Imagine um mundo em que só existissem crianças. Todas elas capazes de ser quem quisessem ser: animais falantes, reis, bruxas, seres inanimados, princesas, bois ou apenas elas mesmas. Que pudessem estar onde gostariam de estar: um parque de diversão, outro planeta, um reino muito, muito distante ou aqui mesmo, em casa, na escola, nos espaços públicos. Contadores de histórias, produtores de festivais infantis, ativistas ocupantes de estações desativadas e arte-educadores debatem: como a arte interfere na percepção de mundo das crianças?

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Ilustrações: Istock

Quem conta um conto aumenta um ponto

A mistura de uma professora de letras, uma cantora que ao mesmo tempo é jornalista e um músico que as acompanha ao violão acorda um lugar especial: o imaginário infantil. Praças, escolas, abertura de eventos, livrarias e teatros recebem a trupe munida de fantoches, instrumentos musicais, acessórios inusitados e muitas histórias. São contos populares, narrativas africanas, histórias criadas pelas próprias autoras ou clássicos conhecidos no mundo todo – a contação de histórias do grupo Cafundó não tem nacionalidade, é de todo canto.

O grupo começou há 20 anos com mais integrantes, entre eles a bonequeira Cecília Mendes e o músico Garibaldi Ramos, mas hoje é composto pelas contadoras Márcia Evelin, Anna Miranda e pelo músico Fernando Ferreira. “Nós trabalhamos com o simbólico. Quando contamos histórias, também estamos mostrando para as crianças a literatura enquanto arte”, conta Márcia do jardim de sua casa. O Pequeno Príncipe tatuado no braço denuncia a paixão pela clássica história, famosa também pelo trecho “o essencial é invisível aos olhos”. “Não trabalhamos com a ideia de que a criança tem que ver tudo. Ela tem que ver na imaginação dela”, ressalta Márcia.

Ao longo de duas décadas o grupo desenvolve e participa de ações e projetos de circulação e formação de público leitor. Entre eles está o Balaio Brasil, que se deu no ano 2000 e reuniu artistas da música, teatro e dança em São Paulo. “Nós contamos nossas primeiras grandes histórias, que fizeram parte do módulo de histórias das lendas do Piauí”, conta Márcia sobre a participação que resultou nos livros O Boi do Piauí, de sua autoria, e A Tartaruga de Sete Cidade, de Anna Miranda. Publicados somente em 2015 pela Nova Aliança, os livros das contadoras foram lançados no mesmo dia, com o mesmo histórico do grupo na contracapa e com ilustrações dos mesmos artistas: LuRebordosa e Danilo Grilo.

A parceria rende uma combinação de ideias complementares das amigas que se chamam no diminutivo: “Aninha” e “Marcinha”. Enquanto Márcia Evelin amarra as ideias através de um olhar de educadora, Anna Miranda se deixa levar pelas percepções sensoriais nos momentos de contação das histórias. “É a questão da degustação literária, que trabalha o tato, o olfato, a visão e até mesmo o paladar”, nos explica Anna sobre o contato das crianças com os livros.

O olhar sobre o mundo infantil deixa resquícios em vários cantos da casa de Márcia Evelin. Nos fundos, um carrinho de picolé que outrora circulou pelas praças da periferia de Teresina carregado de livros. Por enquanto, está encostado na oficina de seu marido até o próximo chamado. “Um dos objetivos deste projeto era levar arte para as crianças que não têm essa possibilidade. Na praça, o acesso é livre, o espaço é aberto e todo mundo é igual”, diz ela. O projeto em questão se chama Histórias Andantes, que circulou no ano de 2014 e acontecia aos domingos, uma vez por mês durante as manhãs. “Eu saía com o megafone de porta em porta chamando as pessoas para ouvirem as histórias. E elas iam junto”, relata Anna.

Representante de toda essa trajetória do grupo é a biblioteca Manaladata. Um dos quartos da casa se transformou em escritório e acervo do grupo. “Fui dona de livraria infantil, que também funcionou como clube de leitura. Depois, fiquei com o acervo e comecei a montar a minha biblioteca, que hoje também é do grupo Cafundó. Acredito que tem mais de mil livros aqui”, conta Márcia Evelin. Entre frases nas paredes e muitos livros, fui presenteada com vassourinha feita especialmente para contações da temporada de Halloween. Magicamente, também fui transformada em contadora de histórias.

(Reportagem completa na Revestrés#29 – Fevereiro/Março 2017)