Deu o que falar a apresentação de Seu Sete da Lira naquele 29 de agosto de 1971. A entidade da umbanda adentrou pelos lares brasileiros, ao vivo, pelas telas da Globo e da Tupi, e a censura veio a galope. A reação de Torquato Neto também:  “Então, fica como? Ficando. A censura agora é total na televisão do Brasil. Por causa do ‘Seu Sete da Lira’. ‘Seu Sete’ existe? ‘Seu Sete’ é charlatão? Um Exu charlatão ou um médium charlatão? Não interessa: somente os noticiários e o futebol podem ser levados aos vossos vídeos, agora, sem o imprimatur da censura. O resto só gravado e censurado. Oráitis. Falou. E a culpa é de ‘Seu Sete’, como é tão fácil de demonstrar… Saravá, seu moço, eta!”  

Foto | Acervo Torquato Neto

Sem meias palavras, o piauiense dedicou a abertura de sua coluna no jornal Última Hora para criticar o cerceamento à liberdade de credo e de expressão. O texto fora entregue sem delonga, como de costume. Em geral, a figura longilínea de cabeleira farta despontava na redação com o material já pronto para a edição. “Torquato foi um dos colaboradores mais pontuais com quem lidei”, conta o jornalista João Rodolfo do Prado, então editor do segundo caderno do Última Hora, no qual o piauiense escreveu a coluna “Geleia Geral”, de agosto de 1971 a março de 1972.  

Torquato era peitudo, mas não imprudente. Onde podia meter uma entrelinha disfarçada, metia” – Luiz Carlos Sá, cantor e compositor, sobre a escrita de Torquato em uma época marcada pela censura.

Na época, o jornalismo trazia a tensão própria do período. “Não eram tempos fáceis e não me lembro de ter trabalhado em redações tranquilas. Eram tempos pilhados e viver, mesmo com bom humor, era pesado”, testemunha João Rodolfo. Ainda assim, Torquato procurava brechas para reagir. “Ele era peitudo, mas não imprudente. Onde podia meter uma entrelinha disfarçada, metia”, recorda o cantor e compositor Luiz Carlos Sá, que editava o suplemento musical “Plug”, no Correio da Manhã, onde o piauiense também se revelou um profissional compromissado. “Era um redator competente e pontual. Nunca me deixou na mão.”  

Os demais atributos do Torquato Neto jornalista estão nas páginas de veículos da grande imprensa e das publicações alternativas por onde passou: contundente, antenado, militante, coloquial, confessional. Os textos sobre a cena cultural daquele período nos permitem formar um painel detalhado do Brasil no auge da repressão, especialmente das manifestações musicais e cinematográficas.  

 

Embora a maior parte de sua produção esteja em publicações do Rio, o surgimento de Torquato Neto nas páginas de um jornal profissional, pelo que se sabe, foi em O Dia, de Teresina, no inglório 1964, com a coluna “Arte e Cultura Popular”, que assinaria em quatro edições. Tinha 20 anos. E revelava traquejo.  

“Ele já se mostrava um jovem de sólida formação intelectual. Passeava de Graciliano Ramos a Rachel de Queiroz, transitava pela poesia popular e exaltava um certo ideal de brasilidade”, observa o professor universitário Fábio Castelo Branco Brito, que se debruçou sobre a produção do piauiense para escrever o livro Torquato Neto e seus contemporâneos: vivências juvenis, experimentalismos e guerrilha semântica (Editora Prismas), tema do seu mestrado em História do Brasil na Universidade Federal do Piauí (UFPI).  

Meu cabelo, minha bandeira

Naquele mesmo 1964, um dia, Torquato, contumaz ocupante de um sofá no último andar da sede da União Nacional dos Estudantes (UNE), foi despertado pelos gritos de Hélio Silva, irmão de sua namorada Ana Maria, que, da rua, tentava alertá-lo sobre a urgência da situação. Desceu, às pressas, com uma pasta de escritos na mão, deixando para trás outros pertences, como a máquina de escrever portátil. Horas depois, madrugada de 1º de abril, ela seria consumida pelo fogo, no incêndio criminoso que atingiu a sede da instituição, na Praia do Flamengo, 132. Era o anúncio de um período nada alvissareiro na história do país.

