“Consolem-se os candidatos. Os maiores poetas (escritos) dos anos 70 não são gente. São revistas”. A frase é de Paulo Leminsk, refletindo sobre toda a produção artística que pulsava dos movimentos de contracultura daquela década. Não encontravam concorrentes. O espírito independente, coletivista e experimental das revistas roubava a cena e reunia a nata da cultura brasileira em textos seminais. E em meio a todas as publicações que surgiram entre os anos 60 e 70, lá estava todo o charme policromático da Navilouca.

Com seus 27×36 cm e mais de 90 páginas impressas em magenta e preto, a Navilouca foi divisor de águas para o surgimento de uma série de outras revistas independentes de poesia e cultura. Organizada e editada por Waly Salomão e Torquato Neto em 1972, quarenta anos mais tarde a revista é peça de colecionador e não deixa de impressionar quem a conhece por seu conceito, (pós) modernismo e curiosidades – uma delas, o fato de só ter sido publicada em 1974, dois anos após o suicídio de Torquato.

No recheio, além de Torquato e Waly Sailormoon, segura os nomes: Augusto de Campos, Rogério Duarte, Décio Pignatari, Duda Machado, Hélio Oiticica, Jorge Salomão, Stephen Berg, Luiz Otávio Pimentel, Chacal, Luciano Figueiredo, Oscar Ramos, Ivan Cardoso, Lygia Clark, Caetano Veloso e Haroldo de Campos. E mais uma dezena de fotógrafos como Alexandre Koester, Ivan Cardoso, Maurício Cirne, Rubens Maia, Arnaldo Medeiros, Kisco, Carlos, Carlos Ronald de Carvalho, Miguel Rio Branco, Eduardo Clark, Deca, Ricardo Horta, Antonio Noronha e Bina Fonyat, que, dentre outras imagens, retrataram os rostos que aparecem na capa mosaico anunciando: manual dos aqualoucos, primeira edição única.

Uma verdadeira experimentação sem preconceitos ou amarras literárias. A Navilouca hospeda textos teóricos, manifestos, autorretratos, prosa, cinepoemas, e a poesia concreta que reinventava a palavra e o sentido. Tudo isso de maneira totalmente sem compromisso com o convencional e com total liberdade de conteúdo – o único compromisso, aliás, parece ser a invenção, o exercício. Parafraseando Hélio Oiticica, todos estavam ali para “experimentar o experimental”.

Para o escritor e editor Sergio Cohn, autor do livro “Revistas de invenção – 100 revistas de cultura do modernismo a atualidade” (Azougue, 2011), a junção de uma imensa liberdade criativa, (comum as publicações alternativas que surgiram no período de ditadura militar que o Brasil vivia) a um conteúdo programático é o que mais chama atenção na Navilouca. “Há na revista uma unidade rara de se conquistar com o que poderia ser uma estrutura tão fragmentária e de bricolage, com cada artista convidado sendo o responsável por uma página ou núcleo”, comenta o pesquisador. “Isso mostra a sintonia de pensamento que havia entre os artistas daquele momento”.

No meio de outros títulos como Código, Bondinho e Polém, no livro a Navilouca aparece classificada na era “alternativa” – época em que as publicações tentavam driblar a mira do regime militar. A contracultura foi marcada pela convivência intensa de artistas das mais diversas áreas, na busca de espaços alternativos a grande imprensa – fato que acabou influindo em suas obras. “O diálogo entre cinema, teatro, artes visuais, música, poesia e outras artes conquistou uma proximidade inédita no Brasil”, aponta Cohn, que considera a Navilouca a melhor síntese da diversidade de expressões daquele período. “O encantamento é exatamente a diluição das autorias individuais em jogos, construções coletivas e encontros. É possível perceber o arranjo central feito por Waly e Torquato, na orquestração de nomes”, diz, analisando, “Mas após isso a impressão é que, mesmo eles, submergiram na aventura”.

Aventura -FA-TAL-

Se estivesse vivo, em novembro deste ano Torquato Neto faria 70 anos. Morreu aos 28, deixando uma discreta, porém densa contribuição intelectual no campo da arte, da literatura, do cinema e do jornalismo cultural. Fato curioso é que, segundo seu biógrafo, o jornalista Toninho Vaz, Torquato não trabalhava no sentido de produzir ou publicar um livro. A primeira edição de seus poemas e textos aconteceu somente depois de sua morte. A Navilouca é, talvez, a única obra fruto de um real desejo do poeta.

É também na revista que fica evidente a aproximação de Torquato com o campo das artes gráficas. “Era uma forma de expressar o novo, o diferente, uma nova vertente criativa no sentido mais puro da poesia. Sabe-se lá com que meios, Torquato Neto reuniu amigos e fez da diversidade, da falta de padrão, um novo padrão a estabelecer-se”, diz George Mendes, publicitário e primo de Torquato. “Os conteúdos pertenciam a cada um. A forma final é a não-forma. Não havia uma linha, mas várias”.

George é dono de três exemplares da revista que guarda em seu acervo pessoal – Navilouca é raríssima, com sorte se encontra algum exemplar perdido em sebos do sudeste por até 4 mil reais. Uma rápida pesquisa no Google acusa um exemplar ofertado no classificado online OLX. O vendedor, de Recife, pede 2 mil reais pela revista.

Com projeto gráfico de Luciano Figueiredo e Oscar Ramos, Navilouca não chegou a 500 exemplares e teve distribuição restrita ao Rio de Janeiro e São Paulo. A história conta que Torquato teria deixado pronto o arquivo da revista quando decidiu interromper a própria vida. Mas o projeto só foi mesmo concluído em 1974 por Waly Salomão e Caetano Veloso, através da PolyGram. Foi distribuída no final daquele ano como brinde de Natal e chegou a algumas livrarias somente em 1975.

