O objetivo é revelar uma mina sem que alguma delas seja detonada. Enfrentar o desafio é correr o risco de se machucar, mas calculando bem os movimentos – e com uma dose de sorte – dá pra escapar do perigo. Risco e estratégia circundam o mercado editorial e não é por falta de jogo de cintura que se perde a aposta.

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Apesar de pesquisas mostrarem que o brasileiro tem lido mais, o que se vê são o fechamento de editoras conhecidas como Cosac Naify, custos operacionais destoando da demanda pelo produto, queda nas vendas, políticas públicas ineficientes e uma constante disputa com o mundo virtual. Não são condições animadoras, mas há quem resista. 

Revestrés conversou com artistas da linguagem: escritores, editores, livreiros, feirantes e pesquisadores. Escritor que tem prêmios a perder de vista, feiras que reúnem de Ariano Suassuna a Laerte, editores de Jorge Mautner e Rogério Sganzerla. Se o campo é minado, há quem dispute inconformado.

Escrever e coçar… 

“O cinema não se ilumina por acaso, nem o projetor falha ou o projecionista se atrapalha na troca de rolos”, diz trecho de Marighella – O guerrilheiro que incendiou o mundo, do escritor Mário Magalhães. Literatura tem um quê de cinema: provoca fascínio, conquista público. No entanto, ambas podem estar submetidas às lógicas de mercado que exigem eficiência. “Minha maior dificuldade é não poder me dedicar exclusivamente aos livros. Para pagar as contas, mantenho outras atividades, no jornalismo e no audiovisual”, diz Mário Magalhães, apesar dos 25 prêmios jornalísticos e literários, somando os do Brasil e os do exterior, entre eles Prêmio Vladimir Herzog e Prêmio Esso de Jornalismo.

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“O fundamental é escrever. Quando você fala com contundência, sem amarras, tem mais chance de expandir o grito, de espalhar a pólvora”, garante Marcelino Freire, autor do romance Nossos Ossos, finalista em 2014 do Prêmio Jabuti de Literatura. “Alguém sempre virará o seu parceiro de crime. E aí a desgraça está feita…”, diz ele.

Se não existe crime perfeito, uma das pistas que podem condenar o escritor é o desconhecimento de sua obra. “Há escritor que é conhecido por ter subido num coqueiro e pintado a bunda de vermelho. E há muitíssimos que são conhecidos graças às suas virtudes de escrita”, exemplifica Mário Magalhães. “É muito natural que o escritor queira ser lido e é necessário que ele seja visto, é uma forma de publicidade”, assegura o professor Luiz Romero, um dos organizadores do Salão do Livro do Piauí – SaliPi.

De acordo com a 4ª Pesquisa Retratos da Leitura no Brasil, divulgada em maio de 2016, a população adulta e a que está fora da escola estão lendo mais do que foi observado nos anos anteriores. Os dados revelam que 104,7 milhões de brasileiros (56% da população acima dos 5 anos de idade) leram pelo menos partes de um livro nos últimos três meses. Ou seja, os índices de leitura saíram de 4 livros por ano, em 2011 – ano em que foi realizada a última edição da pesquisa – para 4,97 em 2015. Em 2011, esse índice era de 50%. Apesar disso, 30% dos entrevistados declararam nunca terem comprado um livro na vida.

Leonardo Dias, há 15 anos dono de livraria, concorda que o autor é o principal agente de sua própria obra. “Ele não pode esquecer que escreveu um livro ou que escreveu só por vaidade”, diz ele, que está também há três anos com a Nova Aliança, editora dona de catálogo com mais de 100 obras, na maioria escritores piauienses de gêneros variados, alguns com lançamentos fora do Piauí. “Ainda há essa preocupação de que tem que lançar um livro em São Paulo ou no Rio de Janeiro. Não é verdade, é o tempo e o mercado que faz com que o autor seja reconhecido”.

Outro vestígio que pode sentenciar o escritor é a falta de público leitor. Na Revestrés#20, foi publicado o Dossiê Cultura, a primeira pesquisa de opinião sobre o consumo de cultura no Piauí, que revelou: apesar de 64% dos entrevistados declararem ter o hábito da leitura, 89% nunca leu nenhum livro de autor piauiense.

“É preciso criar um público leitor para as obras locais. Mostrar esse produto nas feiras, nas escolas, incentivando o hábito da leitura a partir das primeiras idades. E não é só jogando o livro na mão da criança, é criando projetos relacionados com aquilo”, frisa Leonardo Dias.