Ele cursava jornalismo na Universidade do Brasil, atual Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), e, apesar da repressão, no ano seguinte, um Torquato imberbe e de cabelo cortado rente estampava a carteira de imprensa em seu primeiro emprego formal, na Empresa Jornalística Eniservice LTDA. Como lia em inglês e francês e falava razoavelmente nas duas línguas, virou setorista do Aeroporto do Galeão. Dividia com um jovem também nascido em 1944, chamado Elio Gaspari, a tarefa de entrevistar celebridades e políticos que circulavam pelo saguão.

Como lia em inglês e francês, virou setorista do Aeroporto do Galeão, com Elio Gaspari. Foto | Acervo Torquato Neto

O curso de jornalismo ficou pelo caminho, mas a atividade profissional na área prosseguiu, assumindo novos contornos. O Torquato do 3×4 transformou o cabelo em bandeira, deixando-o crescer, afiou o discurso e abriu ainda mais os olhos e ouvidos. Aos 23 anos, já mostrara o valor de sua verve no meio artístico: “Louvação”, escrita com Gilberto Gil, deu título ao álbum de estreia do baiano e foi gravada por Elis Regina e Jair Rodrigues, a dupla no comando do programa sensação O Fino da Bossa; e “Pra dizer adeus”, parceria com Edu Lobo, foi muito bem recebida. No jornalismo, iniciara na crítica musical, reforçando os ganhos financeiros obtidos como letrista.

Foco na defesa dos direitos autorais

A coluna “Música Popular” durou de março a setembro de 1967, no Jornal dos Sports, que, naquele ano, passara por uma reformulação editorial nas mãos de Mário Júlio Rodrigues, sobrinho de Nelson Rodrigues. Na estreia, Torquato avisa que o objetivo é “informar um público que se interessa pelo movimento de músicos, compositores, intérpretes e gravadoras”, sem temer “a cara feia do responsável pela divulgação da gravadora” ou transformar aquele espaço em “cantinho da pichação”. Pretendia, enfim, exercer uma crítica sem amarras. E assim o fez.

Além do texto principal, que abordava, com frequência, o trabalho de determinado artista, o movimento pela defesa dos direitos autorais – que Torquato abraçou com determinação – e os festivais promovidos pelas emissoras de televisão, a coluna era composta por pílulas sobre a programação de shows na cidade, gravações, lançamentos, parcerias. Estão lá, por exemplo, os primeiros passos da Tropicália e a comoção que ele, Torquato, sentiu ao descobrir os sambas de Paulinho da Viola no primeiro disco da série “A voz do morro”, tema da coluna de seis de maio.

Em setembro, a “Música Popular” foi transferida para as páginas do tablóide O Sol, suplemento cultural do Jornal dos Sports que, após dois meses de vida, ganhou independência. O jornalista e poeta Reynaldo Jardim (1926-2011), que estivera à frente da reforma gráfica e editoral do Jornal do Brasil, comandava a redação, composta por grandes nomes do jornalismo, como Ana Arruda Callado, Zuenir Ventura e Carlos Heitor Cony.

Embora tenha deixado de circular no ano seguinte, O Sol influenciou o surgimento de novos veículos que divulgavam a contracultura e faziam parte do movimento de resistência ao regime militar, como O Pasquim, criado no ano seguinte. Torquato permaneceu como colaborador de O Sol por um espaço de tempo muito curto. Na última coluna, publicada em 1º de outubro, adianta os primeiros semifinalistas do III Festival da Música Popular Brasileira: “E está iniciada a guerra. Somente no próximo dia 23 conhecemos os vencedores. Vamos ver um bocado de coisas, inclusive como o público reagirá à canção de Caetano Veloso, que ele defenderá acompanhado por guitarras elétricas. Gilberto Gil também vai usar guitarra.”

Volta como copidesque

Em 1968, morando em São Paulo, onde faz uma rápida passagem pelo Jornal da Tarde, Torquato surge com a ideia de lançar um disco-manifesto. Na capa do álbum “Tropicália ou Panis et Circenses”, ele aparece de boina e pernas cruzadas, e fecha o ano zarpando em um navio rumo a Inglaterra, com o artista plástico Hélio Oiticica (1937-1980). Retorna ao Brasil no auge da repressão, em 1970. Em 27 de março, nasce seu único filho, Thiago, com Ana Maria.

