Maria Francisca, Maria Fernanda e Maria de Castro são três ex-primeiras-damas falidas e cassadas na década de 80. Após a morte de seus maridos, começam a viver um declínio moral e econômico: se veem obrigadas a devolver tudo aos cofres públicos e, ao mesmo tempo, têm que bolar um jeito de voltar ao status que antes ocupavam. O enredo é de “Abrigo São Loucas ou Três Personagens a Procura de um Aqüé”, peça escrita por Arimatan Martins, do Grupo Harém de Teatro. “Trata-se de uma comédia do absurdo, uma crítica corrosiva a situação política do Piauí e a farra do dinheiro público”, diz o autor e diretor.
“Ah, como era bom pagar nossas viagens à Europa desviando verba da educação, da saúde, da cultura… se bem que a cultura nunca teve”, diz uma das personagens a certa altura da peça, arrancando risos da plateia que voltou a frequentar o Teatro 4 de Setembro em Teresina, há três anos fechado para reformas estruturais. A capital foi a terceira cidade a receber o espetáculo de um dos seus maiores grupos de teatro. A peça estreou em janeiro, em Floriano. De lá, o grupo seguiu para apresentações em Parnaíba e Oeiras.
Com o Teatro 4 de Setembro de portas fechadas, Teresina saiu quase completamente da rota de espetáculos.“As outras opções que temos são auditórios e não têm caixa cênica apropriada. O (teatro) João Paulo II, no Dirceu é pequeno, e o Teatro do Boi fica na zona Norte e, infelizmente, as pessoas não frequentam”, aponta Francisco Pellé um dos atores da peça.
“Abrigo São Loucas”, que faz parte da trilogia lançada em 2012 com a comédia “Macacos me mordam”, foi produzida pelo grupo com 350 reais. “Nosso figurino é bem simples, o cenário são 3 cadeiras e os adereços são um caixão e um saco de moedas. Esse é um espetáculo de crise do Harém”, conta Pellé.
Junto com o longo silêncio do principal teatro de Teresina, outras artes também foram abaladas. Produtores, músicos, escritores, atores, artistas plásticos, poetas, intelectuais, e todos que já viram a capital fervilhar culturalmente compartilham de uma mesma sensação: a de abandono.
Teresina já foi a cidade do balé. Ou melhor, do Balé da Cidade, companhia com mais de 800 dançarinos, que lhe rendeu o primeiro lugar no maior festival de dança do mundo, o Festival de Joinville, por dois anos seguidos (1999 e 2000). Teresina teve ainda o seu espaço na música, na era dos grandes festivais que projetaram o grupo Ensaio Vocal nacionalmente. Foi também palco mundial da lusofonia, com convidados de quase dez países falantes da Língua Portuguesa no Festival de Teatro Lusófono. E foi, até o ano passado, referência em humor e arte, com o segundo maior Salão de Humor do país. No ano em que chega a sua 30ª edição, o Salão Internacional de Humor acontecerá na cidade de Parnaíba.
“Nos últimos quatro anos nós fizemos o Salão com muito sacrifício”, diz Albert Piauí, idealizador do Salão de Humor. “Ele ainda existe porque eu não deixo morrer. Uma coisa que tem 30 anos!” Atraso no repasse de verbas, espaço, segurança, apoio dos órgãos públicos, e investimento no turismo cultural da cidade são apenas alguns dos problemas que fizeram a organização do evento rever a estrutura do Salão. “Nós fomos para a praça sem nenhum recurso. A prefeitura, historicamente, sempre ignorou o Salão de Humor. Ela não o vê como um patrimônio, uma riqueza”, diz Albert que agora dialoga com Parnaíba, onde o evento deve acontecer em setembro. “Os organizadores serão estudantes de turismo da universidade de Parnaíba. Eles estão ávidos para mostrar que o Piauí pode. Estamos indo para lá para salvar o Salão de Humor”.
A cultura que morre a míngua, faz com que a cidade toda se empobreça. Teresina é hoje uma capital do exílio – Arimatan Martins, diretor de teatro
O Festluso – Festival de Teatro Lusófono – que acontece em Teresina desde 2008, também pode ganhar casa nova este ano. A última edição do Festluso em Teresina foi no ano de 2011, já sem o apoio do Governo do Estado que, na edição anterior, retirou o recurso financeiro, fazendo com que a organização se visse obrigada a cortar metade da programação.“O Festluso, na sua constituição é um festival itinerante, pode ser realizado em qualquer espaço geográfico da lusofonia”, diz Pellé, idealizador do evento.“Nosso desejo ainda é realizar o Festival em Teresina, em nossa casa. Mas não recebendo os devidos apoios, aí sim teremos que migrar para outros espaços e São Luís é um dos destinos prováveis”.