Dentro dessa cadeia de leitores, existem as preferências. Ainda segundo o Dossiê Cultura, os livros religiosos são os mais procurados, com 32,39% das respostas, seguidos da leitura acadêmica com 27,60%. Em nível nacional não é diferente: a 4ª Pesquisa Retratos da Leitura no Brasil revelou que os livros religiosos – principalmente a bíblia – seguem sendo os tipos mais lidos pelos brasileiros.

“Houve uma diminuição de bibliodiversidade para o grande público. Mas é importante pensar que existe todo um universo para além dos livros de alta vendagem, e que tem que se pensar como sobreviver sem precisar ser grande. Pequenas editoras com trabalhos pontuais ou temáticos são fundamentais para um ambiente editorial saudável”, pontua Sérgio Cohn, poeta e sócio-diretor da Azougue Editorial, que tem no catálogo nomes como Plínio Marcos, Jorge Mautner e Rogério Sganzerla.

Nesse mar de variedade, o livro ainda disputa lugar com outras preferências pessoais dos leitores. “As pessoas estão usando o tempo que antes disponibilizavam para leitura de livros para flanar pelas redes sociais”, continua Cohn. “Cada vez mais vemos pessoas que dizem não ter tempo para leitura, mas que passam algumas horas por dia olhando postagens aleatórias”, critica Sérgio Cohn.

Letras do ofício

Na rua David Caldas, centro de Teresina, está endereçado um prédio antigo, de dois andares, assim como outros nessa região da cidade: a Fundação Quixote. O selo publica anualmente, em média, cinco livros, além de organizar feiras no interior do estado e na capital, entre elas, a mais conhecida, o Salão do Livro do Piauí – SaliPi. Ao longo das 14 edições, o SaliPi passou pelo Centro de Convenções de Teresina, praça Pedro II até funcionar, hoje, na Universidade Federal do Piauí.

Com forte presença de público estudantil, a literatura infanto-juvenil tem sido uma das mais procuradas no evento. “O que está na onda é a leitura de fácil assimilação. É um Game of Thrones pra cá, O Hobbit pra lá, A culpa é das estrelas para um lado, Dan Brown pro outro. Nós queremos isso: todos os estilos, todos os temas. Se tivéssemos condições, nós traríamos o John Green pra cá, qual o problema?”, diz o professor Luiz Romero sobre a feira que reúne cerca de 180 mil pessoas ao longo de 10 dias e lançou quase 300 livros desde sua existência.

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“Nós temos uma grande dificuldade do livro chegar à prateleira”, queixa-se Romero.  Mas não é pra menos. Normalmente, o livro com uma tiragem de mil cópias vende, em média, 50 exemplares na estreia, sendo que a quantidade restante tem servido para abarrotar o depósito das editoras ou a casa dos próprios autores. “Não adianta vender só no lançamento”, critica o professor. “Nosso processo civilizatório isolou o Piauí, mas aos poucos, as pessoas foram acreditando que podiam ser lidas”, diz ele.

Mas antes de vender há um detalhe crucial: editar. “O autor não sabe publicar e quando se mete por conta própria é um desastre”, diz Luiz Romero. Porém, mesmo com a ajuda de uma editora, as dificuldades permanecem. “Uma editora de grande porte consegue imprimir 30 mil exemplares, fazer um planejamento de marketing e ter pontos de vendas garantidos no Brasil. Pra gente é diferente. Primeiro, por se tratar de uma literatura marginal – no sentido de ser desconhecida – depois, pela falta de recursos. Usamos redes sociais, vendas em site e nos pontos, feiras, escolas e boca a boca”, diz o editor Leonardo Dias.

Com 32 mil exemplares diversos na loja da zona leste, Leonardo se desdobra para diminuir prejuízos. “O livro é tabelado no Brasil, nós temos uma margem de 30% em cima do preço de capa”. A margem do livreiro é menor ainda: “4% ou 5%, por isso não é um grande negócio”, diz ele, que assegura estar no empreendimento por paixão. Além da baixa lucratividade para editoras e livreiros, os autores também reclamam da demora no repasse de sua parcela nas vendas dos títulos, que podem levar, em média, seis meses. “Tem autor que se zanga porque vende sete livros durante um ano”, comenta o editor.

Mesmo que as condições desfavoreçam, Leonardo Dias enxerga motivos para se empenhar. “Se os autores de hoje não forem editados como eles vão ser reconhecidos no futuro? Não dar oportunidade para quem está produzindo hoje é fazer com que esse mercado venha a parar”, diz.

Ainda que as alternativas tecnológicas forneçam facilidades, o tropeço continua em um problema antigo: público. “Ainda há uma grande deficiência que é demanda. Nós não temos consumidor para o livro local”, diz o editor sobre a lacuna. “Atualmente, com as novas tecnologias, está muito mais fácil editar um livro. Mas ele, muitas vezes, continua invisível ou inacessível ao grande público. Creio que esse é o grande desafio: o de efetivamente publicar seu livro, com bom tratamento editorial e distribuição qualificada”, afirma Sérgio Cohn, editor da Azougue.

