Texto: Vitória Pilar

Entrevistas e apuração: Victória Régia, Dara Santos, Michael Douglas

Edição: Samária Andrade

Patrícia Veras é uma mulher, mas seu rosto ainda tem traços infantis. Os olhos miúdos, atentos, olham para tudo que acontece ao seu redor: as crianças brincando, os carros passando na rua, a conversa das amigas, os animais passeando entre suas pernas. Apesar das distrações, ela destina seus esforços apenas para uma única pessoa: a criança aninhada em seu colo. Despercebidamente, quem passa pelas duas, avalia que poderiam ser irmãs. É quando ambas se preparam para a amamentação que fica claro: ali estão mãe e filha.

Patrícia Veras, 22 anos, 3 filhos | Foto: Vitória Pilar

Aos 22 anos, Patrícia é mãe pela terceira vez. A primeira gestação aconteceu aos 16 anos. Bem antes disso, ela já havia passado por quase todos os abrigos de acolhimento à crianças e adolescentes sediados em Teresina. Como todos os amigos que tem, desde que se entende por gente, sua sina parece ter sido migrando de abrigo para abrigo na cidade. “Desde muito pequena eu já vivia assim: rebolada de canto em canto”, declara. Patrícia não faz ideia de quem seja seu pai biológico e quanto à mãe, lembra somente das esporádicas visitas aos abrigos.”Sempre chegava alcoolizada e fazia confusão na porta das ‘casas’. Diziam que ela era aquela coisa que chamam quando a pessoa vive na rua, como é mesmo? Usuária”, relembra. A referência paterna é um ex-companheiro da mãe, o mesmo que registrou seu nome em cartório. “É um cara bacana, ainda me ajuda como pode”, destaca.

Patrícia sabia que a maioridade colocaria fim à sua viagem pelas instituições de acolhimento. Ela também acreditava que quando completasse 18 anos sua vida mudaria. De uma hora para outra, magicamente. “Morar em abrigo é bom, mas é ruim”, avalia. “Tem comida, tem cama, tem teto, mas não é como ter sua casa. Nunca vai ser”. Acontece que, com a gravidez, só lhe restariam duas escolhas: ou ir embora de vez ou mandar a criança para outro abrigo. “Eu não quis ficar longe da neném e acabei indo embora na primeira gravidez, mesmo sabendo que não poderia mais voltar”.

Morar em abrigo é bom, mas é ruim. Tem comida, cama, teto, mas não é como ter sua casa. Nunca vai ser” – Patrícia Veras, 22 anos.

Da primeira à terceira gravidez, Patrícia não dá muitos detalhes do que houve com ela. Teve três meninas, “todas muito parecidas com a mãe” – garante, entre risos e com olhar distante. Agora vive somente com a mais nova, de apenas um mês, em uma pequena casa no bairro Torquato Neto, zona Sul de Teresina. Desempregada, tem vivido de doações de amigos, além das parcelas do Auxílio Brasil, benefício do Governo Federal. Sem ensino médio ou qualquer curso ou habilidade específica  no currículo, não conseguiu arranjar emprego. Apesar disso, faz planos: assim que a filha não dependa mais de amamentação, vai realizar a prova do Encceja(Exame Nacional para Certificação de Competências de Jovens e Adultos), teste realizado nacionalmente que certifica jovens e adultos para conclusão do ensino médio. Depois pretende fazer algum curso profissionalizante e “fazer algo da minha vida”. Ela ainda não sabe o que é, mas acha que vai precisar (re)começar do zero – mais uma vez.

Abrigo como direito

Abrigos como os que Patrícia viveu, destinados para crianças e adolescentes, existem oito em Teresina. São eles: Casa Dom Barreto e Casa Savina Petrilli – financiados por instituições privadas; Lar da Criança Maria João de Deus, Abrigo Feminino e Abrigo Masculino – para adolescentes e mantidos pelo Governo estadual; além da Casa de Punaré (somente para meninos) e Reencontro (misto), mantidos pela Prefeitura de Teresina. No interior do estado, somente as cidades de Parnaíba e Piripiri têm abrigos, mantidos pelas respectivas prefeituras.

A primeira casa de abrigo para crianças e adolescentes em situação de vulnerabilidade no Piauí foi criada em 1847, na cidade de Oeiras, primeira capital do Estado. Uma lei provincial instituiu, à época, o atendimento para “meninos pobres e desvalidos”. No lugar, eram oferecidos cursos de capina, ferreiro, sapateiro, alfaiate, música e primeiras letras. Na oficina de alfaiate se produziam fardamentos para internos e para a corporação militar. As crianças do lugar eram submetidas a castigos físicos e morais.

