No segundo bimestre de 2013, a Revestrés de número 7 chegava às bancas com uma capa provocativa: em fundo branco, abrindo mão das manchetes tão usuais no jornalismo, uma única frase em letras pretas interrogava: Cadê a cultura que estava aqui? Era o segundo ano de existência de uma revista com o propósito de cobrir cultura e que, naquela edição, colocou-se como ator participante de um sentimento desencadeado pela falta de políticas públicas voltadas para este setor. O sentimento, aquela altura, parecia ser uníssono na cidade: ecoava o abandono.

Na época, entre outras coisas, a reportagem foi criticada por trazer uma visão vitimizada da cultura – grupos ligados, por exemplo, à dança contemporânea, que seguia despontando em festivais internacionais, criticaram o fato de atribuir-se aos órgãos públicos a subsistência das manifestações artísticas de uma cidade ou região. Revestrés falava da urgência de espaços como museus, galerias, centros culturais e também da continuação de projetos que, de tanto tempo em curso eram considerados verdadeiros patrimônios culturais – em outras palavras, a discussão era também sobre a profissionalização da arte. Queria refletir sobre a possibilidade da arte existir como cadeia econômica para quem consome e quem produz – e para isso, ela precisava ser fomentada.

 

Associação Amigos da Orquestra Sinfônica de Teresina (AAOST): autonomia e credibilidade para músicos. (Foto: arquivo OST)

 

Oito anos depois, um anúncio feito pela nova gestão municipal de Teresina pegou bailarinos e músicos da cidade de surpresa. Era uma terça-feira, 11 de maio, quando a notícia de que a prefeitura da cidade iria encerrar os contratos com as associações mantenedoras do Balé da Cidade e dos músicos da Orquestra Sinfônica de Teresina, chegou, aos ouvidos, desafinada. Pelas redes sociais, Robert Rios, vice-prefeito e secretário de finanças do município, anunciou o último repasse para as diretorias das associações e disse que, a partir de então, os pagamentos aconteceriam “sem atravessadores”. Em tom de ameaça, informou que iria pedir auditoria nas contas das organizações. “Acabou a picaretagem”, alertou.

O anúncio chocou a classe artística não somente por seu teor ofensivo – mas por ter sido uma decisão tomada sem consulta prévia a artistas, dirigentes e pessoas vinculadas a estes serviços. De uma hora para outra, pessoas que viviam do trabalho desempenhado nesses espaços como Casa da Cultura e Palácio da Música, após anos de trabalho, voltariam à condição de bolsistas ou prestadores de serviços sem vínculo empregatício. Contradizendo a notícia que primeiro se espalhou – de que, sem o repasse dos recursos os projetos seriam descontinuados – a prefeitura esclareceu que todas as ações das OS’s (7 mantidas só pela Associação dos Amigos da Orquestra Sinfônica de Teresina, a AAOST) seguiriam existindo. O vice-prefeito, no entanto, não voltou atrás das acusações de desvios do dinheiro público.

Agora, já um pouco distantes da polêmica, e passado o calor dos acontecimentos, Revestrés propõe uma discussão sobre o que são as associações, quais os tipos de contrato e que trabalho os artistas vinculados a cada um desses projetos executam. É nossa forma de atualizar a pergunta que anos atrás tanto incomodou e, ao que parece, continua sem resposta. Cadê o contrato que estava aqui?

 

O que é uma OS

Aurélio Melo é um homem miúdo, de fala mansa e conhecido pelo uso da sua boina tão característica.  No Palácio da Música e pela cidade, é conhecido apenas pelo nome de maestro – função que ocupa na Orquestra Sinfônica de Teresina há mais de vinte anos. 

