“Se a cidade fosse escrita, os prédios e os traços arquitetônicos seriam letras, as palavras – que, juntas, contam sua história”. Em Teresina, essa caligrafia nunca esteve tão torta. Pegando emprestada a metáfora da cidade como escrita, da arquiteta e urbanista Raquel Rolnik, iniciava-se a reportagem de estreia da primeira edição de Revestrés. Era fevereiro de 2012 e chegávamos às bancas com uma questão: “Onde estão as referências de Teresina?”. O título iniciava aquilo que, mais tarde, viraria nosso estilo curioso e provocativo de fazer perguntas.  

A pauta surgiu de um sentimento comum de toda a equipe: naquele início de ano, especulava-se que mais de 200 casarões tinham sido destruídos no centro de Teresina para dar lugar a prédios comerciais ou estacionamento de veículos. Nossa reportagem ouviu arquitetos, urbanistas e historiadores, a fim de entender onde a preservação do patrimônio histórico de uma cidade se encontrava com a noção do jornalismo cultural que estávamos nos propondo a fazer.  

A discussão passava pela cobrança do interesse público e da importância de conhecer para preservar – “O poder público entende que crescer é derrubar, é fazer o modernoso, destruindo o patrimônio histórico”, criticava a arquiteta Kaki Afonso, entrevistada. “Muitas pessoas não conhecem a história da cidade nem desenvolvem interesse por ela, portanto passam e não veem nada”, dizia o historiador Alcides Nascimento, também ouvido na reportagem. 

14 edições e muitas páginas depois, o tema patrimônio histórico volta às páginas de Revestrés, agora com uma “testemunha ocular” com quatro paredes – e 3.500 metros quadrados de extensão. A página 56 da Revestrés #15 entrava na intimidade de cobogós discretos no meio do cenário urbano da principal avenida da capital piauiense. Tudo ao redor era– e permanece – comercial: lojas, serviços, clínicas e estacionamentos. Exceto por essa casa. A última casa da Frei Serafim.  

Construída em 1930, a casa marcava o processo de urbanização da avenida – que até o início do último século não passava de uma simples trilha de terra criada pelo missionário italiano Frei Serafim para que os devotos de São Benedito carregassem areia, pedra, água e tijolos, usados na construção da igreja em um dos pontos mais altos da cidade. Fato curioso é que a casa – pertencente ao casal Elvina Ferraz e Augusto de Sousa –, que foi a última a ser construída na rua, é também a que permaneceu por mais tempo preservada. A última casa da Frei é resistência.  

Parecia que ocupar espaços e preservar histórias estava mesmo no gene da Revestrés. Em 2015 a pauta do patrimônio volta, desta vez não em nossas páginas, mas em nosso canal no Youtube: em sua primeira aventura audiovisual, a equipe Reves passa um dia na ocupação de estudantes em uma casa ameaçada de demolição, na rua Félix Pacheco, centro da cidade. No eixo conhecido como “polo saúde”, pela ampla concentração de clínicas e laboratórios médicos, um exemplar de arquitetura eclética conservava um pouco da história da cidade. O que era pra ser uma vigília de meia dúzia de estudantes tornou-se um movimento transformador de jovens discutindo o direito e o pertencimento à cidade. O grupo ocupou o imóvel por 13 dias e evitou que um pedaço do passado virasse, novamente, pó.  

Seis anos e quase mil páginas depois, voltamos a essas histórias em busca de observar mudanças, permanências, respostas, com novas perguntas e mais reflexões. Uma revista é capaz de mudar o curso da história ou de refletir e impactar nas ações das pessoas que vivem uma cidade? A pergunta é retórica, mas algumas opiniões novas podem trazer frescor ao tema que, apesar do passar dos anos, nunca envelhece. Discutir patrimônio é, também, lembrar um pouco de onde viemos e para onde vamos. E, assim como a última casa da Frei, é o nosso jeito de resistir. 

Educar para preservar 

Comumente, a discussão sobre preservação de patrimônio histórico na cidade é reduzida a pedrinhas de paralelepípedos nas ruas ou intervenção em fachadas de casarões. Ambos os casos acabam anulando a identificação de problemas que podem estar no desconhecimento da população e na falta de vigilância e fiscalização por parte do poder público. 