Uma capital que chegou ao século XXI sem um museu de arte, sem centros culturais, sem galerias adequadas para exposições, sem casas de show com acústica apropriada para grandes apresentações, sem formação artística para áreas mais específicas, sem diálogo de artistas com gestores públicos. Estas são as queixas de uma classe artística que, mesmo diante das dificuldades, não priva-se de criar. “Nossa ambição artística e intelectual nos basta, no sentido de produzir”, diz Arimatan. “A gente esbarra nos limites dos outros, não nossos. Não somos artistas limitados”. A criatividade enfrentando as adversidades, como na peça do Grupo Harém.
Mas nem toda esperança consegue afastar a sensação de vazio que se instaurou sob a cultura. “Nós estamos vivendo abaixo da linha da miséria”, diz Albert Piauí. “Chegamos a um ponto em que o marasmo é total. Todo mundo está calado, satisfeito e nada acontece na cultura piauiense. O poder público e os empresários se omitem em relação à cultura. E o artista não tem discurso para uma reação”, critica.“Não é nem um retrocesso, é um extermínio”, distingue Arimatan. “A cultura que morre a míngua, faz com que a cidade toda se empobreça. Teresina é hoje uma capital do exílio, vivendo totalmente isolada”.
Assim, não vale
Responda rápido: onde está a referência cultural de Teresina hoje? Dança? Artes Plásticas? Música? Literatura, talvez? “Só em 2012, foram lançados uns dez livros que são dignos de ser lidos”, diz Cineas Santos. “Mas o que falta em Teresina são leitores. O piauiense, infelizmente, não consome a literatura produzida aqui”.
Para o professor que há 10 anos transforma Teresina na capital do livro junto à equipe do Salão do Livro do Piauí – SALIPI, cultura nunca foi prioridade em nosso país. “No Piauí, não é diferente. Não existe política cultural. Há eventos, o que é bem diferente. A despeito disso, há muita gente produzindo CDS, livros, arte de modo geral”, comenta. “Vejo pessoas que se queixam desse ‘abandono’ e que nunca compraram um livro de um autor piauiense. Assim, não vale”.
“Os artistas em Teresina precisam conhecer e frequentar mais os produtos e eventos produzidos na cidade. Na música, isso até rola bem, mas em outras áreas não”, diz o poeta e música Thiago E, da banda Validuaté. “São revistas e livros lançados que quase ninguém lê, artes à disposição pra muitos desinteressados ou desinformados”.
Para Albert Piauí, que há anos atua também como produtor cultural em Teresina, falta um planejamento de politicas públicas que transforme arte e cultura em um setor econômico capaz de gerar dinheiro para o Piauí. “Como o bumba meu boi gera para o Maranhão, como o frevo e o maracatu geram para o Pernambuco, como o São João para a Paraíba. Todos os estados estão faturando com a sua cultura, menos nós que a desprezamos”.
Thiago E defende que a produção cultural em Teresina precisa de mais visibilidade e injeção de autoestima. “Temos que conhecer o que está acontecendo em Teresina e passar para a frente. Nossa produção é boa. Precisamos falar bem de nós mesmos. Bahia e Pernambuco já fazem isso há muito tempo”, sugere. “Se não fizermos, ninguém fará”.
“É preciso fazer, produzir, mesmo que seja por conta própria – mas não podemos deixar de cobrar dos órgãos públicos que realmente façam seu trabalho”, completa. “O dinheiro que tem lá é nosso, é público. Não cobrar é ser conivente com os crimes contra a cultura”.
Teresina fora do eixo
O bailarino Sidh Ribeiro dirigiu o Balé da Cidade entre os anos 1993 e 2004 – pouco mais de uma década em que a dança foi uma das representações culturais mais fortes do Piauí. “Nesse tempo a dança foi a arte que mais evoluiu. Hoje o balé caiu em produção, caiu no anonimato. A dança em aceitação hoje está muito bem, mas em produção perdeu muito”, critica. “As companhias subsidiadas não estão tendo grandes produções, não tem mais coordenação, supervisão e visão estratégica para o ensino de dança municipal como antigamente. Faltam projetos direcionados, estratégias, gestores interessados na arte”.