Na capa do álbum “Tropicália ou Panis et Circenses”, Torquato aparece de boina e pernas cruzadas

Torquato, então, volta às redações como copidesque do Correio da Manhã. Naquela época, o jornal, conhecido pelo tom de combate à ditadura, mudara de mãos, em consequência da asfixia financeira imposta pelos militares. Para não fechá-lo de vez, Niomar Muniz, viúva do fundador, decidira arrendá-lo para o grupo dos irmãos Alencar, empreiteiros, os mesmos que, mais adiante, comprariam parte do Última Hora. Em pouco tempo, Torquato virou integrante de um novo projeto do periódico: Plug, suplemento semanal dedicado à música.

A publicação era editada pelo músico Luiz Carlos Sá, que, já cansado de ter suas músicas censuradas, foi dar um tempo no jornalismo. “Meu editor-chefe, Reynaldo Jardim, sugeriu-me uma coluna de cinema alternativo e disse que Torquato e o poeta Waly Salomão (1943-2003) seriam os colunistas”, detalha o carioca, sobre o espaço no qual foi adotada uma linguagem típica da cultura underground presente nos veículos alternativos.

“Resistir na marra e quebrando a cara”

Sá admirava as letras de Torquato antes mesmo de conhecê-lo. E como sua namorada se tornara amiga de faculdade de Ana Maria, mulher do piauiense, as duas promoveram um encontro, que logo deu em amizade. Na época em que trabalharam juntos no Plug, o músico precisou se afastar por mais ou menos um mês e deixou Torquato na edição do suplemento, que circulou de janeiro a junho de 1971.

Tudo corria bem, até que um drástico corte de pessoal feito pela diretoria do Correio da Manhã, que decidira comprar o restante da participação de Samuel Wainer no Última Hora, determinou o afastamento dos dois.

“Falei para o Reynaldo que ou eu mantinha minha equipe ou iria embora, mas ele não podia fazer nada. Em protesto, demitimo-nos todos. Mas Torquato acabou ficando para escrever uma coluna no Última Hora, jornal do mesmo grupo. Fiquei chateado com isso, porque achei ele tipo fura-greve e cortei relações com ele. Minha esposa à época, Leila Sá, questionou fortemente essa minha atitude, da qual, aliás, muito me arrependi mais tarde, por motivos óbvios”, confessa o músico.

Naquela época, segundo ele, Torquato justificou que precisava manter a família, mas nem assim ele compreendeu a atitude do amigo. “A pressão da oposição falou alto e eu não o desculpei. Ainda não tinha filhos e não sofria a outra pressão, a familiar”, explica ele, que depois retornou para a carreira musical, constituiu a dupla Sá & Guarabira e, agora, trabalha sozinho. Em seu disco Solo e bem acompanhado, ele vai incluir duas letras que Torquato deu para ele musicar: “Eu te via clareando” e “Como meus dedos são vinte”.

Ocupar espaço, amigo, estou sabendo, como você, que não está podendo haver jornalismo no Brasil e que – já que não deixam – o jeito é tentar.” – Torquato Neto.

Apesar de o jornalismo ter sido um meio de fechar o orçamento, Torquato Neto o exercia também com o propósito de enfrentamento à ditadura. Em carta a Almir Muniz, ele fala sobre a sua decisão de escrever no Última Hora: “Ocupar espaço, amigo, estou sabendo, como você, que não está podendo haver jornalismo no Brasil e que – já que não deixam – o jeito é tentar.” Mais adiante, diz que é necessário “resistir, na marra e quebrando a cara” e conclui: “pintemos onde? onde pudermos. pintemos nos jornais, por exemplo: só se publica o que é possível, mas se redige como quer. não vamos desistir.”

Torquato Neto tinha um olho na grande imprensa e muitos outros nos veículos alternativos. Em 1971, enquanto escrevia para o Última Hora, participou de três publicações focadas na produção artística dos movimentos contraculturais do período: o jornal Flor do Mal, editado por Luiz Carlos Maciel, Tite de Lemos, Torquato de Mendonça e Rogério Duarte; jornal Presença, editado por Rubinho Gomes e Antônio Henrique Nietzche; e Navilouca, uma edição única organizada com Waly Salomão, que, por falta de recursos, ele não viu sair do papel – foi lançada apenas em 1974.