Em 2012, em Teresina, George Mendes lança uma versão digital da revista, com distribuição gratuita em CD: uma forma de tornar mais conhecida e também de preservar os arquivos de quem guarda uma edição original da Navilouca a sete chaves, como o médico Antônio Noronha. Amigo de infância de Torquato, é ele o autor da foto estampada na capa do almanaque, onde Torquato aparece magro, sem blusa e de cabelos cortados. “Aquela fotografia foi produzida no sanatório Meduna, durante o período de internação do Torquato”, relembra Noronha. “Para mim, era mesmo um desejo dele que a revista fosse publicada postumamente. Ele fez isso com várias coisas, como o filme Terror da Vermelha, também editado após sua morte”, defende o colecionador. Inovação e modernidade gráfica, diz, é o o que mais o encanta na Navilouca. “Não é e nunca será uma revista antiga, é moderníssima, é uma revista de sempre, não tem idade”, afirma. “Como uma obra de arte, nunca envelhece”.

Vai, bicho

Ao lado de Décio Pignatari e o irmão, Haroldo, o paulistano Augusto de Campos foi gestor da nova vertente poética que se pretendia revolucionária. Ele foi convidado a colaborar com a Navilouca por Torquato Neto. Os dois se conheceram por intermédio de Gilberto Gil, que frequentemente levava o colega piauiense aos encontros no apartamento de Campos em São Paulo. “Acho que ele era tímido, falava pouco, pausadamente, com voz grave e discreta”, disse Augusto em entrevista para Revestrés por e-mail. “Eu procurava municiá-lo de informações”.

Informações que chegavam de todas as formas: revistas, livros, artigos de jornais, discos, traduções, discursos e etc. “Ele adorava o prefácio escrito por Décio Pignatari para a revista Invenção nº 5 (1966-1967) que eu lhe dei de presente”, recorda Augusto: “Na geléia geral brasileira, alguém tem de exercer as funções de medula e de osso”. Mais tarde, Geleia Geral estaria em uma de suas letras mais conhecidas e daria título a sua coluna no jornal carioca Última Hora.

Coisa parecida aconteceu com a expressão “desafinar o coro dos contentes”, frequentemente atribuída a Torquato. “Eu a cunhei compactando palavras de Sousândrade e apliquei primeiramente ao grande poeta maranhense e depois a João Gilberto”. Augusto conta que a usou pela primeira vez numa entrevista ao Estadão, no ano de 1966. Repetiu na apresentação do livro Balanço da Bossa em 68, segundo lembra a memória prodigiosa do poeta de 83 anos. “Aconteceu na livraria Sal em 21 de agosto de 1968. A livraria ficava quase em frente ao apartamento de Caetano e todos os tropicalistas compareceram, inclusive Torquato”.

Anos depois, Torquato relembraria o fato numa crônica intitulada “Let’s Play That”, publicada em 19 de janeiro de 1972 e revelava: “Uma outra conversa muito tempo antes, nos sessenta e oito e tantos, com Augusto de Campos em São Paulo. Desafinar o coro dos contentes, desafinar o coro dos contentes, desafinar”. ‘Let’s Play That’ mais tarde daria nome a uma canção com poema inédito de Torquato, musicado por Jards Macalé. E lá estava então o trecho: “Vai bicho, desafinar o coro dos contentes”.

“Isso me faz também um co-autor da letra” diz Augusto de Campos. “Mas o processo de bricolagem do Tropicalismo autorizava estas citações e empréstimos que, de todo modo, documentam o contato dos seus protagonistas com os concretos”.

Desamparado com a partida dos baianos para o exílio, no ano de 1968, Torquato Neto, que não foi preso nem obrigado a sair do país, resolveu por conta própria viajar para a Europa com Helio Oiticica. “Ele me apareceu um dia pedindo para verter para o inglês algumas de suas letras, o que não faço para ninguém, mas fiz pra ele, sentindo a sua aflição”, revive Augusto. “Foi a última vez que o vi”.

Viva Vaia

Augusto de Campos é o autor do famoso manifesto Viva Vaia, feito em 1972 e dedicado a Caetano Veloso (quem nunca ouviu falar do episódio em que o compositor, vaiado durante sua apresentação, no Festival Internacional da Canção de 68, enfrenta a plateia enfurecida?) e publicado pela primeira vez na Navilouca. Para o autor, a revista é, em si, um marco da poesia experimental pós-concreta. “A principal referência, mais do que a uma difusa marginália, era o encontro entre a poesia concreta e a Tropicália, um diálogo poético-musical”.

 

À época, o poema-concreto Viva Vaia foi foco de grande polêmica. Leitores se dividiam entre os que o achavam genial e os que o consideravam um presunçoso manifesto da imbecilidade artística. Os versos, que deveriam ser desmantelados em suas unidades morfológicas, semânticas, sintáticas e léxicas, contaram com o auxílio do diagramador Júlio Plaza.

Desde o princípio o poema foi pensado para ser um “monumento”. “Mas só veio a aproximar-se dessa concepção na exposição ‘Poesia concreta – O Projeto Verbivocovisual’, quando foi apresentado escultoricamente, em acrílico e grandes proporções”, diz Augusto de Campos referindo-se a exposição montada no instituto Tomie Ohtake no ano de 2007. A obra se tornou uma das principais em sua carreira, pela capacidade de sintetizar alguns princípios da poesia concreta e de atingir o impacto almejado pelo movimento concretista. Viva Vaia também virou o nome da primeira antologia de Augusto, publicada em 1979.

 

(Publicada na Revestrés#14, maio/junho de 2014)