As artes plásticas também não comemoram: apesar da formação de jovens e articulados coletivos na capital, grandes artistas caem dia após dia no limbo do esquecimento por falta de condições para viabilizar e mostrar seus trabalhos. É o que diz o artista plástico Hostyano Machado. “Estamos perdendo artistas para outras profissões”, lamenta. “O poder público deveria pelo menos construir uma pinacoteca para reunir um acervo permanente de obras dos artistas locais”, sugere. Sem locais adequados para exposição de arte na capital, a próxima exposição que o artista planeja fazer deve ser itinerante e a céu aberto. “A única galeria que temos é a do Clube dos Diários e dez obras com mais de um metro já lotam o espaço. Aonde vou botar quadros deste tamanho?”, questiona, apontando para uma de suas obras. “A arte é tão menosprezada que nem mesmo as lojas têm para vender alguns produtos que preciso como livros de arte e certos tipos de tintas. A tinta é a minha cesta básica!” diz o pintor que importa o material nas viagens que faz. “Sempre foi assim e não vejo perspectiva de mudança: o circuito de arte chega até a Bahia, e parece que o Brasil acaba aí. As curadorias nunca passaram pelo Piauí”.
O Piauí era pra ser vanguarda, mas a gente tá disputando migalhas. – Daniel Hulk, músico
No cenário musical, as bandas que figuram na noite Teresinense se deparam a cada dia com menos espaço e oportunidade – sobretudo para o autoral. “Aqui falta um grande centro cultural funcionando ativamente. O complexo da Pedro II é inexistente. Os shows na Praça Ocílio Lago acabaram, o Centro de Artesanato é um estacionamento. Um espaço enorme e super burocrático para se conseguir fazer um show. Você percebe uma má vontade do técnico ao superior, sabe?”, diz Daniel Hulk, músico da banda Roque Moreira, 15 anos de carreira em Teresina. “O Piauí era pra ser vanguarda, mas a gente tá disputando migalhas”.
Um dos últimos projetos de divulgação da música piauiense a funcionar em Teresina, é o Boca da Noite, promovido pela Fundação Cultural do Piauí (Fundac), que está há quase um ano parado, com promessas de retornar no segundo semestre de 2013. “Eu não posso fazer festa sem limpar a minha cozinha. Primeiro eu tenho que arrumar a casa”, justifica Bid Lima, presidente da Fundação. “Entrei na Fundac e peguei sérios problemas como atraso no pagamento dos cachês do Boca da Noite. Entramos 2013 sem um débito pendente. Hoje não ha sequer um artista que possa dizer que a Fundac está devendo”.
Bid, atriz por formação, assumiu a Fundac em 2011e de lá para cá coleciona cobranças de ações do único órgão estadual de cultura no Piauí. “Eu fui criticada quando entrei porque não fazia grandes ações culturais. Não posso estar fazendo um evento atrás do outro. Vira uma máquina de fazer eventos. Durante nossa gestão o Piauí já aderiu ao Sistema Nacional de Cultura. São frutos que vamos colher mais adiante, que é mais importante para o estado do que promover eventos”.
A presidente diz não vê “abandono”. “Eu não compartilho dessa sensação. Sou de uma formação artística que não espera, vai atrás”, afirma. “A Fundac só apoia a quem procura, é claro, dentro de suas limitações”, completa. “O Salão de Humor mesmo, o governo apoia todo ano com 150 mil reais. Talvez o salão tenha atingido uma proporção que o governo não possa mais bancar”, justifica a presidente que chama o deslocamento do evento para Parnaíba de descentralização. “Acho ótimo que esses eventos se desloquem para o interior. Que interessante quem tá la em Parnaíba receber um Salão de Humor, a gente já viu muitos. O Piauí não perde com a descentralização”.
Já os eventos de cunho municipal, promovidos pela Fundação Cultural Monsenhor Chaves, somam mais de 20 ao ano – só que nem sempre é possível cumprir todo esse calendário. “O Salão de Artes Plásticas do ano passado foi um fiasco, com 10 pessoas assistindo a abertura. O de fotografia foi cancelado”, critica Albert. No campo da música, a FCMC realiza anualmente o Festival de Música Chapada do Corisco, o “Chapadão”, um concurso de músicas autorais cujos problemas de visibilidade destacamos na reportagem “Música para ganhar”, da Revestrés#03. “O município e o estado não usam da televisão para fazer a cultura circular. A gente sabe que a televisão ainda é o veículo que chega mais longe e de forma mais abrangente aqui na cidade. Por que não exibir o Chapadão pela TV?”, sugere Thiago E.
Lázaro do Piauí, à frente da presidência da Fundação Municipal de Cultura Monsenhor Chaves, em Teresina, diz que a organização este ano deve avaliar as ações para descobrir os principais problemas e falhas e revitalizar os eventos que tiverem condições de continuarem existindo. “A Fundação tem uma quantidade absurda de eventos sem visibilidade.Vamos tirar aqueles que realmente caducaram, e vamos inovar. A juventude está ai cheia de ideias”, avalia o secretário.
