Era início dos anos 90 e um garoto jogava bola na rua, no bairro Matadouro, zona Norte de Teresina. Não era exatamente um mau jogador, mas a turma o achava distraído – de vez em quando abandonava o campo improvisado, atraído por batuques de tambor que vinham ali de perto. Corria para a frente de uma casa de taipa com brechas na fachada e espiava por ali as danças, os cantos, os giros. Tinha nove anos e nunca conseguiu explicar aquela atração.
O menino da história é hoje Flávio de Ogum, 39 anos, zelador da Casa São Jorge, no bairro Mafrense, desde 2006. Ele foi o pai de santo mais novo do Piauí, coroado aos 17 anos – leva-se sete anos de formação na umbanda – recebeu as obrigações antes mesmo da maioridade. “Tudo na minha vida foi muito precoce”, explica dentro do salão azul, no fundo da casa em que mora, onde nos recebe.
Não foi tão simples aceitar e entender o que lhe acontecia como um chamado espirutal. “Eu estava brincando na rua aos nove anos quando passei mal, o mundo escureceu e desmaiei”, relembra. “Já acordei dentro de uma casa de axé”. Flávio considera o episódio como o primeiro marco da sua espiritualidade. “Eu era uma criança quando meu primeiro caboclo, Tupinambá, me pegou”, conta. “Ele falou que aquilo era só a primeira manifestação e que ele voltaria aos 13 anos. E voltou”.
Dali por diante, sua família católica e de Campo Maior, que nunca tinha tido relação nenhuma com religiões de matriz africana, entendeu, apoiou e acompanhou a formação do filho – um processo que passa por batismo, encruzo, confirmação, acruzamento e vários outros eventos até chegar ao cargo de zelador, o cargo máximo na umbanda. “Minha mãe de santo foi Maria Badé, aqui mesmo na zona Norte, e foi meu próprio guia que a indicou”. Como no catolicismo ou outras religões, umbanda e candomblé têm estruturas distintas e sólidas de formação, seguem e preservam hierarquias e doutrinas rígidas. Por exemplo, para ser um pai de santo, zelador de uma casa, é preciso concluir a formação e receber autorização da mãe ou pai de santo que lhe formar – este deve benzer o assentamento e o lugar escolhido para o templo, terreiro ou congá.
A tenda de Flávio é uma das mais de 400 mapeadas pela última pesquisa que voltou o olhar para as comunidades de terreiros existentes em Teresina: realizada em 2012, revelou 412 terreiros – desse total, menos de 5% praticam candomblé, o que implica uma predominância forte da prática de umbanda na capital piauiense. Os terreiros, em sua maioria, existem há menos de uma geração: 81% delas até 30 anos. Mas há comunidades com mais de 50 anos e, em sua maioria, estão situadas na zona Norte – são testemunhas do processo de formação da cidade.
Os dados são do mapeamento das comunidades de terreiros de Teresina, encomendado há quatro anos pela Sasc (Secretaria de Assistência Social e Cidadania) como parte de um planejamento executivo para implementação de políticas de promoção de igualdade racial no estado. Eles estão reunidos no livro “Fiéis da ancestralidade – Comunidades de Terreiros de Teresina”, organizado pelo doutor em História Solimar Oliveira e lançado em 2014. Acredita-se na necessidade de uma atualização dos números, ou ainda a extensão do mapeamento para as demais cidades do estado, uma vez que a quantidade de terreiros multiplica-se a cada dia no Piauí.
Os dados botam em cheque o último censo do IBGE, realizado em 2010 e divulgado em 2012, que aponta o Piauí como o estado mais católico do Brasil, com 85,1% de fieis. “Isso é uma grande contradição, mas não significa antagonismo”, explica Solimar Oliveira. “Há na prática religiosa a permissão de estar na igreja católica e ao mesmo tempo em um terreiro, o que é curioso mas não é antagônico porque a fé do povo se expressa em diferentes possibilidades de diálogos e religiões”, defende. Flávio aponta que a quantidade de igrejas na cidade está longe de se equiparar ao número de terreiros. “A diferença é que enquanto as igrejas estão nas avenidas, os terreiros estão no fundo dos quintais”.
