Reportagem

Arte na corda bamba

Arte na corda bamba

Com mais de um ano de pandemia e muitos desafios, artistas, produtores, gestores e patrocinadores refletem sobre produção, conexões e novas formas de criação.

No último ano, trabalhos e interações aconteceram, na maioria das vezes, por meio de reuniões online, sob mediação de telas e seguindo recomendações sanitárias. Em reportagem de setembro de 2020, Revestrés discutiu o boom das lives no meio artístico e como esse recurso contribuiu com as relações entre artistas, público e trabalhadores do setor.  

De lá para cá, o que mudou? Como foram continuados os trabalhos que pedem a presença de público, a exemplo de teatro, cinema, shows? Ao produzir, tentar compreender o mundo e se relacionar com o público em contexto de pandemia, como os artistas têm se equilibrado nessa corda bamba? 

Ilustração: João Brentano

A diretora de teatro e atriz Mika Lins considera que produzir arte tem exigido disposição para novas perspectivas. “No começo da pandemia, o sentimento que perpassou pelos produtores de teatro foi: como continuar os trabalhos? O ‘baque’ na economia artística foi muito grande. Tem iluminação, camarim, cenografia, atores, autores. Quebrou uma parte desse setor. As pessoas ficaram mesmo sem trabalho, passando dificuldades” – diz. 

Com o fechamento dos teatros paulistas, a saída que Mika Lins encontrou foi interagir via Instagram, criando #Shakespearenaquarentena, um exercício de leitura de textos que também experimentava a comunicação com as pessoas. Ela passou a publicar vídeos em seu perfil pessoal, com atuação dela própria e de outros atores e jornalistas amigos. 

O coreógrafo Marcelo Evelin considerou importante buscar conexões fora das redes sociais. “Essa parada brusca me proporcionou olhar para o mundo e os seres vivos de outra forma, reconhecendo outros saberes e viabilizando outras lógicas de como estar no mundo, como indivíduo e como parte de uma coisa muito maior”. Ele conta que evitou as lives e a absorção pelo volume exorbitante de informações via internet, mas participou de trabalhos online a convite de amigos e em cursos remotos. Pelas redes sociais é possível ver o coreógrafo piauiense, que vive entre Europa e Brasil, ora participando de trabalhos, ora buscando experiências de contato com a natureza. 

 Quem também experimentou outros saberes e artes foi o diretor de cinema Halder Gomes. O cearense, que se tornou sucesso de público com filmes como Cine Holliúdy, ao ficar confinado em casa usou o tempo para a pintura e produziu mais de 100 telas. Elas também viraram cinema, tornando-se material para o curta bem humorado Cóu istories, produzido para o programa Convida, do Instituto Moreira Salles, e exibido no Youtube. “Esse curta foi uma espécie de recorte do momento que estamos vivendo”, disse Halder. 

Além das muitas telas pintadas, Halder também se dedicou à comédia Bem-vinda a Quixeramobim, filme gravado no final de 2020 em Juatama, distrito de Quixadá, interior do Ceará. Com a equipe isolada em um hotel, o cineasta se viu na missão de mudar todo o roteiro para seguir os protocolos sanitários e gravar o filme. Se em entrevistas anteriores o diretor já afirmava que “fazer filme é difícil”, para Revestrés ele enfatizou que, na pandemia, isso se tornou ainda mais complexo. Halder considera que nem todo projeto pode ser gravado nessas condições, sob risco de colocar a perder um ótimo roteiro caso a adaptação não seja eficiente. Durante a produção desta reportagem, ele trabalhava na 2ª temporada da série Cine Holliúdy, que passou a fazer parte das produções da Globo. 

Mesmo em meio ao caos, a pandemia tem sido também uma forma de aprender e compartilhar. Pensando assim, o documentarista piauiense Otávio Almeida finalizou o curso de Direção de Documentários na EICTV (Escola Internacional de Cinema e Televisão de Cuba) e faz planos de, em breve, filmar viajando pelo Piauí, apesar dos ataques à cultura e à produção audiovisual nos últimos anos – “um projeto de governo ao qual é preciso resistir” – frisa Otávio. 