De acordo com a pesquisadora e assistente social Gabriela de Sousa Silva, da criação da primeira casa de abrigo no Piauí até a criação do Serviço de Assistência a Menores (SAM), com a institucionalização de espaços mantidos pelo governo, passaram-se quase 100 anos. “Mas com o tempo, o SAM adquiriu uma péssima imagem, com denúncias de exploração dos internos e práticas clientelistas em sua admissão”, relata Gabriela na monografia do curso de Assistência Social pela Universidade Federal do Piauí (UFPI). Em 1960, esses locais foram extintos. Somente 19 anos depois, via Governo do Estado, foi aprovado o Novo Código de Menores no Piauí. Mas a criação do código estava longe de ser um avanço. Com a nova normativa, retirou-se do Estado a obrigação em assistir crianças e adolescentes, e a responsabilidade sobre as situações de risco acabou recaindo sobre famílias e jovens.

De lá para cá, discussões em torno da existência dos abrigos, as práticas pedagógicas e os direitos das crianças e adolescentes em situação de abandono ou vulnerabilidade tem ganhado espaço na esfera discussão dos direitos humanos. É o que Gabriela analisa: deixou de ser um problema apenas de acolhimento e passou a ser observado sob a perspectiva que envolve outras questões ligadas à pobreza, falta de planejamento familiar e uso de drogas. Percebeu-se, então, que era necessário não apenas receber a criança ou o adolescente nos abrigos, mas realizar estratégias que pudessem conhecer e enfrentar os problemas sociais de todo o ciclo familiar – seja com atendimentos sociais ou atividades desenvolvidas nas sedes.

Mudanças mais significativas nos atendimentos e acompanhamentos de crianças e adolescentes nessas instituições, vieram com legislações aprovadas a partir de 1988, incentivadas principalmente pela Constituição da República Federativa do Brasil. Essa Constituição observou pontos que se materializaram como avanço nas lutas pelos acolhimento seguro, como o direito à convivência familiar e comunitária – para romper o enclausuramento nas instituições.

Corrida contra o tempo 

Junto ao avanço nas leis, há um movimento crescente no Brasil pela redução da institucionalização dos jovens. No Piauí, ele é encabeçado por Francimélia Nogueira, assistente social e coordenadora do  Cria (Centro de Reintegração Familiar e Incentivo à Adoção). O Cria é uma entidade da sociedade civil, existente em quase todos os estados, com trabalhos voluntários e alguns apoios governamentais. No começo dos anos 2000, Francimélia fazia parte do “apadrinhamento afetivo voluntário”, realizado pelo Lar da Criança Maria João de Deus. Nesse sistema, uma família se dispõe e é selecionada para receber uma criança por um período entre um a seis meses. A criança passa a conviver na casa dessa família. Ana Carla tinha um ano e seis meses quando passou a conviver com Francimélia. A menina tinha verminose, estava com furúnculos na cabeça e, ao dormir, apresentava uma espécie de “pavor noturno” – distúrbio do sono associado a experiências traumáticas que provoca sustos e interrompe o sono. “Uma coisa é saber quando uma criança está no abrigo, outra coisa é sentir os impactos da institucionalização na vida de alguém”, declara a assistente social.

O que era para ser uma temporada, acabou se tornado definitivo: Francimélia e Ana Carla, hoje aos 22 anos, se transformaram em mãe e filha. Pouco tempo depois da adoção, Francimélia fundou o espaço Cria em Teresina. Ele funciona em imóvel cedido pelo Governo do Estado no Centro de Teresina. O lugar não é um abrigo, nem tem intenção de se tornar. Por lá, todas as ações são concentradas em integrar crianças e encaminhá-las para um lar.

Mas encontrar esse lar é uma tarefa difícil. Na capital do Piauí, segundo dados  da 1ª Vara da Infância e Juventude de Teresina, até setembro de 2022, haviam 298 processos de pessoas interessadas em adotar e apenas dez crianças em vias de adoção. O número de possíveis adotantes é quase 30 vezes maior que o de meninos e meninas que aguardam adoção. A imensa maioria dos adotantes aptos é de casais heterossexuais: 237 processos. Os demais são dez casais homoafetivos (oito formados por homens e dois por mulheres) e 51 pretendentes solteiras, sendo 48 mulheres e três homens.