Atrás de entender a relação do nosso estado e nossa gente com essa espiritualidade ancestral, Revestrés entrevistou pesquisadores e percorreu terreiros colhendo histórias que traduzem mais que uma manifestação da fé – as comunidades de terreiros revelam populações organizadas, com estruturas definidas e portadoras de um saber empírico que atravessou gerações para chegar até aqui. Recomendamos que você, caro leitor, liberte-se de qualquer preconceito antes de seguir para os próximos parágrafos. Você vai descobrir que há muito mais coisas entre os ojás que ornam as cabeças, os fios de conta que envolvem os pescoços e o som que vem dos atabaques que cumeeira alguma foi capaz de esconder. Axé e boa leitura.
Batuque brasileiro
Teresina ainda nem tinha esse nome nem tampouco era capital quando, acredita-se, surgem as primeiras características do que se designou umbanda: índios utilizavam plantas e o que mais a natureza pudesse oferecer para curar animais e viajantes que aqui descansavam de longas viagens. O local de parada era o pontal formado no encontro entres os rios Paranaíba e Poti. Com destino a Vila da Mocha, atual cidade de Oeiras, primeira capital do Piauí, esses grupos testemunharam o crescimento de quilombolas na região.
Com a transferência da capital de Oeiras para a Vila Nova do Poti, logo batizada de Teresina, vem também a mão de obra escrava para construir a cidade, planejada no entorno de um quadrado descampado ao centro da vila, hoje, Praça Marechal Deodoro da Fonseca – são esses negros que vão dar origem aos ajuntamentos, sambas e outras práticas culturais, uma delas a religiosa, bastante influenciada pelas culturas ameríndia e africana. A proliferação desses ritos e festividades religiosas negras cresce principalmente no período pós-abolição e tinha endereço certo: a Rua Augusta, conhecida à época como Rua dos Negros (hoje, rua Eliseu Martins), é fonte de muitas pesquisas entre historiadores. Ali, o som dos tambores, dos cânticos e das danças incomodaram a sociedade branca e foram fortemente combatidos pelas forças policiais na segunda metade do século XIX.
Como estratégia de proteção, essas comunidades fogem do centro e vão principalmente para a barra do Poti, área rural, ainda com mata serrada e de difícil acesso por terra. É ali que, segundo consta a história, se estabelece e monta a Tenda de Santa Bárbara, em 1920, dona Joana Maciel Bezerra, a Mãe Joaninha do Pontal. “A tradição oral dos umbandistas conta que ela veio do Maranhão, vítima de intolerância religiosa”, diz a pesquisadora Sabrina Lima, mestranda em História na Universidade Federal do Piauí. “Ela chega na fase embrionária da umbanda no Brasil e vai formar os primeiros filhos de santo dela”, complementa. “Não quer dizer que a umbanda por aqui comece com ela, mas com os registros que nós temos só dá pra fazer esse percurso. A gente só está tentando mapear o que ficou na memória das pessoas”.
Umbanda quer dizer “magia”, “arte de curar”, e é oriunda da língua quimbunda, de Angola. O mito de formação da religião conta que em 1907, no Rio de Janeiro, o jovem Zélio Fernandino de Morais incorporou um espírito de caboclo numa mesa de sessão espírita kardecista. Discriminado pelos médiuns, o guia Caboclo das Sete Encruzilhadas deu a Zélio a missão de fundar uma tenda que abrigasse os espíritos considerados menos evoluídos em função de sua cor ou classe social: negros, escravos e índios falariam para os povos em sinônimo de humildade e igualdade.
A umbanda é talvez o maior retrato da nossa miscigenação: unindo influência do catolicismo, o espiritismo kardecista, a experiência indígena e as tradições africanas, é considerada por pesquisadores a única religião essencialmente brasileira. “A umbanda é a cara do Brasil”, diz o historiador Solimar Oliveira. “Ela nasce aqui e essa é a diferença básica dela para o candomblé, do ponto de vista de gênese”.