Em Teresina, o cantor Valciãn Calixto havia iniciado as gravações do segundo disco pouco antes da pandemia e tem tentado encontrar estratégias que se relacionem com o momento e com suas possibilidades de inserção no mercado. “Eu não posso levar em conta estratégias de artistas como Lady Gaga, por exemplo, distantes da minha realidade”, argumenta. Também formado em jornalismo, ele seguiu o caminho de lançar singles a cada 15 dias durante três meses até liberar o disco completo em formato digital. “Cada single vinha acompanhado de um clipe ou uma participação especial, como forma de dar mais impacto ao trabalho e de criar pontes”. 

Entre vida e morte  e (re)nascimento 

Ilustração: João Brentano

O distanciamento social se converteu em possibilidade de testar novas formas de fazer teatro. Mika Lins se preparava para lançar espetáculo com patrocínio da Lei Rouanet quando tudo mudou e o público teve que se tornar virtual. Era a peça Pós-F, inspirada no livro de Fernanda Young e interpretada em monólogo pela atriz Maria Ribeiro.  

Se o público era virtual, por outro lado a atriz e equipe estavam presencialmente no teatro Porto Seguro. Assim, também tiveram que pensar em testagem para Covid e todos os protocolos de segurança. O resultado é definido pela diretora como um grande sucesso: foram oito apresentações para mais de 10 mil espectadores de várias cidades diferentes do Brasil – um público que não teria acesso à peça sem o formato virtual –, e ainda com sessões de bate-papo com a atriz ao final.  

Além de dançar, estamos nos permitindo reaprender a falar, a cantar, a rezar e a chorar” – Marcelo Evelin, Coreógrafo

Artistas e público passaram a estar mais sensíveis a temas como vida e morte e avaliações sobre o viver. Se Pós-F é um relato autobiográfico corajoso sobre liberdade, relações e inadequações, Marcelo Evelin falou de vida e morte de modo ainda mais direto. De volta à Europa, desta vez com máscaras e álcool em gel na bagagem, ele produziu, junto a seus alunos da Escola Superior de Artes, em Amsterdam, o espetáculo The Dead and The Other (Os Mortos e os Outros).  “A peça tratava de chamar, invocar e tentar ouvir os que não mais estão e os que ainda não estão”, disse. A apresentação era encerrada com um dos performers apresentando ao público sua filha, com apenas 20 dias de nascida, ao som de samba. O bebê representaria novos tempos e a esperança no amanhã. 

Durante o contato para esta reportagem, Marcelo estava na França, criando o dueto A noite cai quando ela quer, em parceria com a coreógrafa franco-marroquina Latifa Laabissi. O espetáculo é uma vigília que atravessa um longo tempo. “Além de dançar, estamos nos permitindo reaprender a falar, a cantar, a rezar e a chorar”, diz o coreógrafo. 

Nada Tem Sido Fácil Tampouco Impossível deu título e “espírito” ao álbum de Valciãn Calixto. Com referências adquiridas ao longo dos anos, o artista foi ao encontro de seu afrocentrismo por meio de ritmos, temas, arte de capa e composições. “É um disco solar, bem humorado e reflexivo a um só tempo. Creio que se tornou um disco positivo, fortalecedor no momento incerto que o Brasil e o mundo atravessam”, diz Valciãn, que define seu disco como um “ato de fé”.  

A morte renascida como homenagem e solidariedade foi o que motivou a cantora Monise Borges a embarcar nas lives com o trabalho Memoriar, uma reverência às pessoas que haviam perdido a vida por conta da Covid. “Esse trabalho gerou muita comoção, foi algo realmente feito de alma e coração”, diz Monise. Ela também participou de outros eventos on-line como a campanha Todos pela Cultura, do grupo Geleia Total, que buscou arrecadar recursos para artistas teresinenses. “Não tivemos um lucro maravilhoso, mas deu para dar uma injeção de ânimo”. 

Para sair da  corda bamba 

Ilustração: João Brentano

Os produtores culturais não pararam, mas não receberam todo o apoio necessário para realizar seus trabalhos. O projeto de Lei Aldir Blanc (encabeçado pela deputada Benedita da Silva – PT/RJ, e pela deputada Jandira Feghali – PCdoB/RJ), aprovado durante a pandemia depois de muitos entraves no Congresso Nacional, foi uma das formas de financiamento através de editais via estados e prefeituras. Além da lei, alguns projetos da iniciativa privada também viabilizaram financiamento aos artistas que não integram a indústria cultural patrocinada por grandes marcas e empresas. 

