Após retornar de um show, em março, o músico Leoni se deparou com o decreto de quarentena e o cancelamento de toda sua agenda de eventos pelo Brasil. Para compensar a notícia inesperada, decidiu fazer um show virtual para os fãs, sem muita pretensão. Escolheu um canto na casa, montou o cenário com ajuda da família, violão na mão, celular usado como câmera principal. Estava pronto o show para a plateia, do outro lado da tela. 

“Senti que aquilo foi muito bom para quem assistiu. Peguei várias coisas que gostaria de fazer e fui colocando no canal. São coisas que posso ir realizando e que, de alguma forma, vão dando material para as pessoas se divertirem”, conta. A partir daí, organizou uma agenda online com lives semanais, programas sobre poesia e conversas sobre criação e letras de suas músicas. “A arte nessas horas é fundamental. Se você está trancado em um lugar pequeno, sem poder sair e nem falar com as pessoas, e não tiver uma música, série ou um livro, você enlouquece”, acrescenta. 

“Se você está trancado em um lugar pequeno, sem poder sair e nem falar com as pessoas, e não tiver uma música, série ou um livro, você enlouquece – Leoni, músico.

Tocar para uma tela, sem sentir a efervescência de quem acompanha o show de perto cantando e se emocionando a cada verso, pode ser uma experiência um pouco estranha para quem está acostumado com os palcos. Para se aproximar do público, Leoni gravou clipe colaborativo da canção “40 dias no espaço”. A ideia foi pedir para que as pessoas enviassem vídeos curtos, feitos durante a rotina dessa nova realidade. 

A música, lançada em 2006 no disco “Outro Futuro”, fala sobre o retorno de uma pessoa à Terra após uma temporada no espaço. Agora ganhou novo significado. “As pessoas ficaram muito entusiasmadas pela ideia de participarem de algo coletivo. A gente começou a se tocar da falta das outras pessoas, do contato físico. E a música ganhou esse sentido de que temos de olhar para as coisas que são essenciais”, conta. 

A arte produzida durante o distanciamento social está ocupando lugar fundamental na casa dos espectadores. Em um período em que todas as incertezas pesam, as lives se tornaram um ponto de fuga da realidade. E, para os artistas, o principal meio de aproximação com o público, possibilitando, para quem assiste, encher de leveza o cotidiano aflito com as notícias da pandemia. Em meio ao caos, a arte salva mais uma vez. 

 

Ilustração | Irineu Santiago

Músicos se adaptam à vida virtual 

Muitos artistas e produtores de eventos tiveram projetos cancelados em decorrência do distanciamento social obrigatório. Foi repentino, e aconteceu no mundo inteiro. A rotina e os trabalhos tiveram que ser adaptados a um novo modelo. Como alternativa, músicos, bandas e organizadores substituíram o palco e espaços de apresentação pelas plataformas online. 

O estouro das lives musicais no Brasil teve início com artistas como Gustavo Lima, Jorge e Mateus e Marília Mendonça, que ultrapassaram recordes de espectadores e conseguiram atrair a atenção do público, de forma até então impensável para o formato ao vivo no mundo virtual. As lives sertanejas tiveram superproduções, grandes patrocínios e arrecadação de alimentos e equipamentos para o combate ao coronavírus. Mas esse modelo também foi alvo de críticas: algumas transmissões teriam sido responsáveis por aglomerações das equipes técnicas envolvidas, o que estaria contrariando as recomendações da Organização Mundial de Saúde (OMS). 

Outras, com formato mais intimista e despojado, também aconteceram. Artistas com apresentações feitas de casa, com ajuda apenas da própria família, por meio de transmissões feitas com poucos recursos. De forma despretensiosa, esse formato atraía quantidade menor de espectadores, mas permitia maior conexão e interação. 

No Piauí, a banda autoral Bia&OsBecks encontrou nesse espaço uma alternativa para se comunicar e mostrar sua arte. Antes da quarentena, estavam se preparando para realizar lançamentos de novas músicas e clipes. Para não estagnar a ideia, resolveram investir na produção online e criaram o projeto Música de Ficar, com o objetivo de compor e lançar vinte músicas inéditas. Além disso, estão realizando entrevistas e interações com outros artistas, estudiosos e produtores culturais nas redes sociais. 

A gente acaba fazendo o trabalho em dobro. Grava, filma e faz tudo em casa, acumulando funções que, antes, podíamos dividir com outras pessoas – Bia Magalhães, cantora.

“Esse é um conteúdo que pensamos para desestressar, porque as pessoas precisam desse afago. Muita gente falava que precisava escutar as músicas para aliviar e fizemos o projeto pensando nisso”, explica a cantora Bia Magalhães. 