Presença chegou às bancas pelas mãos da Editora Codecri, a mesma de O Pasquim. Teve vida breve: duas edições, segundo o então editor Rubinho Gomes. “Torquato escreveu nas duas edições. E, em uma delas, há uma poesia inédita dele”, conta o jornalista, que conheceu Torquato Neto no Última Hora, onde trabalhava como repórter do segundo caderno. “Foi uma empatia imediata. A gente se encontrava muito também nas madrugadas, nos bares da vida. Na redação, não era um cara muito expansivo. Chegava com a abertura da coluna pronta, entregava para o editor e, às vezes, ficava mais tempo, completando as notinhas”, diz.

Foi também na redação do Última Hora que o jornalista João Rodolfo do Prado conheceu Torquato Neto. Ele iniciara no jornalismo em O Sol, com Reynaldo Jardim, e o acompanhou quando ele foi para o Correio da Manhã. Fazia o segundo caderno e meu chefe disse que o Torquato teria uma coluna de música. Não o conhecia. Com o tempo, houve uma maior aproximação, mais conversas, morávamos perto – eu no Grajaú, ele na Tijuca -, mas nos encontrávamos basicamente na redação. Na verdade, quase tudo sobre a vida de Torquato eu fui saber com os dois livros publicados depois da morte dele”, observa.

Naquele período marcado pela experimentação e pela repressão, com censores na cola das redações, João destaca o teor do jornalismo de Torquato. “Ele fazia textos combativos, em uma época em que os embates políticos culturais da época pesavam. Havia a ditadura e os conflitos internos ao mundo cultural – a música brasileira deveria ter guitarras?”, relata, considerando que a “Geléia Geral” confrontava “o coro dos contentes”, para usar uma expressão do próprio piauiense, mas era compatível com a produção da época.

“Torquato até poderia ter uma alma revolucionária, mas ele sabia que a coluna dele demandava um outro tipo de política. Talvez uma boa ideia disso tudo pode se obter ouvindo com cuidado o ‘Panis et Circensis’, obra básica do tropicalismo e que teve forte atuação do Torquato”, diz, acrescentando: “Ele tinha um pensar fortemente político, especialmente uma sensibilidade cultural e estética intensamente marcada pela política, pelas dimensões do poder, pelos atrasos do Brasil. Para se ter uma ideia: ter cabelos compridos tinha lá seus riscos.”

Vários Torquatos em um

Para Fábio Castelo Branco Brito, professor do programa de pós-graduação em História do Brasil da UFPI, não podemos falar em um único Torquato, mesmo na esfera jornalística. “Ele é uma dimensão radical daquilo que, em grande medida, todos nós somos: plurais, de identidades cambiantes e metamórficas. O Torquato que atuou, em grande parte de sua vida, como jornalista, também o é. Não existe, portanto, um jornalista Torquato Neto per se, com uma identidade fixa, que atravessa toda a sua existência. É preciso que fujamos desse estereótipo, tão difundido nos estudos sobre ele, de que Torquato seria, em toda a sua vida, uma espécie de “mito contracultural”, avalia.

Foto | Acervo Torquato Neto

Segundo ele, essa dimensão se evidencia nos últimos anos de vida. “Ela é muito clara, por exemplo, na formatação dos textos da Geléia Geral, muitos dos quais eram escritos com letras minúsculas, sequências textuais um tanto disparatadas, aproximando-se tanto da proposta do new journalism norte-americano quanto da chamada geração beat, que englobava intelectuais como Jack Kerouac e Allen Ginsberg (poetas e escritores)”, detalha, observando que essas marcas são perceptíveis também nos textos da imprensa contracultural piauiense, escritos no mesmo período, em jornais como Gramma e no suplemento cultural O Estado Interessante.

Durante sua dissertação, na qual se debruçou sobre a produção cultural de uma turma de jovens que fugia aos padrões sociais então vigentes em Teresina e bebia na fonte de Torquato Neto, Fábio pesquisou filmes experimentais, veículos de grande circulação e produções musicais e literárias, especialmente, a coluna Arte e Cultura Popular e Geléia Geral, escritas por Torquato Neto, assim como as duas únicas edições do jornal alternativo Gramma, publicado em 1972.