“A gente aprende o que é patrimônio, a gente é ensinado”, diz Claudiana Cruz, mestra em Desenvolvimento Urbano e uma das coordenadoras da pós-graduação Patrimônio e Cidade, um curso de especialização lato sensu que forma agora, em 2021, sua segunda turma. “Eu acho que o teresinense aprendeu que patrimônio é aquilo que é muito antigo ou o que pertence a outro lugar”, aponta a especialista. “O futuro, o progresso, é que é o bom. Mas, por outro lado, a perda e o vazio, incomodam”.  

O teresinense não considera a arquitetura eclética como patrimônio, ninguém chama ‘centro histórico de Teresina’. Acham que o passado ainda é recente e não precisa ser preservado. – Claudiana Cruz, arquiteta. 

Claudiana sempre teve atuação profissional voltada para o patrimônio cultural – ao lado de Elane Coutinho e instigadas pelo incômodo da superficialidade das discussões sobre o assunto na cidade, elas elaboraram a grade de um curso que permitisse compreender a complexidade do que é tratar de patrimônio e cidade. “Não é ensinar sobre como restaurar, como intervir, mas ser um laboratório de discussão em que cada aluno possa aplicar análise crítica, produzir ciência e atuar como cidadão melhor na cidade”, explica em vídeo-chamada.  

O processo intenso de descaracterização e derrubada de prédios históricos na cidade, somado à dificuldade de interlocução, chamaram atenção do corpo docente, que provoca estudantes – de variadas áreas e interessados no debate – a verem potencialidades onde muita gente só enxerga destruição. A própria existência do curso, que é recente, aponta para um caminho de mudança no interesse da cidade por essa discussão.  

Claudiana observa que, apesar do processo devastador de perdas e descaracterização intensas – principalmente nos casarões da Frei Serafim, denunciados na primeira reportagem Revestrés –, houve mudança positiva no que diz respeito à mobilização social. “Acho que hoje a gente tem uma atenção maior”, analisa. “Eu cito o Viva Madalena, a mobilização da Boa Esperança e a participação dos ciclistas na defesa da Av. Frei Serafim, além dos protestos em defesa do Meduna, como alguns bons exemplos”. 

Em fevereiro deste ano, um movimento iniciado nas redes sociais mobilizou diversos grupos da sociedade para impedir a demolição do Sanatório Meduna – fundado em 1954 por um médico pioneiro na psiquiatria piauiense. O prédio era de responsabilidade da prefeitura e foi cedido à construtora responsável pelo shopping Rio Poty, na condição de que o antigo sanatório virasse um centro cultural e um espaço de preservação de história e memória, fato que nunca aconteceu.  

No início de novembro, o governo do estado tombou o imóvel. A proposta foi feita pela Coordenação de Registro e Conservação da secretaria estadual de Cultura – Secult – e aprovada por unanimidade pelo Conselho. O decreto foi publicado no Diário Oficial e vale também para o entorno do prédio – uma área de proteção de 8.598,51m². 

A participação da sociedade civil e o envolvimento de órgãos como o Conselho de Arquitetura e Urbanismo (CAU) e do Conselho Municipal de Política Cultural de Teresina foram fundamentais para o diálogo com os responsáveis pelas intervenções no local, como cita Claudiana. “É um processo”, explica. “O teresinense não considera a arquitetura eclética como patrimônio, ninguém chama ‘o centro histórico de Teresina’, por exemplo”, comenta a arquiteta e urbanista do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional – o Iphan, no Piauí. “Acham que o passado ainda é recente e em construção e, por isso, não precisa ser preservado. É sempre a perspectiva do futuro, do porvir”.  

Outros pontos de atrito para a preservação desse patrimônio são a legislação e a inércia de órgãos fiscalizadores. Em seis anos, este aspecto sofreu pouca ou quase nenhuma mudança. “Nossa legislação induz a isso. Ela é muito permissiva e a noção é muito perversa porque grande parte dos imóveis do centro da cidade é privado”, observa. “É muito comum a confusão entre patrimônio público e cultural”. 

O Plano Diretor de Teresina, aprovado em 2019, trouxe apenas modificações na denominação de zonas e alterações confusas no texto. A Lei Municipal Nº 3.563 de outubro de 2006 – que protege apenas as fachadas dos prédios históricos – também segue sem grandes atualizações. Se por um lado a discussão avançou e fez surgir mobilizações sociais importantes, no campo institucional houve retrocesso. “Não houve avanço, não houve concurso, acho que a única mudança foi a criação do Conselho de Cultura da cidade, mas a própria instituição parece não entender o papel do Conselho”, aponta. “Não houve nenhum fortalecimento”.  