Apesar de mais antigo, o candomblé tem pouca representatividade em Teresina – a primeira tenda, o Terreiro Ilê Axé Opassoró Fadakar, é fundado em 1989 no bairro Aeroporto, e tem como zelador o pai Oscar de Oxalá. Embora sejam religiões de matriz africana, umbanda e candomblé se diferem em pontos que vão além da formação: há distinção hierárquica, de ritos, cânticos, linguagem e até estética. “O candomblé de certa forma tem mais glamour, o ritual é mais estético, refinado, com aquelas baianas típicas, o branco gomado, o pai de santo com rechelieu, que é caríssimo”, descreve Solimar. “Tem alguns autores falando hoje na carnavalização do candomblé, justamente pela quantidade de adereços”, prossegue. “A umbanda é mais humilde”.
Andar com fé
O crescente número de adeptos dessas religiões, opina Solimar Oliveira, deve-se à flexibilidade associada à matriz africana. “Essas religiões aceitam comportamentos que outras condenam, são mais tolerantes”, reflete. “As comunidade de terreiros são expressões da realidade, da pluralidade, as pessoas se expressam como são e são aceitas assim. Arriscaria dizer que são religiões um pouco mais próximas da base humana”.
A recente visibilidade dada a religiões como umbanda e candomblé também é responsável pela atração de novos fieis. Na década de 1970, no Piauí, a umbanda sai dos quintais e ganha as ruas. Entre os anos 1972 e 1974 é construído e inaugurado o altar para Iemanjá as margens do rio Parnaíba – é o primeiro lugar de memória dos umbandistas em Teresina. “As festas de Iemanjá reuniam muitas pessoas, cerca de 300 terreiros, tem descrição de festas lindas nos jornais da época, com procissão fluvial, barcos com pai de santo atravessando de Timon para Teresina, terreiros de Bacabal vindo para nossa festa, era incrível”, relata Sabrina Lima, que pesquisa a institucionalização dessa religião através da criação da Federação Piauiense de Umbanda, em 1964. “A Federação dá uma visibilidade a esses cultos e a primeira presidente dela é a irmã Candinha”, conta Sabrina. “Ela vai ter programa de rádio, traz advogados para a federação e é uma das precursoras desse movimento pela liberdade do culto em Teresina”.
De lá para cá, mesmo com os últimos censos apontando Teresina como a capital mais católica do país, os adeptos das religiões de matriz africana, sobretudo da umbanda, por aqui, não param de crescer – e junto com eles firma-se o reconhecimento social dos terreiros como espaços de práticas tradicionais, fortalecendo a construção da resistência cultural e a memória coletiva pautada na ancestralidade. Unidas, as comunidades e lideranças (investidas da autoridade conferida a elas dentro do contexto religioso) cobram proteção, respeito, tolerância e políticas públicas para os terreiros. “A visibilidade dessas religiões no século XX está muito associada a essas conquistas sociais”, diz Solimar.
Reflexo disso é a Caminhada do Axé, que acontece desde 2013 dentro do evento Cultura Negra Estaiada na Ponte, organizado pela Prefeitura de Teresina por meio da Secretaria Municipal de Economia Solidária (Semest) e em parceria com os movimentos negros e de terreiros. “Essa marcha dos terreiros era impensável de acontecer anos atrás”, frisa Solimar. “Não é que a intolerância desapareceu, mas hoje o enfrentamento é mais completo, numa sociedade mais permissiva eu me mostro mais”. Em três anos dobrou a participação das comunidades no evento que acontece sempre em agosto, dentro das comemorações do aniversário da cidade.
Do ponto de vista da tradição, para Solimar, o maior ensinamento dessas religiões diz respeito ao vínculo comunitário. “Um terreiro preserva e respeita muito as relações ali construídas. É por isso que chamamos comunidades de terreiro”, explica. “Acho um aprendizado extremamente importante para o mundo contemporâneo: o respeito às diferenças”. Sabrina vai apontar a tolerância como um dos maiores legados da umbanda e do candomblé. “Esse termo, apesar de ser um clichê, é controverso”, observa. “Na verdade, não é uma questão de tolerar, e sim aceitar, respeitar”. Além disso, ela aponta a caridade como um grande fator de ligação entre os terreiros e as comunidades, onde a tradição do ensinamento oral é muito forte. “Os terreiros promovem obras assistencialistas, até como estratégia inconsciente de aceitação”, diz a pesquisadora. Doação de roupas, alimentos e brinquedos para a comunidade estão entre as principais ações da maioria dos terreiros. “Foi construído todo um imaginário demonizador acerca dos terreiros, mas a verdade é que a umbanda é uma religião universal e que aceita a todos”.
