Depois da Primavera das Mulheres, em 2015, o interesse pelo tema feminismo aumentou exponencialmente, gerando crescimento na produção de livros, capas e matérias de revistas, programas de TV e diversos produtos com conteúdos considerados feministas. Um termo que, para alguns, é sinônimo de palavrão ou de mulher mal-amada, para outros se transformou em apenas um rótulo a ser estampado em camisetas de grandes lojas de departamento. Já para algumas jovens mulheres, o feminismo tem sido bem mais do que isso: o contato com as lutas dos movimentos feministas levou ao ativismo.  

Essas múltiplas vozes feministas, que estão formando a quarta onda dos movimentos, têm nas plataformas digitais a base de suas ações. “A quarta onda ganhou uma acessibilidade que o movimento nunca havia conhecido. As feministas hoje querem ser ouvidas, antes de mais nada. Então, recorrem às hashtags, blogs, face, todas essas formas de comunicação, que são instantâneas e facilitadas”, explica a socióloga, pesquisadora e feminista da terceira onda, Heloísa Buarque de Hollanda 

Negritude Piauiense. Foto| Ronald Moura

Outra característica desses grupos, nesta quarta onda, é que muitos deles começaram dentro das universidades, mas romperam barreiras para que os debates fossem inseridos no cotidiano de outras mulheres, sejam elas cis ou trans. É o caso do Núcleo Marielle Franco, do grupo As Marias e do Negritude Piauiense, que usam o Instagram como plataforma de mobilizações para iniciativas que ocorrem no mundo fora das redes. “A academia no Brasil é relativamente associada ao ativismo feminista. Mas o discurso acadêmico é por si só um discurso de iniciados. Acho que agora as ativistas estão se chegando mais para perto da academia e estão iniciando uma formação bastante interessante. É só checar o número de coletivos feministas nas universidades. São muitos e bastante ativos”, analisa Heloísa. 

A pesquisadora Kelma Gallas também concorda que as jovens mulheres que estão conduzindo esses grupos podem fazer diferença. “O Brasil tem muitas camadas que as mulheres feministas ajudam a revelar. O movimento #EleNão, por exemplo, mostrou que as mulheres estão mais politizadas, estão mais cientes do seu papel e isso traduz a ideia de que mesmo quando elas não estão na política, trazem uma noção de micropolítica muito interessante”, lembra a pesquisadora. Neste caso, é preciso destacar que, no Brasil, as mulheres correspondem a cerca de 16% das parlamentares no Senado, 15% na Câmara Federal e menos de 14% na Assembleia Legislativa do Piauí. Números bem inferiores ao mínimo de candidaturas femininas estipulado em lei (30%) e à proporção de mulheres na população (51%). 

Do ativismo digital para as rodas de conversa 

No Núcleo Marielle Franco, que teve origem com um grupo de estudantes do curso de História da Universidade Federal do Piauí, o foco das ações são formações que debatem o feminismo e suas lutas. O coletivo contextualizou a história dos movimentos através de suas ondas e das características principais de cada um desses momentos históricos, socioculturais e políticos. O primeiro encontro ocorreu em outubro de 2018, e o coletivo já realizou quatro formações sobre a história das mulheres e o feminismo. “Começamos com mulheres jovens e que hoje levam suas mães para as nossas formações, o que possibilita uma troca muito importante de vivências. Com isso também percebemos as diferenças e necessidades de cada mulher, mas sabendo que precisamos ficar unidas ainda mais neste momento em que muitas das nossas liberdades estão sendo ameaçadas”, explica Mariana Soares, integrante do Núcleo Marielle Franco.  

As interseccionalidades, como raça, classe e etnia estão sendo os focos das conversas, que reúnem entre 30 a 40 mulheres por encontro. “Nos nossos encontros há um momento de troca muito grande. Falamos sobre nossas dores, experiências e percebemos que muitas compartilham de situações semelhantes, mesmo que cada uma tenha suas particularidades e nuances”, destaca Denise Façanha, do Núcleo Marielle Franco.  

