Risca, apaga. Desenha, retoca. De super-heróis, vampiros e robôs a animais falantes, seres inanimados e histórias de terror. Criatividade e talento dão vida a universos fictícios. No entanto, muitas vezes o papel é alvo de histórias bem reais que, em outro momento, contaram acontecimentos políticos e engajamento social de seus autores.

O protagonismo de quem cria quadrinhos se estende para o campo íngreme do mercado autoral, na tentativa de fazer circular histórias sequenciais, muitas vezes, secundarizadas pelo mundo das artes plásticas ou relegadas a breves páginas dos periódicos diários.

Salões, feiras e exposições, publicações independentes ou ilustrações nos jornais. Quem produz quadrinhos no Piauí se depara com diversas ramificações. Desde eventos com enfoque na cultura japonesa até salões de humor e feiras de quadrinhos.

(Foto: Mauricio Pokemon)

(Foto: Mauricio Pokemon)

 

No mercado brasileiro, até hoje os ilustradores, quadrinistas e cartunistas se criam no ambiente das redações de jornais. Alguns artistas transitam não só pela linguagem dos quadrinhos, mas também as artes plásticas – porém, não de maneira tradicional. Traço característico, Amaral criou um universo particular com as quatro edições de Hipocampo, premiado com o troféu HQ Mix 2000, considerado o Oscar dos quadrinhos e humor gráfico.

Os mais corajosos se arriscam na produção independente, como é o caso de Bernardo Aurélio, que envereda pela edição de títulos, além de organizar feiras da área. Outros têm a chance de trabalhar de maneira freelance no mercado internacional, como Leno Carvalho, autodidata que esteve contratado pela editora Dynamit dos Estados Unidos e já trabalhou para a editora DC Comics.

Uma coisa é certa: Arnaldo Albuquerque deu o grande pontapé para a produção do ramo. Morto em 2015, Arnaldo é considerado pioneiro e explorador de diferentes técnicas, influenciando as gerações que vieram após a sua. Seu marco foi a Humor Sangrento, primeira revista em quadrinhos do Piauí, impressa em 1977.

Primeiro chargista da história piauiense, Arnaldo Albuquerque foi seguido pelo cartunista Albert Piauhy e, a partir da década de 1970, outros nomes atuaram nos jornais como Jota A, Dodó Macedo e, mais recentemente, Moisés, Izânio e Dino Alves. Atualmente, a variedade do que se produz no mundo de quadrinhos é extensa: perpassam os mais diferentes cenários que referências ilustrativas são capazes de influenciar.

(Foto: Mauricio Pokemon)

Leno Carvalho: já desenhou para a Dynamit e DC Comics (Foto: Mauricio Pokemon)

Pouco lembrado está Amauri Pamplona. Autor de 87 revistas intituladas O Grelo, 12 livros de cartuns e Hai Kais – a maioria inédita até hoje. O carioca nasceu em 1942 e é filho de mãe piauiense. Residiu em Teresina a partir de 1984 e criou os quadrinhos Batalhas de Machões, do ano de 1969, publicada tardiamente na revista Zig-Zag, de Teresina.

Enquanto grandes editoras polarizam o mercado americano e brasileiro, o Piauí segue com produções independentes, com apoio ou não de financiamento público ou privado. Muitas vezes negligenciado pelo mundo das artes plásticas, os quadrinhos se afirmam como linguagem autônoma, conquistando brechas e se afirmando enquanto arte.

Universo de todas as coisas

Hipocampo: estrutura localizada nos lobos temporais do cérebro humano, considerada a principal sede da memória. Do grego hippos = cavalo, kampi = monstro, é uma criatura mitológica partilhada pelas mitologias Fenícia e Grega. Pode ser também tempo-espaço de simbologia diferente que retrata o comportamento do universo. Esta última definição foi a narrativa criada por Antonio Amaral, artista plástico, quadrinista e designer gráfico.

Licenciado em arte-educação pela Universidade Federal do Piauí, é um dos editores da revista Pulsar, além de ter participado da antologia Consecuencias – historietas brasileñas, de Madri, Espanha. Currículo não define e, neste caso, limita. Amaral desenha a arte de todas as coisas: o universo e sua rotina.

De Campo Maior, Antonio Amaral veio para Teresina definitivamente em 1975, terminar os estudos. Seu primeiro contato com as artes visuais se deu com as histórias em quadrinhos ainda na cidade em que passou a infância. Cavaleiro Negro, Zorro e o Tonto circulavam entre as crianças na cidade da carne de sol. Trocavam histórias e Amaral deixou-se levar pelo impulso infantil de rabiscar os primeiros desenhos.