Na tentativa de ampliar possibilidades para formação de público, os eventos literários têm se disseminado pelo Brasil em diferentes formatos. “As feiras literárias precisam estar abertas para a bibliodiversidade, precisam se descolar das grandes editoras, para conseguirem realmente ter um impacto formativo de público leitor no Brasil”, diz Sérgio Cohn. “Também estimulam uma porção pequena e já poderosa do mercado editorial. Os eventos são muito bons para captação de recurso e escoamento de catálogo, mas não criam o hábito de acessar o livro como forma de cidadania”, critica.

Marcelino Freire gosta de arriscar. Idealizador da Balada Literária, evento que acontece em São Paulo há 10 anos, ele acredita que, apesar de tudo, estamos menos ilhados. “Hoje, qualquer pessoa pode publicar. Digo: é só espalhar o verbo na internet. Hoje um escritor tira um texto da gaveta e põe no mundo. O movimento hoje é mais solto, mais independente. É só reparar no crescimento de pequenos selos brigando com as grandes editoras. São outros tempos. E tempos mais ‘compartilhados’, menos tuberculosos”, afirma.

Ao longo dessa década de Balada, entre outros acontecimentos, o diretor Luiz Fernando Carvalho chorou ao ler trechos de “Lavoura Arcaica”, ao lado do autor do romance, Raduan Nassar; Adélia Prado leu poesia e emocionou a plateia da Alceu Amoroso Lima; Augusto de Campos subiu ao palco da mesma biblioteca e, depois de se apresentar com Adriana Calcanhotto, deu uma canja no show de Walter Franco.

“As feiras estão dando à literatura, humanidade. O conceito de ‘festa’, espalhado pela Festa Literária Internacional de Paraty, foi salutar para o meio literário. Isso tirou um pouco a naftalina das estantes”, destaca Marcelino, que viajou 15 capitais do Brasil fora do grande eixo com o projeto Quebras, ao lado do jornalista Jorge Filholini, começando por Teresina. “Notei que ninguém cala um poeta em canto algum. Tem sempre um coração produzindo algum batimento lírico”, garante.

Por outro lado, as vendas, intrínsecas às feiras, fazem parte de uma dinâmica de mercado, muitas vezes, desaprovada. “As feiras promovem o crescimento de vendas, claro, mas tenho críticas quando esse é o objetivo central”, diz Maria Aurinívea Sousa de Assis, doutora em Literatura e Cultura pela Universidade Federal da Bahia e professora de Literatura da Universidade Estadual do Piauí. “O livro é um objeto, deve ser vendido, deve ser mundano e ocupar os espaços, sem auras, sem preços abusivos”, defende.

Com frequência, sem ter passado por critérios literários de avaliação e disponíveis em promoções, os livros vendidos nas feiras servem, simplesmente, para aliviar encalhes. “Há títulos que não deveriam ser levados para casa por afirmarem lugares comuns, repetirem estereótipos, reproduzirem modelos de papeis sociais e preconceitos. Muitos leitores levam esses livros para casa por acreditarem que, por serem livros, as ideias contidas neles são naturalmente relevantes”, analisa a professora.

Deus lhe pague

À rigor, a Lei 6.563, sancionada em 2014, garante a adoção de livros paradidáticos de autores piauienses pelas escolas públicas e privadas do Piauí. De acordo com o primeiro artigo da lei, as escolas deveriam adotar o mínimo de um terço de livros para os alunos matriculados no ensino infantil, fundamental e médio. “Todas as editoras sobrevivem de vendas governamentais. A gente já vê as escolas, pelo menos as particulares na educação infantil, adotando quatro ou cinco livros. Se a gente conseguir fazer uma tiragem já com venda governamental programada, teríamos capital”, afirma o editor e livreiro Leonardo Dias. Apesar da lei, na prática acontece diferente: nem mesmo a parcela obrigatória de adoção é cumprida.

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Por outro lado, iniciativas governamentais e privadas costumam ser as grandes patrocinadoras de exposições literárias. “Ainda necessitamos de apoio institucional. Os canais são lentos, burocráticos e não arriscaríamos fazer a feira sem apoio”, diz o professor Luiz Romero, referindo-se ao SaliPi.