Contudo, as conversas e debates não se limitam aos encontros presencias e ao Instagram. O Núcleo mantém um grupo de whatsapp no qual participam cerca de 60 mulheres que, diariamente, trocam notícias e outras informações que possam ampliar os debates e fortalecer o movimento. Os textos debatidos nas formações também são enviados por e-mail para que as participantes possam se aprofundar nos temas. 

O mesmo ocorre com os grupos As Marias e Negritude Piauiense nos quais as rodas de conversas saem do ativismo na web e também acontecem de forma presencial. No grupo As Marias, fundado em outubro de 2017, os encontros acontecem a cada 15 dias em espaços públicos de grande movimentação, como parques, e em outros momentos em universidades. “Dependendo do tema escolhemos o local das rodas de conversa. Quando falamos sobre vida sexual feminina e machismo preferimos um ambiente mais privado, para que as mulheres sintam mais confortáveis para falar”, explica Valéria Lopes, que participa da organização de As Marias.   

Temáticas como saúde mental, maternidade, violência física e sexual contra a mulher, invisibilidade bissexual, dentre outras, ganham espaço para serem debatidos pelo grupo, que também começou dentro de uma instituição de ensino superior, mas percebeu a necessidade de ocupar outros lugares e chegar a um maior número de mulheres. 

O feminismo e suas interseccionalidades 

Camila Hilário | Foto: Ronald Moura

Se reconhecer como mulher negra foi essencial para a estudante de comunicação Camila Hilário entrar mais profundamente nas questões que envolvem o feminismo negro. Nessa época, Camila, que passava por um processo de transição capilar, compartilhava suas dúvidas e descobertas por suas redes sociais e percebeu que sua voz representava a de muitas outras jovens que queriam ou estavam passando pelas mesmas questões e dúvidas.”As mulheres negras têm muitos problemas de autoestima porque na sociedade e na mídia não temos, geralmente, referências positivas. Nós não somos representadas nestes espaços de poder e de beleza e eu só conheci meu cabelo e a minha beleza através da transição capilar, e esse foi um momento de autoaceitação. Quando eu assumi meus cachos, me aceitei e passei a me amar, e isso veio através do meu cabelo”.  

De experiência pessoal, o processo de transição capilar foi transformado em um projeto maior. Daí surgiu “Deixe-me ser” série de cinco vídeos disponibilizados no Youtube, que trazem relatos de jovens mulheres negras que contam sua relação com o cabelo crespo e cacheado. Neles a estética capilar é a plataforma para tratar outros temas, como padrões de beleza, racismo, identidade cultural e autoestima. “Falar de estética, de beleza é importante para conhecermos nosso corpo, nosso cabelo, nossos traços e fenótipos. Com isso entendemos que a estética é a ponta do iceberg da identidade da mulher negra e quando entendemos isso passamos a reagir, a desconstruir e a lutar contra todas as opressões que as mulheres negras sofrem”, relata Camila. 

O discurso monopolizado por mulheres brancas de classe média não pode e não deve ser perpetuado como a expressão dominante do feminismo – Heloísa Buarque de Hollanda.

E os vídeos foram apenas o início do trabalho de Camila para a valorização da mulher negra piauiense. Em 2017, ela se uniu a um amigo, o fotógrafo Ronald Moura, e realizou quatro ensaios fotográficos que exaltavam a beleza e a diversidade dessas mulheres. Mas eles viram que podiam ainda mais. Foi quando surgiu o Negritude Piauiense, coletivo que hoje realiza encontros e rodas de conversas que colocam as questões que envolvem o racismo e a opressão da mulher negra em debate. “A primeira coisa que temos que pensar é: seu feminismo é para quem? Nos reunimos porque vimos que as questões que envolvem as mulheres negras são diferentes das mulheres brancas. E mesmo as mulheres negras têm suas diferenças e entendemos que conhecimento é poder, e precisamos nos fortalecer intelectualmente para saber de onde vem a opressão que sofremos”, destaca Camila Hilário.  

Para Heloísa Buarque de Hollanda, o feminismo precisa deixar de entender a mulher como uma categoria universal e pensar como um conceito interseccional que vai muito além das demandas das mulheres brancas e de classe média. “O discurso monopolizado por mulheres brancas de classe média não pode e não deve ser perpetuado como a expressão dominante do feminismo. As demandas e as dores das mulheres negras, indígenas, asiáticas, lésbicas, trans e tantas outras, têm que ser ouvidas. E nós, brancas, temos que desmontar de vez nossa onipotência e centralidade e aprender a ouvir nossas irmãs”, afirma a pesquisadora. 

