando da ideia, ela disse que precisava participar de um espaço assim”, conta o assistente social Alan Cronemberger. A dupla agregou à ficha técnica o artista visual Lysmark Lial e a artista da dança Janaína Lobo. A gestação durou nove meses, entre projetos e reuniões, até realmente abrir ao público em julho de 2016, como galeria de arte, espaço de arte e café. 

Em alguns meses de existência, artistas de carreiras consolidadas e até mesmo quem nunca tinha exposto seu trabalho ou participado de temporadas passaram pelas paredes ou salas do Sobrado. “Vai ao encontro à nossa função de abrigar os artistas que já são da cidade e também os artistas que estão produzindo e não têm onde expor, onde dançar, ou dispõem de poucas opções”, diz Janaína. “E mostrar o que está sendo produzido aqui, fora esse discurso da ‘coisa do Piauí, da terra’”.  

Nesse fluxo de revezamento surgiu, via convocatória pública, o projeto Quintura, único do espaço até agora com recurso advindo de parceria com a Fundação Cultural Monsenhor Chaves. Com 10 temporadas, durante quatro dias cada, ao longo de mais de dois meses, o projeto de 60 mil reais permitiu viabilizar 40 apresentações com um público estimado em 150 pessoas em cada temporada. 

Como todas essas experiências que eu tive podem contribuir para pensar com mais sensibilidade? –  Janaína Lobo.

Equipado e mantido pelos quatro amigos, o espaço funciona na base da vaquinha. Água, luz, aluguel: tudo é somado e rateado entre eles. “A questão da gestão tem sido um gargalo. Enquanto aqui a gente espreme e funciona, no setor público o gasto é maior e não tem o mesmo resultado. Falta uma organização aqui, um empenho ali”, avalia Alan. “Temos dificuldades do dia a dia mesmo e estamos fazendo experimentos. Mas temos conseguido construir essa credibilidade”. 

Além de contar com a contribuição do próprio artista que está em cartaz, o exercício tem sido dosar as particularidades artísticas e administrativas do espaço. “Como eu vou tratar o artista se eu já estive no lugar dele sendo recebida em algum lugar? E, ao mesmo tempo, como todas essas experiências que eu tive podem contribuir para pensar com mais sensibilidade?”, questiona Janaína.  

Localizado em uma das regiões mais privilegiadas de Teresina, a zona Leste, o propósito era ocupar uma região desprovida de equipamentos culturais públicos. Abrigando artes visuais, dança, música, teatro, performance e exibição audiovisual, o espaço tem se proposto a ser uma galeria de caráter menos comercial. “Cria-se mais esse lugar de relação com a obra, e menos essa relação contemplativa”, afirma Janaína. “Independente de comprar ou não, nosso público vem ter uma experiência, conhecer um artista, trazer um amigo”. 

 

Balde 

Foto: Panapá coletivo audiovisual

Quando falta água, a população do Dirceu, zona Sudeste de Teresina, costuma se reabastecer nas hortas que cortam o bairro inteiro. “Era uma imagem muito forte pra mim ver a comunidade inteira andando com baldes nesses períodos”, conta Jacob Alves. “Todo mundo sai das extremidades, vai até a horta, pega sua água e depois volta. É uma ideia de compartilhamento e depois seguir para seu lugar”, compara Bebel Frota.  

A partir desse conceito, ambos os artistas estão à frente do Balde, localizado em uma das avenidas mais movimentadas do Dirceu. Funcionando no 2º e 3º andar de uma farmácia, é preciso subir um lance de escada lateral para entrar no espaço: dois pavimentos que se organizam entre dependências para o bar e as festas e espaço para ateliês e residências. “Já viu os chiqueirinhos ali?”, refere-se Jacob, carinhosamente, aos cercados feitos de paletes da área dos artistas residentes.  

Inaugurado há seis meses, o espaço acabou se tornando a extensão de um projeto aprovado pelo Edital do Prêmio Funarte de Dança Klauss Vianna de 2014. Pensado para acontecer em um lugar que já existia – até então, Galpão do Dirceu – o projeto acabou ganhando remodelagens e, de proposta de ocupação de espaço existente, acabou se tornando um novo espaço. “O Galpão fechou e as pessoas começaram a se articular em grupos menores”, comenta Jacob. 

Estamos em uma cidade em que, se a gente não criar contexto artístico, ficamos reféns de instituições que produzem uma articulação artística específica – Jacob Alves

A necessidade de continuar trabalhando não deixou outra escolha. “Estamos em uma cidade em que, se a gente não criar contexto artístico, ficamos reféns de instituições que produzem uma articulação artística específica”, diz Jacob sobre entidades do poder público e seus anexos culturais.  

Mantendo-se rotineiramente a partir do funcionamento noturno do bar e da bilheteria de festas e espetáculos, o único patrocínio oficial foi a verba inicial da Funarte para abrir o espaço. “Nós nos vimos com o desejo de não só realizar um projeto em qualquer lugar, mas de ter um espaço no Dirceu, em que a gente pudesse fazer da maneira que a gente acreditava artisticamente”, conta Bebel.  

Debates, performances, apresentações e festas, além de grupos e artistas residentes. A programação do espaço tem flanado entre dança, teatro, música, cinema e o público tem se misturado. “Tem muita gente que paga pra ver. É importante para que a gente também estabeleça essa relação de que produção artística também custa, que é uma produção profissional”, diz Jacob.  

Também professora do Curso Técnico em Dança da Escola Estadual Gomes Campos, Bebel Frota destaca que uma das dificuldades é mesmo a financeira. “Como artista na cidade, é difícil se manter e viver basicamente de arte”, destaca. “A gente tem que estar sempre em diálogo com as instituições para existir, para se relacionar, porque não dá para se isolar. Como você se coloca em relação àquilo que você questiona?”. 

(Publicado em Revestrés#30 – Abril/Maio 2017)

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