Otávio Almeida e a roteirista Ana Clara Ribeiro, de Teresina, juntamente com a produtora criativa Fernanda Vidigal, de Belo Horizonte, tiveram projeto aprovado na Lei Aldir Blanc e realizaram, entre 2 de fevereiro a 11 de março, o Faz!Doc, uma oficina gratuita sobre a produção de documentários, que ofertou 20 vagas e recebeu 152 inscritos. Para Otávio, a quantidade de inscritos demonstra o potencial cinematográfico do Piauí e a carência de programas de formação de qualidade no segmento audiovisual. Para permitir um maior número de participantes, foram selecionados 25 inscritos, sendo 15 de Teresina e 10 do interior do estado. Além desses, 37 ouvintes receberam posteriormente o conteúdo gravado. “Conseguimos criar um modelo que funcionou bem no formato on-line, e a cada semana temos uma aula mais expositiva e uma aula que é um bate-papo com um convidado, um profissional atuante em cada etapa do processo do cinema de documentário”, explicou. 

 A empresa responsável pela distribuição de energia no Piauí, Equatorial Piauí, realizou investimentos por meio da Plataforma E+. De acordo com Maurício Velloso, presidente da empresa, “a Lei de Incentivo via ICMS do Estado do Piauí nos possibilitou desenvolver estratégias específicas na nossa política de patrocínios para contribuir positivamente no segmento, que sofreu grandes impactos no ano da pandemia”. Os trabalhos estiveram alinhados com a Secretaria de Cultura do Piauí – Secult, que buscou atender particularidades de cada localidade. Segundo dados da Equatorial, foram investidos mais de R$6 milhões em patrocínios no ano de 2020. Além disso, 71 projetos foram selecionados pelo Sistema Estadual de Incentivo à Cultura (Siec), dos mais variados segmentos: música, teatro, dança, humor, cinema, literatura, artes plásticas, gastronomia, pesquisa e documentação, patrimônio histórico, artístico e ambiental. A expectativa da empresa para 2021 é dar continuidade aos patrocínios de projetos culturais em Teresina e no interior do Piauí. 

O esvaziamento da área cultural dá a impressão de que é quase uma vingança da esfera federal, porque eles são contra cultura, ciência, tudo que é esclarecido – Mika Lins, Diretora de Teatro

A Secretaria Estadual de Cultura do Piauí (Secult/PI) afirma que cerca de R$30 milhões foram destinados ao estado, divididos entre a renda emergencial aos artistas e espaços culturais que cumprissem todos requisitos da legislação. Entraram nesta conta também editais e projetos de variadas linguagens. 

As artes cênicas, música, literatura, audiovisual e expressões de cultura popular foram o foco do festival Sossega o Facho em Casa, em março de 2020. Ainda com a mensagem de incentivar a permanência das pessoas em casa, o projeto Te aquieta e lê levou cerca de 1.400 livros para a população de forma gratuita, com entregas realizadas em domicílio.  

No âmbito da Lei Aldir Blanc, foram três editais até agora: Maria da Inglaterra, Prêmio Seu João Claudino e Afrânio Castelo Branco. Mas se a conquista da nova legislação e da destinação dos recursos veio em meio a muita movimentação, o andamento não foi diferente, sendo atravessada por reclamações, produção de sucessivas erratas e questionamentos. Um dos artistas que fizeram críticas duras à gestão do processo envolvendo a Lei Aldir Blanc no Piauí foi Valciãn Calixto. Na opinião do teresinense, a sequência de erratas permitiu supor “que tudo ali parece ser intencional, parece um projeto, então fomos denunciando e conseguimos algumas vitórias”. Valciãn e outros críticos ocuparam espaços em redes sociais e na mídia local para questionar o que apontavam como falhas. 

Monise Borges, que não foi aprovada em edital da Secult, reclama que seus 20 anos de carreira e currículo comprovado não foram suficientes. O ponto de crítica da cantora é direcionado ao curto prazo no cronograma dos editais e ao que ela considera “despreparo” da equipe para julgar o que se pedia em caráter de emergência.   