“A instituição da cultura em qualquer lugar é histórica e social, mas a habilitação é política”, explica Lázaro. “Não me espanta que a classe artística esteja desestimulada, não estava havendo diálogo. Recentemente me reuni com o pessoal do teatro que estava há 12 anos sem pisar na Fundação”, revela. “Há reclamações por todos os lados e o primeiro passo é descobrir o que existe e porque. Posso até não resolver nada, mas uma meta minha é atender a essas reivindicações de abandono”. O poder público diz seguir pensando em soluções, enquanto a classe artística cobra medidas urgentes. Se a cultura é o espelho da sociedade, a imagem refletida não tem agradado.
A volta do espetáculo
Após três anos funcionando apenas parcialmente, o Teatro 4 de Setembro, localizado na Praça Pedro II, centro de Teresina, voltou a funcionar no mês de março (2013). O 4 de Setembro foi interditado no final do ano de 2009, após o Ministério Público-PI realizar uma vistoria com o Corpo de Bombeiros, constatando que a casa não dispunha de saídas de emergência, sinalização e iluminação adequadas, além de itens básicos de segurança, como extintores de incêndio. O Teatro 4 de Setembro foi inaugurado em 21 de abril de 1894. No ano de 1994, o prédio foi tombado pelo Governo do Estado e é uma das casas de cultura sob responsabilidade da Fundac.
Com a reforma, a expectativa é que o espaço passe a atender às normas de acessibilidade e segurança estipuladas pelos órgãos de vistoria, além de uma estrutura de combate a incêndios como o sistema de hidrantes, sensor de fumaça, poltronas e carpete anti incêndio. O teatro ganha ainda um novo camarim e uma sala de imprensa. Além disso, o espaço volta a contar com 555 poltronas disponíveis, após o período em que os pisos superiores estiveram interditados e somente 330 lugares podiam ser ocupados. Um novo sistema de refrigeração está sendo instalado com aparelhos de ar condicionado splits. “Nosso sistema era totalmente antigo, não tinha mais nem peça para vender e toda vez que algo quebrava tinha que ser feito uma gambiarra”, conta Antoniel Ribeiro, diretor da casa de espetáculos.
“O 4 de setembro é o teatro mais bem equipado do nosso estado”, diz Antoniel. “Os três anos funcionando parcialmente deixou um vazio muito grande na cultura”, avalia. “Muitos espetáculos nacionais deixaram de passar por aqui porque não compensava se apresentar para 300 pessoas. Mesmo em sua totalidade, o teatro ainda é muito pequeno”.
A reforma completa está avaliada em cerca de 1 milhão e 200 mil reais. A previsão da é que até maio deste ano seja iniciada a última etapa da reforma, com a reestruturação técnica de iluminação, sonorização e vestimenta cênica do teatro, que aguarda agora a licitação das empresas que devem prestar esses serviços. Uma previsão otimista, diga-se, uma vez que os geralmente demorados processos de licitação ainda não foram iniciados.
Para a direção do teatro, a reabertura da casa representa o retorno de Teresina ao circuito nacional de apresentações. “Agora que nós começamos a receber pautas novamente. Muitos produtores estavam pulando Teresina, iam para Fortaleza e Maranhão, sem passar por aqui, porque sabiam das condições do teatro”.
Fechado, o teatro deixou um vazio não só nas programações teatrais da cidade, mas também nas apresentações musicais. Com a reabertura do 4 de Setembro, dois grandes projetos de circulação nacional da música brasileira podem voltar a passar por Teresina: O Projeto Seis e Meia e o Pixinguinha.
ENQUETE
Revestrés perguntou nas redes sociais o que falta para melhorar a arte e a cultura em Teresina. Nossos leitores soltaram o verbo. Destacamos aqui os 10 pontos mais citados:
1 – Interesse da iniciativa privada e do poder público
2 – Um grande centro cultural
3 – Museu ou galeria para exposição de arte
4 – Divulgação da cultura local na mídia (internet, televisão, revistas)
5 – Cursos para formação artística
6 – Formação de plateia para as arte e cultura – que comece na educação escolar
7- Discurso especializado sobre artes visuais
8- Espaço para crítica de arte nos jornais
9 – Profissionais capacitados para ocupar os espaços de arte e cultura
10 – Livrarias com mais opções de títulos disponíveis
(Reportagem publicada na Revestrés#07 – Março/Abril 2013)