Axé pra quem é de axé
“Que seu espírito seja de luz”. A frase de dona Raimunda Nonata de Sousa substitui o convencional cumprimento a quem entra no seu terreiro. A casa simples, no bairro Mafrense, esconde no fundo um humilde templo de umbanda nas cores vermelho e verde. Todos os elementos estão ali: o altar sincretizado com santos católicos e outras representações da umbanda (Iemanjá, Preto Velho e o Tranca Rua são os principais) dividem espaço com velas, ramos, uma poltrona da mãe de santo e o cachimbo do velho Manoel.
Raimunda Cajubé, como é conhecida, é a mãe de Santo da Tenda São Raimundo Nonato, fundada em 1973. Ela trabalhava como feirante quando foi acometida de uma doença misteriosa sem causa nem cura. “Gastei muito indo a vários médicos e não dava nada. Até que me convidaram para ir na casa da dona Miúda, no bairro Água Mineral”
Recuperada, recebeu a missão de frequentar para sempre o terreiro – mas acabou hesitando em virtude da descrença do marido, Ribamar. “Voltei a passar mal e cair em cima das frutas na feira, pensavam que eu estava sempre bêbada, mas eu nunca bebi”.
O espírito que ela incorpora é o velho Manoel – é ele quem faz os batismos e as consultas e as curas na casa. “Eu nasci para curar”, diz a umbandista. “As pessoas se espantam, acham que vão morrer aqui dentro. Mas o compadre Manoel diz que a pessoa vai ficar boazinha e ela fica”.
Seu orixá é Ogum e o contra-chefe da casa é João da Mata – todos são intermediados pela mãe de santo que, apesar do pouco estudo, traz um conhecimento de vivência. “Não trabalho por livro, só na mente. O que eu sei fazer foi Deus que me deu e meu orixá”, diz.
Apesar de atuar há mais de quatro décadas na região e ter formado mais de 70 médiuns – hoje, cerca de 30 ainda frequentam o lugar – Raimunda diz ter problemas recorrentes com os vizinhos. Antes mesmo de inaugurar o espaço, o terreiro foi alvo de um incêndio criminoso. “Eu fiz de taipa e pegou fogo, de umas bananeiras que tinham aí pra trás. O rapaz botou pra destruir o meu salão”, conta. Outra vizinha, católica, pede com frequência para que Raimunda cesse o barulho dos tambores, alegando atrapalhar suas orações. “Eu nunca vou lá pedir pra ela terminar de rezar o terço preu bater meu tambor. Cuide lá dos seus filhos, celebre o que tem de celebrar e deixe meu tambor em paz”.
Eufrazina de Iansã, mãe de santo da Tenda Espírita Santa Bárbara, localizada no bairro Santo Antônio, zona Sul de Teresina, é a auxiliar da divindade naquela região. Começou seu desenvolvimento mediúnico após ter uma forte revelação, aos sete anos, em Crateús, onde morava. “Uma voz me chamou para cima de uma pedra num domingo e lá eu via cenas passando: uma rural azul invadia o comércio do seu Zé Raimundo e esmagava-o contra a parede”, relembra. “Insisti que minha avó me levasse lá para dizer isso, eu fui o caminho pra esse aviso chegar até ele”, conta.
O acidente aconteceu e o comerciante escapou graças a premonição da menina. O fato repercutiu em toda a cidade e deixou a família assustada. Procuraram padres e psicólogos, mas foi em um terreiro de umbanda que a menina se encontrou. “Comecei a frequentar a casa da uma senhora que virou minha mãe de santo: Francisca Barbosa de Araújo”, diz Eufrazina.
Aos 18 completou sua formação e recebeu as orientações do guia Simão da Bahia (hoje, o guia de consultas da casa que comanda). “A entidade disse que o ponto da minha estrela era aqui em Teresina, no quilômetro sete, que é exatamente onde está situado esse terreiro”, informa. O terreno tem 20 metros de frente com 30 de fundo, abriga hoje uma casa grande, com espaço climatizado e uma espécie de escritório particular onde Eufrazina nos recebe. Ela toca uma sirene para chamar uma das filhas, que logo atende com reverência e devoção.