Adolescente, em Teresina, mudou-se para o bairro Parque Piauí, na zona sul. Passou a se reunir com os vizinhos para fazer leituras e os encontros resultaram na produção do jornal mimeografado O Osso, dedicado à literatura, poesia e política, realizado em cinco edições, em que participou, principalmente, ilustrando. “Eu entrei na universidade em 1980 e era uma época em que fronteiras se abriam. Comecei a fazer parte de algumas tendências do movimento estudantil e minha iniciação deve ter começado por aí”, conta.

Com a década de 1980 dedicada às artes plásticas e de uma geração que viveu o fim do sistema ditatorial, Amaral já tinha textos e desenhos engajados política e socialmente, aos 17 anos. Ilustrou matérias de jornais locais e suas pinturas em telas estiveram em exposições individuais e coletivas. Participou de festivais de música, expôs, trabalhou em agências de publicidade e colocou na expressão plástica o que foi capaz.

(Foto: Mauricio Pokemon)

Amaral: premiado com o troféu HQ Mix 2000, o Óscar dos quadrinhos (Foto: Mauricio Pokemon)

“Arnaldo foi o pioneiro e também foi uma das minhas influências. Talvez o Hipocampo tenha destacado o estado na área dos quadrinhos, mas não dá pra mensurar. É um começo de quadrinhos autoral, embora o de Arnaldo também fosse”, relata, modesto.

Autor da revista Hipocampo, Amaral é despretensioso e diz que a produzia no intervalo entre um trabalho e outro de maneira espontânea. A obra completa é composta por quatro álbuns, publicados em 1999, 2000, 2002 e o último em 2009.

“O Hipocampo é um universo onde eu procurei colocar anexos e influências da linguagem das artes plásticas. Cada álbum desses é uma sequência, uma simbologia diferente, como é o comportamento do universo. Tanto é que as minhas histórias nunca terminam, sempre têm uma continuidade, é como se fosse o recorte de uma narrativa. Não começam  nem terminam: acontecem”, comenta sobre a obra.

Sobre o prêmio que não deixou de ser um trampolim em sua carreira, Amaral analisa: “Eu acho que o que abriu as portas foi o troféu HQ Mix. Antes dele eu tinha duas atividades profissionais, que eram a de artista plástico e de designer gráfico. Depois, quadrinhos, que eram só um hobby, passaram a ser uma terceira atividade profissional. Fiquei com essa disponibilidade dentro da área nacionalmente”.

Diz não dar conta do movimento no estado. “Não me arriscaria a citar nomes pra não deixar ninguém de fora. Na nossa época, poucos faziam e era de forma muito isolada. Por isso que o trabalho do Arnaldo foi importante, porque quando ele veio, só tinha ele mesmo”.

Seu mais recente trabalho de expressão foi o projeto Osmose, do Instituto Goethe, de Porto Alegre. Nele, três quadrinistas brasileiros e três alemães fazem relatos visuais durante um mês sobre lugares que nunca estiveram. “Esse livro buscou levar esses artistas para lugares que nunca foram para fazer um relatório não verbal, ou seja, uma história em quadrinhos. É justamente o estranhamento que eles pretendiam”, conclui sobre o livro que o colocou ao lado dos quadrinistas Mawil, Paula Mastroberti, BirgitWeyhe, AishaFrans e João Monteiro.

No batente

Rua 7 de Setembro com Areolino de Abreu. Na banca da Erinalda e do Ribamar, jovens se reuniam aos sábados para falar sobre quadrinhos. Os encontros resultariam no que hoje é o Núcleo de Quadrinhos do Piauí, organização que existe informalmente desde meados da década de 1990 e realizou 13 edições da Feira HQ.

Composto por vice-presidente, secretários, diretores financeiros e conselheiros fiscais, o Núcleo publicou obras como a reedição da revista Humor Sangrento, as revistas da Feira HQ, Cabeça de Cuia – A dor que antecede a praga, de Ednaldo Carvalho e as obras de Bernardo Aurélio intituladas Foices e Facões: A Batalha do Jenipapo e Por Dentro do Máscara de Ferro.

“Quando começamos éramos um monte de meninos. De lá para cá, o Núcleo se formalizou como instituição registrada há cerca de seis anos”, conta Bernardo Aurélio, mestre em História do Brasil, sócio da livraria Quinta Capa Quadrinhos e, hoje, presidente do Núcleo.

À frente da Feira HQ a partir da terceira edição, Bernardo conta que, inicialmente, as exposições não eram competitivas. “No princípio era muito simples fazer a feira. Era só com a boa vontade, mesmo. Inicialmente com trabalhos, principalmente, de piauienses, a maioria das ilustrações eram voltadas para quadrinhos de super-heróis e mangás”.