Feito por #elas 

Elas ainda são minoria entre as que produzem e as que escutam, mas já não podemos deixar de perceber que o número de programas feitos por elas e para elas na mídia podcast no Brasil tem ganhado impulso. De acordo com a PodPesquisa de 2018, realizada pela Associação Brasileira de Podcasters (ABPod) e a rádio CBN, das 22.691 pessoas que responderam a um questionário online apenas 15,3% dos ouvintes de podcasts são mulheres, número que cai quando se analisam os produtores de conteúdo para esta mídia. Dos 1.405 produtores entrevistados somente 11,9% se identificaram como do gênero feminino. Por outro lado, 13,8% das pessoas que buscam podcasts consomem assuntos ligados à temática “empoderamento feminino” e o terceiro Podcast mais ouvido, é o Mamilos, que tem como criadoras e apresentadoras duas mulheres: Cris Bartis e Juliana Wallauer. “Nós podemos questionar o resultado dessa pesquisa porque ela foi um questionário online divulgado em nichos compostos majoritariamente por homens. E, pela nossa experiência, sabemos que as mulheres estão ocupando muito mais espaço nos podcasts. Só no Mamilos elas correspondem a cerca de 50% da nossa audiência de 150 mil ouvintes por episódio”, examina Cris Bartis. Atualmente o Mamilos conta com quase 200 episódios e 5,8 milhões de plays.  

Na onda dos podcasts é possível encontrar programas autorais e independentes, assim como aqueles produzidos por veículos de mídia já consagrados no mercado. A revista Piauí, por exemplo, tem o Maria vai com as Outras – podcast sobre mulheres e mercado de trabalho, e o Elas com Elas é a aposta da BandNews FM para discutir temas diversos sob a perspectiva delas, só para citar alguns exemplos. 

Em Teresina, um grupo de amigas também resolveu aproveitar o baixo custo de produção e a facilidade de acesso para as ouvintes a fim de criar um podcast que tratasse de temas feministas, mas que estivesse dentro da realidade local: o Malamanhadas. “Cada uma das integrantes do Malamanhadas tem o seu olhar sobre o feminismo, a sua vertente. Mas entendemos que o feminismo é uma questão política e, quando pensamos no podcast, queríamos algo que fosse além da academia, que fizessem os temas saírem da bolha e passassem a ocupar mais espaços e levar ao diálogo”, enfatiza Ananda Omati. 

Mesmo quando falamos de maternidade, menstruação, estes são temas que importam para toda a sociedade e não somente para as mulheres – Cris Bartis.

Com pouco mais de seis meses no ar, o Malamanhadas já abordou temas como: maternidade real, sororidade, feminicídio, feminilidade e até como o feminismo e as questões ambientais podem estar interligados. Mas será que esses são de fatos temas que interessam somente ao público feminino? “Hoje o que pode ser considerado um tema feminino? Mesmo quando falamos de maternidade, menstruação, estes são temas que importam para toda a sociedade e não somente para as mulheres. Temos que pensar de outra forma. Que as mulheres têm uma forma diferente de olhar para os assuntos. Elas conseguem ver outro tipo de recorte porque elas têm outro lugar de fala. E essa diversidade de olhares é importante”, ressalta Cris.    

E para permitir que mais mulheres tenham espaço nos podcasts brasileiros foi lançada em 2017 a campanha #OPodcastÉDelas. “Essa foi uma iniciativa criada para tentar mudar um cenário que a gente via na podosfera, de como os programas de podcasts brasileiros estavam se comportando não tendo mulheres em suas mesas. E no próprio espaço de fala dessas mulheres nos programas, porque, dependendo do assunto, elas eram convidadas a falar, mas a fala delas não tinha valorização ou era constantemente cortada, sem finalização de raciocínio”, comenta Dominica Mendes, uma das criadoras da campanha.  