O maestro acompanhou a transição da Orquestra de Câmera para Orquestra Filarmônica, quando o grupo conseguiu um apoio milionário dos Correios – na época, presidida pelo piauiense João Henrique Sousa, a instituição financiou por dois anos um salto em tamanho e proporções da orquestra. Novos instrumentos como tímpano, violinos de ponta, oboé e fagotes foram comprados. De 25 bolsistas, a orquestra passou para 35 músicos contratados.

“Depois que os Correios saiu, a prefeitura estava muito empolgada e queria dar um jeito de segurar a conquista dos músicos”, relembra o maestro. Ele, que era muito mais dado aos sons do que aos números e às administrações, foi pesquisar formas de manter o vínculo – chegou-se ao modelo de organização social – as OS’s, popularmente conhecido e já adotado em outros estados. “Eu não sabia de nada, meu negócio é reger”.

 

Associação dos Amigos do Balé da Cidade de Teresina (AABCT): emprega mais de 70 pessoas. (Foto: arquivo Balé da Cidade)

 

Pegando o modelo implantado em outras regiões – como a OSESP, Orquestra Sinfônica do Estado de São Paulo, equipamento cultural mantido pelo governo do estado desde 2005 – a OST criou também a sua associação, firmando contrato com a prefeitura municipal. Desde então, a Associação Amigos da Orquestra Sinfônica de Teresina (AAOST) vinha funcionando como uma empresa privada, intermediando o contrato com direitos trabalhistas entre os músicos e a prefeitura. “Não foi algo que caiu do céu, não foi jogada política”, enfatiza o maestro e diretor da associação. “Foi resultado de muito trabalho!”.

No Piauí, as organizações sociais são regidas pela Lei Ordinária Nº 5.519 de 13 de dezembro de 2005. São declaradas como entidades de interesse social e utilidade pública, englobando atividades e serviços exercidos na área de ensino, pesquisa, meio ambiente, saúde e cultura. É nessa regulamentação que se insere também as OS’s voltadas à cultura em Teresina, que possuem contrato de gestão com a Fundação Municipal de Cultura Monsenhor Chaves, órgão responsável pelas atividades de música e dança na capital. Seu funcionamento contempla atividades sociais voltadas à população.

Além da Amigos da Orquestra, outra associação surgiu na mesma década, com a necessidade de formalizar seus artistas e trabalhadores envolvidos. Em 2017, a  Associação dos Amigos do Balé da Cidade de Teresina (AABCT) formalizava seu contrato enquanto OS junto a prefeitura municipal. 

Para ambos os grupos, a criação da Associação deu autonomia e credibilidade para a execução e manutenção dos trabalhos desenvolvidos. Sozinha, a OST hoje emprega 146 funcionários, entre músicos, professores e funcionários administrativos. Só a Orquestra Sinfônica possui 63 integrantes, mas a AAOST também comanda projetos como a Banda 16 de Agosto, a Orquestra Sanfônica, o Projeto Violões e a Banda de Música das Escolas. Os salários variam de 1 mil a 7 mil reais, de acordo com o cargo ocupado. A média recebida é de 2,6 mil.

Em comum, os dois projetos têm ainda o fato de serem pioneiros em suas atuações e de existirem há quase três décadas. Atualmente, o Balé da Cidade, dirigido por Chica Silva, que também preside a AABCT, emprega 71 pessoas, entre bailarinos, instrutores de dança, teatro, capoeira, guia de museu, coordenadores, produtores culturais e técnicos, além de assessoria de imprensa, motorista e serviços gerais. Tudo isso custa aos cofres públicos 189 mil reais mensais – 95% dele voltado para a folha de pagamento. O restante do valor é destinado, segundo a companhia, para a manutenção do Balé, que vai desde manutenção, compra de equipamentos e material administrativo. O mesmo ocorre com a AAOST, que possui um gasto mensal de 416 mil, sendo destinado para pagamento de funcionários e manutenção da orquestra.