O secretário de Cultura, Fábio Novo, defende a atuação da Secult e diz que o processo de classificação dos editais foi transparente, obedeceu a critérios técnicos e à legislação vigente. “A comissão responsável trabalhou em tempo recorde para avaliar, selecionar os projetos e repassar ao setor financeiro, visto que a Medida Provisória, publicada pelo Governo Federal e que garante a execução dos recursos da Lei Aldir Blanc em 2021, dizia que somente poderiam ser gastos com projetos finalizados e empenhados até o dia 30 de dezembro de 2020”. E complementa: “Mesmo com toda a crise que estamos enfrentando, temos trabalhado incansavelmente para estimular o setor cultural” e cita, além dos editais do Siec e Lei Aldir Blanc, a realização de lives no Theatro 4 de Setembro, com artistas de diversos segmentos, e a manutenção do Projeto Boca da Noite, acontecendo também por meio de lives.    

Ilustração: João Brentano

Valciãn, “parcialmente” (em suas palavras) contemplado com recursos da Lei Aldir Blanc, afirma que mantém as críticas por considerar que a gestão da secretaria atua de maneira distante dos artistas.

Marcelo Evelin acredita que uma Lei como a Aldir Blanc dá legitimidade para artistas que atuam de forma mais invisível e menos comercial, para a arte popular, que ainda se vê marginalizada. “Aconteceu um reconhecimento a muitos outros tipos de artistas, tão importantes quantos os ‘de sucesso’, e isso nos fez repensar a importância e o valor da arte dentro da nossa sociedade. Isso pra mim foi a maior conquista”, diz. Marcelo teve o projeto Campo Arte Contemporânea aprovado, mas a plataforma Demolition Incorporada não teve aprovação nas leis estaduais (Maria da Inglaterra e João Claudino). 

Devo a oportunidade de fazer cinema a edital do Ministério da Cultura. O mercado não enxergava potencial naquele filme – Halder Gomes, Diretor de Cine Holliúdy

Críticas à gestão dos recursos da Lei Aldir Blanc foram diversas pelo país. A diretora Mika Lins fala que em São Paulo a prefeitura tentou remediar as defasagens do Governo Federal em relação à produção artística. “O esvaziamento da área cultural dá a impressão de que é quase uma vingança, sim, da esfera federal, porque eles são mesmo contra a cultura, a ciência, tudo que é mais esclarecido”, reflete. Ela observa que governos anteriores, mesmo mais atentos, também negligenciaram a cultura: “A gente ainda não conseguiu ter um grande orçamento para cultura no país.” 

Para Halder Gomes, os editais são cruciais em qualquer momento, seja em pandemia ou não. “Eu mesmo devo a oportunidade de fazer cinema ao edital de baixo orçamento do Ministério da Cultura, foi quando consegui fazer o Cine Holliúdy de forma independente. O mercado não enxergava potencial naquele filme e ele foi descoberto pelas curadorias dos editais”. Para Halder, é dever dos governos municipais, estaduais e federal fomentar as culturas locais. “É o que dá a identidade de um povo. São os projetos independentes, autorais, que revelam as facetas de onde vivemos”. 

 2021 segue desafiando população, produtores culturais, público, governos, órgãos responsáveis por ações, empresas. Enquanto o país sente os efeitos da pandemia, de forma cada dia mais dolorosa, toda a cadeia de profissionais, grupos e iniciativas culturais corre contra o tempo e enfrenta adversidades, em processo de reinvenção urgente ou em risco de sufocamento. As polêmicas em torno dos projetos aprovados ou recusados não deixam de ser reveladoras da carência de recursos do setor, quando contemplados e não contemplados passam a brigar entre si e deixam de discutir políticas públicas de modo mais profundo, eficaz e justo.  

Em toda essa questão, é impossível negar: mesmo na corda bamba, a arte, mais uma vez, é fundamental no combate à desesperança. Um respiro no sufoco constante desses dias. 

***

ESSA EDIÇÃO TEM APOIO CULTURAL DA EQUATORIAL ENERGIA POR MEIO DO SIEC (Sistema Estadual de Incentivo à Cultura) da SECRETARIA DE CULTURA do GOVERNO DO PIAUÍ.
💰 Ajude Revestrés a continuar produzindo jornalismo independente. Apoie nossa campanha no Catarse, a partir de R$ 10,00 (dez reais): catarse.me/apoierevestres