Mas há quem esteja fugindo desse molde. Outros tipos de contribuição e até mesmo as ruas têm se tornado uma escapatória. “As vendas para governo no Brasil funcionam apenas para um setor das editoras – e bastante poderoso. As nossas estratégias estão também em formas extra-livraria de conseguir tornar os livros acessíveis ao público. Estamos, por exemplo, criando dois book trucks – quiosques de livros tem como conceito o universo dos food trucks -, um no Rio de Janeiro e outro em São Paulo, para comercialização de nossos livros na rua”, diz Sérgio Cohn.

“Como nos livrarmos desse peso institucional? Das 10 edições da Balada Literária, até agora, só três foram feitas via apoio da Lei Rouanet. Todas as demais foram feitas garimpando outras frentes de apoio. Poderíamos voltar a esse modelo, sem problema. Mas não deixaremos de teimar, de realizar, de resistir sempre”, frisa Marcelino Freire.

Segundo balanço da Câmara Brasileira do Livro – CBL (2011-2014) o governo aumentou suas compras de livros, mas as vendas no mercado privado ficaram praticamente estagnadas. “Grande parte da venda de livros no Brasil depende de parcerias firmadas entre editoras e Estado cujos investimentos públicos atendem a uma clientela editorial muito restrita e específica”, diz a professora Maria Aurinívea.

No caso de patrocínios, o livro e as cadeias produtivas que envolvem seu resultado estão submetidos a certas condições. “Quando uma empresa privada ou um órgão estatal está à frente de um evento ou de um projeto de divulgação e publicação do literário, temos que saber qual ideologia essas organizações e instituições defendem e, também, como escritores, leitores, livreiros, editores atuam na validação ou na contraposição das ideias que balizam essas iniciativas. O problema está na ideia de tratar o material simbólico de um povo como um objeto de consumo simplesmente”, baliza a pesquisadora.

Esse negócio de literatura

Fechamento de livrarias de rua, o aumento de custos gráficos, diminuição de vendas, crise econômica, a falta de políticas de estado para o livro, impacto das novas mídias digitais. “Não é um período fácil. Ter uma editora pequena voltada para a cultura contemporânea sempre trouxe questões profundas de sobrevivência no Brasil, mas atualmente, há uma soma de diferentes elementos que acentuam as dificuldades”, frisa Sérgio Cohn.

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O livro, atualmente, está inserido em uma engrenagem de mercado. No entanto, nem tudo cabe nesses bolsos. “O que se entende por mercado editorial é formado por aquilo que é aceito pela chamada cena literária, e aí reside um problema: literatura é rasura de cena. Acho que se solucionaria o problema – se é que se pode falar nesses termos, de que há uma ‘solução’ e um ‘problema’ – se a cultura fosse tratada de forma mais humanizada e menos mercadológica”, sugere a professora Maria Aurinívea.

Ela frisa que nesse processo estão envolvidos questões para além do mercado: discussões sobre o preço do livro no Brasil, o modelo de ensino voltado para a competição e as especificidades da cultura letrada no Brasil. Sem falar que a visão em torno da leitura e do livro os colocam em uma aura redentora. “Nem toda leitura é proveitosa, nem toda leitura é importante. A literatura me ensinou tanto quanto me ensinam as cidades, a bicicleta, a música, as histórias em quadrinhos, o cinema”, destaca.

Nesse caminho, há quem tem contribuído para corroborar estruturas que mantém o livro dentro dessa dinâmica. “As visões críticas produzidas no meio jornalístico e nos ambientes universitários podem tanto validar quanto atacar essas facilidades mercadológicas. Existem outras necessidades de produzir e de comercializar o literário, que muita coisa do que se produz não se encaixa no que se compreende como demanda de um mercado”, explica a professora.

“Precisamos de uma crítica sistemática”, considera o professor Luiz Romero. “Você não vê um artigo, nem dos professores nem dos alunos, das duas universidades que tem cursos de letras formando profissionais na área de ciências da linguagem”, diz ele.

E você, lê?

“Os brasileiros têm lido mais”, conclui-se com a 4ª Pesquisa Retratos da Leitura no Brasil, levantamento publicado este ano, pelo Instituto Pró-Livro, em parceria com o IBOPE. No entanto, apesar de 56% dos brasileiros declararem ter lido pelo menos partes de um livro nos últimos três meses, os tipos de leitura continuam restritas a um segmento. Nesse quesito, Brasil e Teresina estão em consonância: os livros religiosos – principalmente a bíblia – são os tipos de livros mais lidos. Na Revestrés#20, foi publicado o Dossiê Cultura, pesquisa de opinião que, além de ter sinalizado as preferências literárias dos teresinenses, revelou: 64% diz ter o hábito da leitura, mas 89% nunca leu nenhum livro de autor piauiense, sendo que, a leitura religiosa apareceu com a maior porcentagem: 32,39%.

(Reportagem publicada na Revestrés#25 – Maio/Junho 2016)