Por volta de 2006, com recursos aprovados em leis de incentivo municipal e editais bancários de incentivo à cultura, a feira se torna competitiva. “A gente começou a fazer as exposições com premiação e isso estimulou a participação de outros estados do país”.

Nas primeiras edições os convidados eram nomes de peso local como o próprio Amaral. Com o patrocínio de editais públicos e privados, a feira recebeu nomes como Sidney Gusman, editor da Maurício de Sousa Produções; Hermes Barole, dublador do personagem Seiya de Pégaso, em Cavaleiros do Zodíaco; Daniel HDR, profissional da Marvel Comics; Mário Cau, ganhador do Prêmio Jabuti de 2013 com a adaptação para HQ de Dom Casmurro, de Machado de Assis, e estudiosos como Waldomiro Vergueiro e Sônia Luyten.

(Foto: Mauricio Pokemon)

Bernardo Aurélio, organizador da Feira HQ em Teresina (Foto: Mauricio Pokemon)

Com esses nomes a feira chegou a ter 5 mil pessoas a frequentando ao longo de três a cinco dias. “A Feira estimulou a produção, eu acredito. Isso me possibilitou enxergar um cenário, disperso, mas ele existe, com pessoas de talento produzindo aí”, afirma Bernardo.

Enquanto Núcleo, também publicaram e reeditaram livros e revistas. A primeira publicação foi a Humor Sangrento em 2007, edição comemorativa de 30 anos da revista. “Foi o primeiro trabalho que eu editei. Até então, eu tinha experiência só de montar fanzines, na fotocópia mesmo. De certa forma, isso me deixou muito contente porque eu pude me aproximar do Arnaldo”, conta Bernardo.

Apesar de organizar várias edições da Feira HQ e de ser responsável pela publicação de livros e revistas, Bernardo assume a dificuldade em continuar diante da falta de incentivo público e privado. “Não temos editais aprovados, nós ainda não temos recurso para fazer a feira e estamos pensando em alternativas como cobrar anuidade dos associados e cobrar do Estado para que o que aconteceu com o Salão do Humor não se repita”, referindo-se ao impasse dos organizadores em mantê-lo sozinhos.

“Existe um problema do Estado e existe um problema de quem faz a coisa. Você tem um calendário de eventos culturais públicos que não seria mais preciso correr atrás de recursos todo ano se o Estado realmente considerasse uma ação pública”, destaca.

Sócio da Livraria Quinta Capa, que existe há mais de quatro anos, Bernardo aponta que, apesar das dificuldades do mercado impresso, a livraria segue. Para se ter uma ideia, de acordo com o Painel das Vendas de Livros no Brasil, comparativo de 2015 e 2014 do Sindicato Nacional dos Editores de Livros, de um total de 150.000 títulos comercializados no período os 500 mais vendidos correspondem a 25% do total das vendas.

“É bem diferente eu vender Super-Homem e vender um autor local. Então, você imagina para um autor independente, que não tem um personagem famoso ou um material tão competitivo, se manter no mercado”, comenta Bernardo sobre o segmento que comercializa. “As pessoas dizem: Ah, por que o Maurício de Sousa conseguiu? Quer dizer, é você querer se nivelar pelo cara que fez maior sucesso na história dos quadrinhos no Brasil. Não dá pra qualquer artista se nivelar com esse cara”, completa.

Editor de livros e revistas, considera que o grande problema no mercado editorial brasileiro na área de quadrinhos é o acúmulo de funções sobre o autor. “Você não tem um mercado segmentado com cada pessoa fazendo a sua função; você não tem o editor, o distribuidor, um marketing. O autor tem que fazer tudo”. E critica: “Quais são as editoras no Piauí? Editora mesmo! Você tem gráficas, você não tem editora, recebendo propostas, analisando, montando um catálogo, não tem”.

Ofício Sagrado

(Foto: Mauricio Pokemon)

(Foto: Mauricio Pokemon)

Casa pequena, centro de Teresina. No primeiro cômodo, uma grande prancheta de vidro temperado e iluminação interna. Antes da visita, ao telefone, perguntamos como está o tempo do entrevistado e se é possível nos receber. “Eu desenho de manhã, de tarde e de noite”, diz Leno Carvalho sobre a dedicação integral ao ofício sagrado, que de tão devoto batizou seu blog profissional assim.

Do Rio de Janeiro, mas com a família do Piauí, Leno Carvalho passou parte da infância na capital carioca e outra parte em Teresina. Quando criança, teve um primo que desenhava como referência. “Ele tinha muitos quadrinhos. Eu ficava lá de bobeira, moleque, mexendo nas coisas dele”.