A proposta deveria ocorrer somente no mês de março de 2017, mas a aceitação foi tão boa que a campanha foi ampliada. O que fez nascer a segunda parte do projeto que é divulgar podcasts produzidos por mulheres e ajudá-las nesse processo. “Hoje o #OPodcastÉDelas é uma rede de podcasts que são produzidos e apresentado por mulheres. Alguns programas que fazem parte da rede e outros que estão em fase de produção.Temos o próprio programa do #OPodcastÉDelas no qual recebemos podcasts feitos por qualquer mulher, sobre qualquer assunto e nós editamos e/ou publicamos”, destaca Dominica.  

No caso dos podcasts, assim como no dos coletivos e grupos feministas que estão aumentando em todo o país, uma maior divulgação é importante, nem que seja para que o conteúdo chegue a um maior número de pessoas. “Numa sociedade capitalista não há como impedir que o mercado transforme tendência em moda. Mas, num momento adverso como o nosso, visibilidade e divulgação são fundamentais. E o mercado, mesmo sem boas intenções, termina servindo a isso”, afirma Heloísa Buarque de Hollanda.   

Cris Bartis também concorda que possibilitar o acesso de mulheres à produção e ao conteúdo de podcasts tem sido essencial para que elas ganhem mais espaço nessa mídia. “Nós últimos três anos percebemos que a quantidade de ouvintes mulheres aumentou, e isso tem relação com o número de mulheres que estão tendo mais acesso e sabendo lidar melhor com a tecnologia. Com isso aumentou também o número de mulheres produzindo podcasts. E campanhas como #OPodcastÉDelas são importantes porque fazem com que os produtores saiam da sua zona de conforto e passem a buscar mulheres que possam contribuir com o seu olhar sobre os mais variados temas”, finaliza. 

As ondas dos movimentos feministas 

Uma das divisões mais conhecidas para os movimentos feministas é o da metáfora das ondas, no qual em cada uma delas as mulheres se unem para reivindicar determinadas demandas e pautas. Ao mesmo tempo, as mulheres precisam continuar alertas para que os direitos alcançados não regridam com o passar dos tempos. Em outros momentos, as pautas não foram de fato conquistadas. Assim, algumas temáticas, como a descriminalização do aborto, se mantêm em ondas diferentes.  

Neste sentido, os movimentos feministas já tiveram três grandes ondas. A primeira, conhecida como movimento sufragista, ocorreu no final do século XIX e começo do século XX, quando, sobretudo, as mulheres brancas e de classe média e alta, lutavam pelo direito ao voto e à participação política e na vida pública. Nesse mesmo período, as mulheres de classe mais baixa estavam em busca de equidade salarial e redução de carga horária de trabalho.  

A segunda onda ocorreu junto com os movimentos de contracultura, tendo iniciado em meados dos anos de 1960 nos EUA e na Europa, e pedia, especialmente, a ampliações dos direitos sexuais das mulheres e sua valorização como parte integrante da sociedade capitalista. Até esse momento, grande parte dos movimentos eram liderados pelas mulheres brancas, heterossexuais e socialmente mais privilegiadas. Somente na terceira onda, nos anos de 1980, passou-se a incluir efetivamente nos debates as demandas relativas à classe social, raça, etnia e orientação sexual. O que fez com que o movimento se tornasse mais plural.   

Desde meados de 2015, alguns estudiosos afirmam que estamos na quarta onda dos movimentos feministas, que se diferencia dos demais pelo ativismo nas redes digitais. Neste momento, a luta se concentra no fim da homofobia, do machismo, do assédio sexual e da violência contra a mulher. E em questões como a quebra dos padrões de estética normatizados e as identidades de gênero focadas no binarismo. Sobre a quarta onda, Heloísa Buarque de Hollanda explica: “A grande diferença é a chegada da internet e a politização da nova geração. A internet possibilitou o processos de divulgação e articulação impensáveis na minha geração. A nova forma de fazer política também dispensa intermediário e, no lugar de causas ideológicas, elas se empenham nas demandas de direitos éticos imediatos. As diferenças são grandes. A mesma pauta, mas outra forma de fazer política”. 

Reportagem publicada na Revestrés#41-maio-junho de 2019.

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