“As nossas contratações, na maioria das vezes, eram por meio de uma terceirizada e não tinham na carteira o que cabia de direito como artistas”, explica Chica Silva. “Era muito mais fácil ter esse respaldo através da Associação para poder estabilizar essa questão de direitos trabalhistas”, segue dizendo. Nesse processo, além da inclusão dos bailarinos integrantes dos elencos, a Associação do Balé incluiu também outras categorias que exerciam atividades culturais relacionadas, como instrutores de dança, cinema, técnicos de teatro e iluminadores. O contrato de gestão é renovado anualmente. 

As Associações também contribuem para a continuidade dos serviços prestados pelo grupo, garantido que os serviços e os planejamentos não sejam encerrados a cada nova gestão municipal. Na ASOST, o contrato é renovado a cada cinco anos, revisando o cunho cultural, educacional e artístico dos projetos, que atingem, sobretudo, grupos e populações de baixa renda, muitas vezes sem acesso ao consumo de cultura e lazer. 

“O mais bonito da nossa orquestra é que é uma coisa grandiosa, em um estado pobre”, defende Aurélio. “Teresina respira um ar como Roma, a cultura da música clássica para músicos, sobretudo, da periferia”, argumenta. Revisitando os números do ano passado, o Balé da Cidade conta ter atingido mais de mil crianças, adolescentes e adultos. “A gente acaba fomentando uma cadeia para além do Balé”, defende Chica. “É uma coisa que pode parecer micro, mas, para quem está lá dentro, é grandioso”. 

 

Direitos trabalhistas são conquistas

No final da década de 1980, Antônio do Desterro Viana trabalhava em uma oficina mecânica com pintura e lanternagem de automóveis. Morador do bairro Cristo Rei, conciliava a rotina entre os carros com a de educador de rua no centro social do bairro, ao lado de Dom Alfredo – foi ele, arcebispo de Parnaíba, que pagou para Desterro as primeiras aulas de música, para que ele tocasse órgão na igreja. “Sou até hoje organista na Igreja Nossa Senhora da Paz”, conta.

OST: fins sociais e proposta pedagógica nas comunidades (Foto: arquivo OST)

 

Quando a Orquestra Sinfônica de Teresina foi fundada, em 1993 – ainda sob a égide de Orquestra de Câmara, pequena e para tocar em ambientes fechados – o professor e primeiro diretor, Emmanuel Coelho Maciel, recorreu as bandinhas de bairros para recrutar seus melhores músicos. A proposta, que sempre teve fins sociais, voltando o olhar pedagógico para comunidades menos favorecidas, selecionou 25 jovens, dos quais 16 nunca haviam estudado música. Entre eles estava Desterro, que na bandinha do bairro tocava tuba, um instrumento de sopro da família dos metais.

“A orquestra significa muito para mim porque além da vocação, nela eu descobri uma profissão”, comenta por telefone. “Até hoje eu trabalho como músico e isso foi a realização de um sonho profissional”, continua. “Na orquestra eu sou contratado, tenho carteira assinada, plano de saúde e todos os direitos garantidos”, explica ele que toca contrabaixo acústico na OST, mas nunca abandonou o órgão na igreja. 

Na OST, Desterro também é idealizador do projeto OST na Escola, que leva lições sobre música erudita e apresentações dos músicos em escolas da rede municipal de ensino. Além disso, também é voluntário na escola Dona Gal, mantida pela violoncelista Wânya Sales, sua colega da OST. 

Lá no centro da cidade, mais precisamente na Casa da Cultura, a rotina é corrida para José Nascimento, bailarino e coreógrafo do Balé da Cidade. As aulas são de 14h30 às 16h, todos os dias da semana, e até as 18h o grupo costuma ensaiar para espetáculos e apresentações da agenda. 

Dançando há mais de duas décadas, sua história como bailarino se confunde com a da profissionalização do Balé, onde entrou em 2005, aos 21 anos. Da família, José é o único envolvido com arte. “Meu pai costumava dizer que isso não dava dinheiro, que não era profissão”, nos diz em entrevista. 