De lá para cá, algumas audiências tiveram participação popular em discussões, por exemplo, sobre a construção do corredor de ônibus na Frei Serafim – obra de muito impacto nas características da avenida. “Foi participativo, mas as considerações da sociedade não foram levadas em conta”, critica a arquiteta. Houve também uma tentativa da Prefeitura Municipal de realizar um inventário do patrimônio histórico de Teresina – plano frustrado que não saiu do papel.  

Madalena vive 

Era o último dia de junho de 2015 quando um estudante de arquitetura viu na timeline um post-denúncia: mais uma casa no centro da cidade começava a ser destruída, na calada da noite. Ele anotou o endereço e chamou alguns amigos para irem até lá na manhã seguinte. “A intenção era só investigar o que estava rolando, quem eram os responsáveis”, relembra. “Não encontramos ninguém e resolvemos ficar lá algum tempinho, aguardando”. Esse tempo virou 13 dias de ocupação. 

A prefeitura aceitou o papel de cúmplice da destruição da nossa memória. – Luan Rusvell, arquiteto, participante da ocupação Viva Madalena.

A mobilização começou nas redes sociais e foi parar naquele número na rua Félix Pacheco. Estudantes de arquitetura, urbanismo, jornalismo e outras áreas se juntaram em defesa da casa de dona Madalena Maria Poty Dummond – em referência à antiga dona, o movimento recebeu o nome de Viva Madalena e foi marcante para quem, mesmo de longe, acompanhou.  

“Havia a revolta de ver que a gente estava perdendo parte da história da cidade, e esse era um sentimento compartilhado por todo mundo”, diz Luan Rusvell, um dos primeiros a chegar na ocupação. Na época, ele lembra como a população estava em alerta sobre as frequentes demolições que aconteciam no centro histórico de Teresina. “A gente tinha uma certa ingenuidade de não compreender o que estava acontecendo, porque os órgãos patrimoniais não faziam nada?!”, relata. “É um esquema que existe na cidade de destruição do patrimônio histórico, com muitos interesses e muito dinheiro envolvido”.  

Os estudantes revezaram-se em vigília pela casa e pediram explicações aos órgãos competentes sobre a autorização para derrubada e descaracterização do imóvel. “Era uma ação que visava à apropriação da cidade, fazer valer o direito à cidade”, explica Luan. “Fizemos algumas oficinas durante a ocupação, visitas no centro, foi um momento de imersão total na discussão sobre o patrimônio histórico”.  

A casa de dona Madalena perdeu algumas de suas características arquitetônicas: tiraram as esquadrias e o telhado, numa tentativa de desestabilizar a estrutura de sustentação. Mas ela permaneceu de pé – embora depois seu quintal desse lugar a um estacionamento – e a ação dos ativistas chamou atenção da sociedade e cobrou respostas e mobilizações das instituições – audiências públicas aconteceram envolvendo o Conselho de Arquitetura e Urbanismo do Piauí (CAU), o Conselho Regional de Engenharia (Crea), Iphan e outros órgãos. “Isso contribuiu para a formação de consciência crítica, acho que houve uma ampliação do olhar sobre patrimônio que foi essencial”, acredita Luan. 

Emerson Mourão também participou da ocupação – ele lembra que na época uma mulher que se identificou como sobrinha da proprietária chegou a visitá-los e oferecer aos estudantes 10% da receita sobre a venda do imóvel. “Eles estavam muito interessados em acelerar a negociação”, conta hoje, acreditando que o espaço – uma das últimas casas a preservar um quintal no centro da cidade – seria transformada em um estacionamento de veículos. “E nós queríamos propor mudanças na legislação para que a fiscalização fosse mais rigorosa”, explica. “Esse foi o ponto que marcou a nossa saída da casa”.  

Em agosto deste ano, nova denúncia na rede social do produtor cultural Gilson Caland chamou atenção para um exemplar semelhante à casa de dona Madalena, a poucas quadras, na mesma rua Félix Pacheco. Do dia para a noite, o imóvel – onde havia funcionado uma pousada e um restaurante popular – foi destruído sem deixar nenhum rastro de memória. “Seis anos depois e a gente continua perdendo muito”, observa Luan. 