A casa segue a mesma linha de trabalho que Eufrazina aprendeu com sua mãe de santo: quartas e domingos são de desenvolvimentos mediúnicos. Oferece aulas de balé, capoeiras e administra grupos afro-culturais de jovens. O trabalho social com a comunidade está sempre presente na doação de brinquedos, roupas e realização de lanches coletivos.
Atualmente, 123 médiuns, de vários pontos da cidade, frequentam o espaço – filhos de santo com os sete graus completados são apenas nove. “Só chega a formação aqueles que realmente tem compromisso com a espiritualidade”, explica a mãe de santo.
“Há uma visão limitada sobre as entidades”, diz. “São espíritos que trabalham para nossa evolução e evolução deles. A cada pessoa que eles conseguem ajudar, eles também se ajudam”, defende. “A gente não tá aqui pra oferecer um baú cheio de ouro ou milagres. A gente tá aqui pra fazer uma corrente e ajudar uns aos outros, desenvolvendo um trabalho de caridade e amor ao próximo”.
Em 2006 foi a vez de Flávio de Ogum (orixá da guerra, na mitologia iorubá) inaugurar o seu recinto, na rua Rui Barbosa, bairro Mafrense, curiosamente ao lado de uma Igreja Batista. Um corredor lateral corta a casa onde mora e revela o barracão ou terreiro ao fundo – as denominações podem variar porque a casa de Flávio abriga ritos tanto da umbanda quanto do candomblé. A diversidade dos elementos dá pistas: o altar sincretizado com santos católicos, referente à umbanda, está lá, assim como os atabaques e a cumeeira, tipicamente do candomblé.
A história dele você viu no início desta reportagem – o garoto que jogava bola aos nove anos quando teve sua primeira manifestação mediúnica. Mas dali até chegar a ser babalorixá foi um caminho intenso. “Não somos nós que escolhemos a religião. É o orixá que escolhe a gente”, diz.
Aos 18, tendo recebido o deká, ele começou a levantar seu congá na casa em que a família morava, no bairro Matadouro. A essa época a mãe já havia compreendido e aceitado a religião do filho e insistia para que ele expandisse o congá para virar, enfim, um terreiro. “E o meu mestre, um preto velho chamado Nêgo Gerson, sempre dizia pra ela ter calma e paciência, que a casa dele não ia ser ali”, relembra. “Eu achava estranho, mas respeitava. Ele reforçava: tudo a seu tempo e a sua hora”.
Quando a prefeitura começou a primeira fase de implantação do projeto Lagoas do Norte, a família de Flávio foi desapropriada e indenizada. “Eles tiveram muito trabalho com a gente pelo fato de ali ser um templo”, comenta o pai de santo. “Mas acabei me convencendo e saí em busca de um novo lugar”. Ele estava passando pela avenida Rui Barbosa, no Mafrense, quando viu a placa “vende-se” na casa onde mora hoje. “Bati o pé na porta e uma energia me tocou”. Ali, finalmente entendeu a mensagem do guia.
Hoje, a casa atua em calendário quinzenal: terças são dias de toques e sextas sessão de cura. Nos dias restantes é aberta pra consultas agendadas. Além disso, no primeiro domingo de cada mês, Flávio se preocupa em fazer rodas de conversas que esclareçam sobre os fundamentos da umbanda e do candomblé. “Eu tive uma boa escola, e se você tem uma boa escola, vira um bom professor”, analisa. “Aqui é feita toda a explanação: de onde vem, por que vem, como foi criado”, segue. “Não interessa para mim ter um filho de santo que chega, o tambor toca, ele gira mas não faz ideia do que está acontecendo”.
Flávio divide as missões de zelador com a profissão de segurança. Ocupa também o cargo de coordenador estadual dos homens de terreiros no CENARAB – Centro Nacional de Africanidade e Resistência Afro-brasileira. “Nós não tínhamos um órgão direcionado aos interesses dos povos de terreiro”, afirma. O centro age frente à Semest em busca da elaboração de projetos de sustentabilidade dos terreiros através da economia solidária. Algumas conquistas já foram o reconhecimento das comunidades de terreiros como grupos vulneráveis, contemplados em projetos de moradias popular, além da implantação de ateliês e cursos de costuras para confecção das roupas de santo, dentro dos terreiros, gerando renda para a comunidade.