Fábio relata que Torquato, “conhecedor profundo de cinema, música e literatura, erudito desde jovem, parecia encantar àqueles meninos da provinciana capital do Piauí”. Naquela década, acrescenta, a produção de jornalismo contracultural na cidade foi intensa, e a participação do grupo próximo de Torquato foi considerável.

Teresina, meu amor

Apesar de morar no Rio, Torquato, volta e meia, passava uma temporada em Teresina. Em 1971, quando ficou por três meses na cidade, Edmar Oliveira e Durvalino Couto Filho, integrantes da turma nada afeita às normatizações da época, fizeram uma entrevista com o poeta e jornalista, publicada no encarte cultural Comunicação, do jornal Opinião. O contato foi por intermédio de Paulo José Cunha, primo de Torquato que morava em Brasília e também fazia o encarte.

“Fizemos a entrevista na casa dele. Durou a noite toda. Ficamos no terraço, com uma garrafa de cachaça, o gravador e a gente conversando. E ele danou-se a falar porque achou que a gente tinha muita informação (sobre ele) e isso era raro em Teresina. Teresina hoje cultua Torquato, mas naquela época não gostava dele. Era um maldito, cabeludo”, conta Edmar.

Em maio de 1972, poucas semanas após encerrar a “Geléia Geral”, Torquato vai para mais uma – e última – temporada em Teresina. Na época, Paulo José estava editando o alternativo Gramma, feito em mimeógrafo e para o qual Torquato passa a escrever. A primeira edição fora lançada entre fevereiro e março; a segunda, em novembro. Logo, criaram os suplementos culturais de dois jornais de ampla circulação: A Hora (A Ho Ra Fatal) e O Estado (O Estado Interessante). Para este último, ele concedeu uma longa entrevista.

“Torquato ficou entusiasmado com o Gramma. Ele divulgou muito, houve uma repercussão. Saiu uma resenha na edição brasileira da revista Rolling Stones. E, diante disso, fomos chamados para fazer outros trabalhos”, recorda Carlos Galvão, que se aproximou de Torquato Neto naquela época e acabou arrumando as malas quando o letrista retornou ao Rio.

Apesar de ter encerrado com a “Geléia Geral”, Torquato não estava afastado do jornalismo. Participou de um projeto da Manchete, que acabou fazendo água, chamado Domingo Ilustrado, e colaborou para o suplemento Anexo, do Correio da Manhã, onde fez uma longa entrevista com André Midani, diretor da Phonogram. “Ele tinha vocação mesmo. E o jornalismo era uma trincheira para ele, uma frente de briga”, avalia Galvão, que acabou entrando como estagiário no Última Hora por intermédio de amigo. Ficou até 1976, fez concurso para o Banco Central e, agora aposentado, está se dedicando à realização de documentários.

Ele sofria com as brigas políticas, culturais, havia a falta de dinheiro – reclamava que escrevia sobre música e não tinha um equipamento de som decente. – João Rodolfo, jornalista.

O publicitário George Mendes não fez parte da turma de Teresina, apesar de lá ter nascido e morado boa parte de sua vida. Era ainda um adolescente, 14 anos, quando o primo famoso se matou e, com ele, mantinha “uma relação do menino com o ídolo”. “Torquato era o neto mais velho, em uma família numerosa. Era alguém que estava ao meu alcance, para ouvir, falar, dizer besteiras”, recorda, observando que a imagem familiar contrasta com a do homem público: “O artista de opiniões muito fortes, decidido prático, afirmativo, na família era sereno, doce, de fala mansa.”

No ano seguinte ao suicídio, George foi morar em São Paulo e, depois, no Rio, período em que se aproximou da viúva, Ana, que em 2010 passou para ele o baú de Torquato, e do primo Thiago. Como curador do acervo, avalia que, desde a morte de Torquato, ele vem crescendo, mesmo na área jornalística, que ganhou menos luz, se comparada ao cancioneiro. “Torquato hoje é muito maior do que no tempo em que viveu. As pessoas passaram a fazer leituras, e a obra dele cresceu quantitativamente”.