Essa também foi uma forma para a banda manter o contato com o público. No meio online os fãs podem conversar com os artistas, pedir músicas e sugerir novos conteúdos. A interação toma amplitude maior, já que há possibilidade do acesso remoto do conteúdo que está sendo distribuído. 

Mesmo animada e envolvida com as atividades da banda, Bia conta que o período está sendo de aumento da carga de trabalho. Em casa ela idealiza, produz, grava e finaliza os próprios conteúdos. O mesmo acontece com todos os integrantes da banda. “A gente acaba fazendo o trabalho em dobro. Grava, filma e faz tudo em casa, acumulando funções que, antes, podíamos dividir com outras pessoas”, desabafa. Mas o peso maior durante a adaptação é a ausência do calor humano. “Isso me afeta em todos os sentidos e não somente em relação ao público, mas na vida pessoal também. Sinto falta da espontaneidade das pessoas, da interação. A falta de calor humano é algo gritante”. 

 

Ilustração | Irineu Santiago

Mudanças em curso 

O setor cultural no Brasil vem passando pelo processo de repensar estratégias e ações, desafiando diariamente quem constrói essas atividades no país. Mesmo diante das dificuldades, algumas entidades têm garantido a manutenção do relacionamento com artistas, classe bastante afetada economicamente pela diminuição dos eventos, shows e fechamento de casas de espetáculos. As lives e a utilização das plataformas digitais cumprem a função de dar continuidade às produções, ajudam a tentar manter a remuneração de artistas e criam uma agenda digital, baseada nos relacionamentos já existentes com as entidades e empresas no período anterior. E mesmo na revelação daqueles que estão se adaptando às linguagens da internet. 

Apresentar shows ou monólogos teatrais operados remotamente e em parte pelos próprios artistas é algo sensivelmente diferente do que estamos acostumados em nossas estruturas convencionais – Ivan Giannini, Sesc-SP.

Ivan Giannini, Superintendente de Comunicação Social do Serviço Social do Comércio de São Paulo (Sesc SP), percebe que os meios digitais são dinâmicos e exigem posturas novas, não bastando somente a reprodução de linguagens utilizadas nas ações presenciais. “Por exemplo, apresentar shows ou monólogos teatrais operados remotamente e em parte pelos próprios artistas é algo sensivelmente diferente do que estamos acostumados em nossas estruturas convencionais, que incluem palcos, plateias, coxias, camarins, previsão de capacidade de público, equipes de iluminação, luz e som, entre diversos outros recursos humanos e de infraestrutura”. 

O Sesc-SP tem realizado, desde o início das medidas de distanciamento social, campanhas como #EmCasaComSesc pelo seu portal e nas redes sociais das 44 unidades, com informações relacionadas à saúde, bem-estar e estratégias de comunicação, além de doações de alimentos e disponibilização de acervos, cursos e programações inéditas. 

“As estratégias e ações que existiam foram adaptadas às condições de suspensão social e carência extrema”, explica Ana de Fátima Sousa, gerente do Núcleo de Comunicação e Relacionamento do Itaú Cultural. Ela acredita que a pandemia agravou as perdas sofridas pelo setor cultural e cita, como ação de enfrentamento, a criação de editais e seleções de projetos. “Já lançamos editais de artes cênicas, música, artes visuais, poesia surda, literatura, para os quais recebemos, no total, 41.565 inscrições, e 900 foram selecionados – isso sem contar as inscrições para o edital de audiovisual”. 

Sobre o crescimento das lives, Ana de Fátima acredita que a natureza do fenômeno não é, em si, transformadora das relações e da forma de produção de conteúdos culturais. Para ela, as lives encaminham mais possibilidades e novas abordagens eficientes, que atendam à demanda do público no momento em que as aglomerações não são possíveis. 

“O canal do Itaú Cultural no Youtube angariou mais de 10 mil novos inscritos e o site teve mais de 2 milhões de visualizações. Essa mudança ou adaptação foi natural, é o único fluxo possível e estava de acordo com o caminho que o Itaú Cultural sempre trilhou, no meio digital, na internet”, conta Ana. Sobre o projeto Diálogos Itaú Cultural (nas redes sociais) que começou no final de maio, ela avalia que “a experiência expande horizontes, aquece o público carente de programações culturais, de reflexões sobre o cenário, aponta caminhos. A avaliação é positiva, e gerará outras experiências similares”. Tais mudanças já vinham sendo observadas mesmo antes da pandemia. Foi nesse sentido a criação do Painel de Dados do Observatório Itaú Cultural lançado, por meio de uma live no dia 13 de abril. Em um site, estão relacionados resultados de pesquisas sobre a importância do setor cultural para a economia e informações do mercado de trabalho, empreendimentos, financiamento público à cultura, comércio internacional de produtos e serviços criativos, com a intenção de orientar práticas no setor. 