Aos 12 anos a criança é encaminhada para abrigos com adolescentes. “Elas são separadas, muitas vezes, dos irmãos de sangue e amizades feitas. É um sistema perverso” – Francimélia Nogueira

O desencontro entre os números se dá, principalmente, pela incompatibilidade do perfil procurado pelos adotantes, que acaba não coincidindo com a maior parte das crianças a serem adotadas. Na lista de preferência dos possíveis pais e mães, a busca é por crianças com menos de três anos. Na lista de disponibilidade, em sua maioria, as crianças têm entre 12 a 16 anos. Há também crianças com irmãos, problemas de saúde e deficiências. Crianças com diagnóstico de Transtorno do Espectro Autista (TEA), costumam ser o perfil mais recusado entre os adotantes.

A corrida contra o tempo começa quando a criança atinge os doze anos, alerta Francimélia. Esse período é conhecido como “a crise dos 12”. A depender dos abrigos, as separações são feitas por faixa etária e gênero. Os espaços entendem que, após os doze anos, a criança passa a ser adolescente e deve ser encaminhada para os abrigos com adolescentes de até 18 anos. “Acontece que essa diferenciação ignora os laços afetivos e a rotina desenvolvida por quem fica nos abrigos até os doze anos”, explica Francimélia. “Essas crianças são separadas, muitas vezes, dos irmãos de sangue e das amizades feitas no abrigo”, complementa. “Quando faço visitas às crianças que estão perto de completar o décimo segundo aniversário, elas ficam implorando para encontrarem logo uma família. É um sistema perverso”.

A crise dos 18

A segunda crise acontece perto dos dezoito anos. É a hora definitiva de deixar as instituições. É o dia mais triste do abrigo. Foi assim para Edivaldo Santos.

Edi, 20 anos: “Eu sou adulto agora?” | Foto: selfie

Edi, como prefere ser chamado, entrou no abrigo aos três anos. Não sabe bem como chegou até lá, mas soube já na infância, que os pais não tinham condições de lhe sustentar. Diz que nunca se revoltou com a situação e, com o passar dos dias no abrigo, se acostumou com o destino que a vida lhe apresentou. Até os doze anos viveu no Lar da Criança, na Vila Operária, zona Norte de Teresina. Por lá fez amigos que considera irmãos. Pouco tempo depois, conheceu duas irmãs biológicas. Assim como ele, elas foram migrando entre os abrigos da cidade. No dia que precisou se despedir, Edi sentiu que até os funcionários ficaram tristes. “Naquela hora, nem eles queriam que eu fosse embora”, relembra.

O garoto foi encaminhado para a Casa Dom Barreto, para ele, um lugar totalmente desconhecido. Demorou tempo até Edi se enturmar e aceitar o novo lar. Os amigos não eram os mesmos, nem a rotina. “Naquela época eu não entendia muito bem o que acontecia, mas hoje percebo que entrei numa depressão”, avalia.

A cada ano que passava, Edi percebia que seria cada vez mais difícil ser adotado. Quando completou 17 anos, veio uma nova mudança. Foi então encaminhado para a Casa de Punaré, abrigo da prefeitura de Teresina somente para meninos. Foi lá que viveu seu último ano em casas de acolhimento.“É muito difícil viver num ambiente diferente de tudo que você viu quando criança”, relembra. “Eu nunca consegui me acostumar”.

É a primeira vez que moro sozinho. Não sei se é bom ou ruim, mas fácil não é” – Edi Santos, 20 anos.

Com a saída da Casa de Punaré, mais uma vez era como se Edi começasse do zero. Mas agora, pra valer. “A vida real bateu com força. Eu sou adulto agora?”. Hoje com vinte anos, Edi percebe que o tempo no abrigo pouco lhe preparou para o cotidiano na cidade. Atividades como ir ao banco, pegar um ônibus, emitir um documento, lidar com burocracias rotineiras, pareciam muito difíceis. Sem qualquer adulto a quem recorrer, depois dos dezoito, a vida lhe pareceu mais injusta.

Com a ajuda de familiares, nos últimos meses Edi conseguiu ter acesso a uma pensão deixada pelo pai biológico. Com esse dinheiro mantem uma quitinete no bairro Lourival Parente, Zona Sul de Teresina. O lugar é pequeno, suficiente para uma pessoa viver. “É a primeira vez que moro sozinho. Não sei se é bom ou ruim, mas fácil não é”.

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