No jornalismo, George cita outra coluna da lavra de Torquato no mesmo Última Hora, chamada “Toque Pessoal”. Os registros são de julho a dezembro de 1971. “A ideia vendida pela publicação era de que era uma coluna com diversos colaboradores. De fato, havia colaboradores reais, outros jornalistas publicavam, mas ele era o responsável pelo fechamento e aparece com o maior número de notas. E há notas assinadas com pseudônimos que, sem dúvida alguma, foram escritas por Torquato. Moleque Pereira só podia ser ele. A gente percebe pelo estilo. Não tem erro. Assim como outras assinadas com pseudônimo feminino”, avalia.

Após a saída de Torquato Neto do Última Hora, João Rodolfo do Prado não mais o encontrou. Até que numa sexta-feira, chegou à redação e disseram que Torquato o havia procurado. “Fiquei curioso, procurei ele e Ana, fui a uns dois lugares e acabei na casa dele, então perto da Praça da Bandeira. Soube que era seu aniversário, e a família estava comemorando num bar na Usina. Ele estava loquaz, insistiu muito no que deveria ser feito para manter espaços de liberdade cultural, temas que o mobilizavam muito.”

Já madrugada, 11 de novembro, João Rodolfo deixou Torquato e Ana em casa. No dia seguinte, ao entrar na redação, um colega foi às pressas avisá-lo que o poeta estava morto. “Não sabia das internações em sanatórios e das tentativas de suicídio durante os meses da “Geléia Geral”, nem teria por que imaginar algo assim. Certamente houve momentos difíceis, ele bebia muito – e boa parte da redação também-, sofria com as brigas política, culturais, havia a falta de dinheiro – ele reclamava que escrevia sobre música e não tinha um equipamento de som decente. Só que também o bom humor, a alegria ao encontrar uma obra que o encantava – como ao me apontar “Detalhes” quando o disco do Roberto Carlos saiu.”

Ao dar o ponto final em sua trajetória, Torquato deixou um legado que pode ser resumido com uma frase de uma de suas cartas, na qual fala sobre a atuação jornalística: “o meu espaço: infinito enquanto duro.”

TRECHOS DE COLUNAS DE TORQUATO NETO

“Não escrevo para cinco ou seis pessoas, nenhum colunista escreve para os amigos somente. Às vezes é preciso dizer que uma canção não é boa ,mesmo que esta canção tenha sido feita por um amigo ou – já fiz isso – por mim mesmo. Não quero ser o paladino da verdade, mas me esforço para não mentir. O incrível, mas o incrível mesmo, é a reação das pessoas que se sentem prejudicadas por uma crítica que não seja absolutamente favorável à vaidade de cada um” – “Música Popular”, 19 de abril de 1967

“Ligue o rádio, ponha discos, veja a paisagem, sinta o drama: você pode chamar isso tudo como bem quiser. Há muitos nomes à disposição de quem queira dar nomes ao fogo, no meio do redemoinho, entre os becos da tristíssima cidade, nos sons de um apartamento apertado no meio de apartamentos” – Geléia Geral, ,19 de agosto de 1971, estreia da coluna

“…andei escrevendo , aqui mesmo em UH, vários comentários rápidos sobre um problema que todos os compositores conhecem bem, pensam em combater e terminam sempre contemporizando com uns e outros e entre eles mesmos. O problema do cartolismo no direito autoral é primo legítimo do outro, mais popular. E precisa ser combatido pra que as coisas fiquem mais tranquilas, não somente lá pras bandas dele” – Geléia Geral, 21 de setembro de 1971

“Invente. Uma câmera na mão e o Brasil no olho: documente isso, amizade. Não estamos do lado de fora e do lado de fora é a mesma transa: underground, subterrânea etc. A realidade tem suas brechas, olhe por elas, fotografe, filme, curta dizendo isso. Tem sua beleza: a paisagem não sustenta o teu lirismo, pode mais do que ele, campa com ele e isso é bonito. Organizar arquivos da imagem brasileira desses tempos, cada qual guardando seus filminhos, até que o filme todo esteja pronto” – Geléia Geral, 19 de outubro de 1971

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Matéria publicada em Revestrés #33 – edição especial Torquato Neto.

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