Apesar das transformações pessoais que a mobilização trouxe aos jovens – Luan tornou-se arquiteto e atua hoje como assessor técnico popular para movimentos sociais – pouca coisa avançou no que diz respeito a políticas patrimoniais. “Sabemos quem são as pessoas que patrocinam essas ações e muito pouco mudou”, analisa. “A prefeitura aceitou o papel de cúmplice da destruição da nossa memória”.  

Como ponto positivo, ele observa que os movimentos que vieram depois – por exemplo, a mobilização popular em torno da construção do programa Lagoas do Norte, na zona considerada berço de Teresina, do qual ele também faz parte – pegaram carona na ideia de que pessoas organizadas e conscientes podem conseguir a efetivação do direito à cidade. “Porque o direito à cidade é isso: as pessoas fazerem parte das decisões, reivindicarem o seu pertencimento a um território”. Para ele, a casa de Madalena seguir de pé hoje é mais do que um prédio a menos derrubado na cidade. “É o exemplo de como as pessoas conseguiram instituir o seu poder. Uma consciência formada naquele movimento e que carrego em mim agora para o resto da vida”. 

A última casa resiste. Até quando?

Em junho de 2014, a Revestrés conseguiu atravessar um portal que separa passado e presente: escondida por carros e trânsito, encoberta por um frondoso jardim e no meio da avenida principal de Teresina, se escondem quase uma centena de anos e muitas histórias. Construída nos anos 1930, a última casa residencial levantada na Frei Serafim foi também a que resistiu mais tempo naquele CEP. Somente hoje, quase cem anos depois, o imóvel foi disponibilizado para venda. 

Originalmente a casa construída pelo casal Elvina Ferraz Martins e Augusto de Sousa Martins era simples, mas ocupava um terreno enorme: 40×80 metros equivalia à metade de uma quadra da época. Na década em que foi construída, a região era deserta – não havia o Hospital Getúlio Vargas e era praticamente o fim das construções e das vilas. Era a última casa da rua. 

Anos mais tarde, a residência do casal passou por uma reforma e recebeu telhas, madeira serrada, tijolos e piso de ladrilho. A reforma foi conduzida pelo próprio filho do casal, Cícero Ferraz, que formou-se em engenharia no Rio de Janeiro. Chama atenção o frondoso pomar que até hoje cerca a casa, com árvores plantadas pela antiga dona: laranja da terra, manga, acerola, pitanga, jambo, jabuticaba, goiaba, sapoti, sapota e bacupari – de tudo um pouco se encontra ali. Dona Elvina gostava de colher frutas e flores do próprio jardim para fazer doces e licor.  

Avaliada em R$ 13 milhões e 700 mil, a última casa da Frei Serafim está à venda.

Na época em que abordamos o assunto, Revestrés conversou por telefone com um dos herdeiros do imóvel, o engenheiro civil Augusto. Àquela altura ele negava qualquer especulação sobre venda e reforçava o valor afetivo que a casa tinha para ele, como lugar de lembrança da avó, por quem praticamente foi criado. Augusto, que mora no Rio de Janeiro, fazia questão de hospedar-se na casa quando vinha a Teresina.  

Em abril deste ano, fomos surpreendidos pelo anúncio de venda do imóvel – avaliado em R$ 13.700.000,00, a casa está sendo anunciada por corretores – um deles, Murilo Lago, usou o Instagram para divulgar o imóvel, citando um post do conteúdo produzido pela Revestrés. “A última casa da rua agora está à venda”, disse na legenda. “Boa sorte ao novo e feliz proprietário”. 

Conversamos com Murilo por telefone – ele diz que a casa está à venda há cerca de quatro anos e passou por várias negociações que não evoluíram. “São 3.500 metros na principal avenida da cidade, com três opções de frentes – na rua do jornal O Dia, na Frei Serafim e nos fundos”, diz, como quem oferece um produto. Ele atribui a dificuldade da venda ao fato de muitos serviços no centro da cidade terem migrado hoje para a zona Leste, deixando a região abandonada. “O comprador da casa certamente vai ser alguém do segmento de clínica ou hospital”, comenta.  

Murilo é corretor há uma década e chegou à história contada por Revestrés porque é fã da revista. “Acompanho desde o início, sigo no Instagram e a matéria me chamou atenção porque sempre gostei daquela casa”, comenta. “Ficaria muito feliz se fosse eu o corretor que fizesse essa venda, não só pelo fator financeiro”, argumenta. “Mas por saber que, de alguma forma, eu fiz parte dessa história”. 

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Veja o vídeo de Revestrés sobre a ocupação Viva Madalena:

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Revestrés#50. 

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