A história mudou quando, de bolsista, recebendo um salário mínimo, José e os outros dançarinos foram contratados em carteira. “Na gestão do Roberto Freitas, a gente ainda era contratado como instrutor”, relembra. “Só passamos a ser contratados como bailarinos na gestão da Chica Silva”. 

José, que é técnico em administração e também designer, diz que poder viver da dança é uma realização. “Ter a certeza de que eu posso ter um futuro fazendo o que eu gosto”, comentou. “As pessoas tratam dança como um hobby, mas para nós, bailarinos, é uma profissão”, defende.

José Nascimento: dança é uma profissão. (Foto: Claryanna Alves)

 

Além da atuação no Balé da Cidade, há 14 anos José mantém em paralelo os projetos “Só homens cia de dança”, com mais 3 amigos bailarinos, e também a sua própria companhia “Cia José Nascimento”. Para quem tem jornada sólida, construída mesmo com todos os percalços, a falta de diálogo e novas diretrizes do poder público não é vista com bons olhos. “Todos os direitos trabalhistas que ganhamos foi com luta”. 

“Como  qualquer outra profissão, leva-se muito tempo para poder ter a prática e as informações necessárias”, defende Chica Silva. “Se a gente não tiver coerência e continuidade, muita coisa vai se perder, inclusive o público”, diz. 

 

Cadeia artística

Em quase três décadas de atuação, é óbvio que a trajetória de muitos músicos se cruzaram pelo caminho. Foi o caso de Miranísia Freitas e Daniel Venício, ambos musicistas profissionais da Orquestra Sinfônica de Teresina. Eles se conheceram ainda na banda do bairro Cristo Rei, se reencontraram na Banda 16 de Agosto e casaram na OST. É correto dizer que a orquestra é literalmente a família de Miranísia hoje.

Miranísia, única mulher do setor de sopro da orquestra (Foto: arquivo OST)

Ela é a única mulher das madeiras – como é chamado o setor de sopro de uma orquestra – e toca fagote, um instrumento italiano de som grave e expressivo. Miranísia tomou aulas com Hélio, o primeiro fagotista da OST, para aprender a tocar o instrumento que, até então, só conhecia dos livros. Em 2010, começou como segunda fagotista oficial da orquestra.

O instrumento que Miranísia toca hoje custou 13.500 reais e é um modelo estudantil. “Não é um instrumento muito comum, é europeu, de alto custo”, comenta. Em Teresina, apenas a Banda 16 de Agosto e a Orquestra Sinfônica o possuem. 

Paralelo ao trabalho na OST, Miranísia estudava música na Universidade Federal do Piauí. Com colegas de lá, formou o Quinteto Piauí. “Tudo que tinha de evento éramos chamados pra tocar”, relembra. Além de músico da orquestra, o marido também é professor de música no ensino básico e dá aulas particulares de flauta e saxofone. Boa parte da renda da família vem da música.

“A orquestra foi uma grande oportunidade para mim”, observa. “São poucas fagotistas no Brasil, e a orquestra tem esse papel de divulgar um pouco da música erudita para pessoas que não têm esse acesso”, reconhece a mãe da Yasmin Aparecida – a filha de 6 anos do casal que também já está sendo introduzida a flauta e teclado. “Mas ela diz que gosta mesmo é de guitarra e bateria”, sorri. 

 

Atualização 

Depois do anúncio da suspensão, a Prefeitura Municipal de Teresina voltou atrás. No dia 18 de maio, informou que iria manter os contratos com as associações, a fim de não prejudicar os projetos em andamento. Os contratos em curso devem ser mantidos até o mês de dezembro – período em que o novo modelo de gestão deve ser debatido entre órgãos envolvidos, a classe artística e a população. Depois de finalizado, o novo projeto será encaminhado para votação na Câmara Municipal de Teresina. 

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