 

Ilustração | Irineu Santiago

 

Elas vieram para ficar! 

Os músicos, artistas e produtores culturais fazem parte de um dos primeiros setores obrigados a suspender suas atividades. Em uma pesquisa realizada pelo Data SIM, núcleo de pesquisa e organização de dados e informações sobre o mercado musical brasileiro, vinculado ao Sim São Paulo (Semana Internacional de Música de São Paulo), uma das mais importantes convenções musicais da América Latina, constatou-se que a paralisação repentina das atividades gerou o cancelamento de mais de oito mil eventos, afetando oito milhões de pessoas e com prejuízo estimado em 483 milhões de reais. 

Os artistas maiores estão garantindo retorno graças aos patrocínios, mas isso não é uma solução para aqueles que possuem menor alcance – Daniela Ribas, Data Sim.

“Essa pesquisa foi feita antes do início oficial da quarentena, com a coleta realizada entre os dias 17 e 23 de março, e teve como objetivo ser um primeiro parâmetro. Se pegássemos o resultado dessas 280 microempresas e expandíssemos para o contexto nacional como um todo, o resultado seria o impacto direto de três bilhões de reais na economia, sem considerarmos as empresas maiores”, aponta Daniela Ribas, diretora do Data Sim. 

Os principais impactos relatados pelas empresas e microempreendedores individuais foram os adiamentos e cancelamentos de eventos, a diminuição do ritmo de trabalho e a interrupção das atividades. Como uma reação rápida a essa nova realidade, os artistas fortaleceram a presença no ambiente virtual, aumentando a produção de conteúdo nas redes sociais e estreitando a relação com o público, que também está em casa. 

A execução de lives em plataformas como Youtube, Facebook e Instagram, foram benéficas quando se trata de estabelecer uma relação efetiva com o público, além de contribuírem com a relevância artísticas de diferentes nichos. Entretanto, Daniela chama a atenção para o fato de que, na prática, o retorno financeiro só está sendo efetivo para os grandes artistas. “Os artistas maiores estão garantindo esse retorno graças aos patrocínios, mas isso não é uma solução para aqueles que possuem menor alcance. Para os pequenos artistas as lives só resolvem a relação com o público”, pontua. 

Para Bia Magalhães, da Bia&OsBecks, apesar das lives serem positivas nesse momento de ausência de contato físico, os artistas independentes acabam tendo que se esforçar em dobro. “É um espaço que temos que disputar com os artistas grandes e patrocinados, com essa concorrência em que eles estão sendo muito bem pagos, enquanto a gente tem dificuldade de fazer o público assistir nosso material”, desabafa. Para conseguir retorno financeiro, a banda recorre à arrecadação de dinheiro em sites de financiamento coletivo, onde recebe o apoio de fãs e admiradores do seu trabalho autoral, em doações que variam de 10 a 100 reais. 

 O melhor disso é que temos muitas coisas que, se fossem presenciais, teriam custos, e agora estão disponíveis gratuitamente – Carla Gabryela, administradora.

Além da busca por entretenimento e produções culturais, é possível a apreensão das transmissões como parte do cotidiano pessoal, profissional, para estudos e para alavancar projetos. Esse movimento pode refletir diferentes relações entre público consumidor e o que está sendo ofertado. 

Carla Gabryela, administradora, conta que construiu ao longo do tempo uma relação muito natural com a internet em sua rotina. Como espectadora, ela diz que a pandemia e o distanciamento fizeram com que o tempo conectada aumentasse, e passou a consumir lives sobre diversos assuntos. “Sempre gostei de estar em eventos, palestras, fazer cursos. Quando começaram a lançar as lives, comecei a ver as pessoas e conteúdos que gostava. O melhor disso é que temos muitas coisas que, se fossem presenciais, teriam custos, e agora estão disponíveis gratuitamente”. 

Manter-se ativo nas redes sociais, com lançamento de novos projetos ou através de lives, está gerando visibilidade e retorno positivo. Entretanto, dados recentes do Google Trends apontam que as lives estão perdendo a força que tinham no início da quarentena, apontando alguma saturação. As transmissões ao vivo já têm menor audiência e as buscas pela agenda de lives diárias caíram. 

Mesmo assim, Daniela Ribas acredita que o boom das lives veio para ficar. “Estarem perdendo força é algo natural por elas não serem um substituto do ao vivo, mas um paliativo. Apesar disso, não acho que vão cair no esquecimento. É como se a gente tivesse descoberto uma nova maneira de se relacionar com o público. 

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Reportagem publicada na Revestrés#46 (agosto de 2020) que, devido a pandemia, circula online e gratuita.

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