Algumas datas no calendário marcam os festejos por ali: São Jorge, que pelo sincretismo é Ogum, é celebrado com festa em novembro. Em maio o toque acontece para os pretos velhos e em junho para Xangô (no dia de Santo Antônio ou São Pedro). Não há, por ali, nenhum indício de discriminação. “Os nossos mestres sofreram preconceito por serem espíritos menos esclarecidos, embora cultos no saber da vivência”, reforça. “Por que fecharíamos a nossa porta?”
Flávio não esconde o fio de contas no pescoço e tem orgulho da religião que hoje passa aos mais de 30 filhos que ali frequentam. “Hoje eu não me vejo sem meu atabaque tocar, sem incorporar no meu santo, sem meu orixá, não me vejo mais fora desse mundo”, declara. “Essa vai ser a minha vida até que meu corpo não aguente mais”.
Glossário
orixá = divindades africanas que representam as forças do Universo Infinito. Espírito puro. Santo.
atabaque = instrumento musical, espécie de tambor, utilizado nos terreiros.
guia = orixá ou entidade espiritual.
tenda / terreiro / barracão = casa de santo, centro, local da prática ritual.
congá = “altar sagrado” do terreiro. Na umbanda, é composto de imagens de santos católicos, caboclos, pretos-velhos e outros.
ojá = tipo de torço ou turbante usado na cabeça por praticantes das religiões tradicionais africanas
iorubá / yorubá = idioma da família linguística nígero-congolesa, falado secularmente pelor iorubás (nagô) em diversos países ao sul do Saara. Usado em ritos religiosos afro-brasileiros.
deká = no candomblé, é a obrigação de sete anos, uma espécie de “formatura”, onde será definido pelo orixá se o filho deve ou não abrir uma nova casa de axé.
cumeeira = é o ponto central da energia de um barracão, a base, a estrutura, o cerne de uma casa de candomblé. Funciona como uma espécie de “pára-raios”, representa e guarda os mistérios de cada casa e de seu sacerdote – é nela que seu orixá se apoia para que sua casa sobreviva ao tempo. Encontra-se colocada na parte mais alta do barracão, geralmente em um poste, pilar de madeira ou projetada no teto e garante a proteção do zelador, filhos e consulentes.
assentamento = representação material do orixá regente de uma pessoa, composta de otás (pedras onde é “fixado” o orixá), os elementos que o representam.
zelador / babalorixá (babá) – pai de santo, zelador do santo, chefe de gira, chefe de mesa, chefe do terreiro. Médium e conhecedor de todos os detalhes para o bom andamento de uma sessão.
yalorixá / ialorixá (iá, iaiá) = mãe de santo, idem (zelador).
rechelieu = tradicional bordado com origem atribuída ao Cardeal Richelieu, da corte do Rei Luis XIII da França. A técnica é de desenhos feitos a mão sobre tecidos com o bordado de uma máquina guiado por artesãs. Muito usado na confecção das roupas de pais e mães de santo, tanto no camdomblé como na umbanda.
fio de conta = colar ritualístico representativo de uma entidade espiritual, constituído de miçangas de cristal, porcelana, pedras ou metal, nas cores que os identificam
axé = poder que emana dos orixás, energia vital, força invisível, mágica e sagrada.
Iemanjá / Yemanjá = Orixá sincretizada com Maria, mãe de Jesus. Senhora do mar. Mãe das águas. Nossa Senhora dos Navegantes. Nossa Senhora da Glória.
Preto Velho = são entidades de umbanda, divindades purificadas de antigos escravos africanos. São espíritos guias de elevada sabedoria e humildade, geralmente associadas a sua experiência e resistência nas senzalas.
Tranca Rua = exu de umbanda. De acordo com a crença religiosa, ele tem o poder de fechar e abrir os caminhos para os seres humanos, além de resgatar almas perdidas para formar seu exército.
Xangô = orixá da justiça, dos raios, dos trovões e do fogo.
Iansã / Yansã = Santa Bárbará. Senhora dos ventos, raios e tempestades. No Candomblé, onde também é chamada de Oyá, é representada com um alfange e uma cauda de animal nas mãos, e com um chifre de búfalo na cintura.
Reportagem publicada na Revestrés#24 – abril/maio de 2016.