Na escola, deparou-se com a saga Dias de Um Futuro Esquecido, do X-Men. Mas foi na banca de revistas com endereço na rua 7 de Setembro que Leno teve suas primeiras lições sobre desenho. “Eu comecei a participar das reuniões que aconteciam lá aos sábados. Naquela época, você não tinha essa internet que a gente tem hoje em dia. Nem internet, nem orientação, se você quisesse desenhar tinha que ir pra São Paulo”, considera.

Não foi. Trocou figurinhas com os colegas que encontrava aos sábados e apostou no seu traço. “Eu comecei a entender quadrinhos junto com o pessoal da banca de revistas. O que eu sou hoje em dia, queira ou não eu devo a eles, à convivência com eles, ao feedback deles, então… Minha escola foi naquela banca”, relata.

Na década de 1990, a Impacto Quadrinhos, estúdio que agencia artistas para o mercado de quadrinhos, já tinha um site, para onde se poderia enviar mostra do material de desenhista. “Eu não perdi tempo, mandei pra eles em São Paulo, via internet. Pra mim não bastava fazer fanzine, então eu comecei a desenhar pra ser desenhista, eu queria que alguém escrevesse e eu desenhasse”, diz Leno.

Na carreira de autodidata, os projetos aparecem após algumas tentativas de contato. “Hoje em dia você tem algumas escolas, mas quando eu comecei na década de 1990 não tinha escola. Você tapa buraco de outro artista. Com o tempo, fui a São Paulo e peguei minha primeira revista, Station”, menciona sobre a história de cinco astronautas, de nacionalidades diferentes, enviados à primeira estação espacial multinacional.

Enquanto contratado pela editora Dynamit dos Estados Unidos, Leno Carvalho desenhou o título Mulher Biônica e, rapidamente, trabalhou para a editora DC Comics. “Por volta de 2009 eu fiz um freela pra DC, uma coisa muito rápida numa história do Super-Homem que saiu por aqui dividida em três partes”, conta.

O preço que se paga para o profissional de quadrinhos freelance varia de acordo com a obra, o cliente e o porte da editora. Por exemplo, para um desenho a lápis de artistas que entraram no mercado recentemente se paga de 180 a 200 dólares, para editoras como Marvel e DC Comics, e 150 dólares para obras de uma editora menor.

Atualmente produzindo essencialmente por encomenda, Leno Carvalho orienta: “O conselho que eu dou pra quem puder, que eu segui muito tempo depois é: vá pra uma feira, veja os profissionais, tenha contato com eles, receba um feedback. A indústria quer o cara que desenha bem e entrega o material no prazo, você é comprado pelos dois”.

Brasil de histórias – em quadrinhos

Com a publicação de As Aventuras de Nhô Quim, na revista Vida Fluminense, as histórias em quadrinhos chegam ao Brasil em 1869. No entanto, o sucesso do mercado editorial de quadrinhos no Brasil começa na década de 1930 com a publicação do Suplemento Juvenil de Adolfo Aizen, que trazia traduções ou versões dos quadrinhos norte-americanos aos leitores brasileiros.

No início do século XX, o “american way of life” repercutia a ideia de que tudo que era estrangeiro seria melhor. Os jornais brasileiros, a princípio, resistiam à produção de histórias brasileiras em quadrinhos e davam prioridade às histórias estrangeiras, não só americanas, mas também inglesas e francesas que chegavam ao país.

No início a produção nacional era efêmera e a apropriação dos comics americanos pelo mercado editorial brasileiro foi alvo de críticas quanto à relação entre os quadrinhos e o comportamento desobediente de crianças e adolescentes.

Em nível nacional, a revista Gibi pode ter sido a mais significativa publicação de quadrinhos da época e teve várias versões até o início do século XXI. Ao ser lançada, em 1939, a Gibi atuou na formação de uma cultura quadrinística no país, hoje muito expressiva, principalmente, com as histórias de Maurício de Sousa.

Mas não pense que só o público infantil é contemplado. O Brasil continua explorando temáticas adultas e reflexivas, como é o caso dos nossos vizinhos cearenses em Seres Urbanos – Antologia do Quadrinho Underground Cearense (1991-1998).  O livro foi viabilizado por um edital de incentivo à cultura do Ceará e teve sua produção interrompida porque foi considerado pornográfico. No entanto, em 2015 a equipe conseguiu a publicação e relata na história em quadrinhos o que se chama de submundo da capital cearense nos anos 1990.

Diferentes modelos de publicação de quadrinhos se popularizaram ao redor do mundo e, como não poderia deixar de ser, alcançaram o mercado brasileiro. São muitas variações entre o gibi original, a produção norte-americana, os álbuns europeus e os mangás japoneses. Tem pra todo mundo.

 

(Publicada na edição #19, maio/junho de 2015)