A palavra para quem faz sucesso nas redes sociais é engajamento. Mais importante que número absoluto de seguidores, bomba nas redes quem alcança, além de likes, comentários e compartilhamentos, que funcionam como selo de aprovação. É isso que estão conquistando ilustradores que usam plataformas digitais para divertir, informar ou até para tocar em feridas do mundo real.

Após alguns anos de experiência como diretor de arte e ilustrador na publicidade, Pedro Leite, 36, migrou para a carreira de ilustrador e cartunista. Inicialmente os trabalhos eram voltados para fazer rir, mas em 2011 ele lançou a série Quadrinhos Ácidos em que o riso ficou em segundo plano e tomaram corpo sequências com títulos como “Estereótipos baratos”, “Racismo sem querer”, “Mundo ao contrário”.

 

 

“Meu público parece estar dividido em dois grupos: os que me amam e os que me odeiam”, avalia Pedro. Ambos os públicos compartilham os quadrinhos. O ilustrador aposta em temas feministas e diz que mais de 65% do seu público é composto por mulheres.

Para falar de causas femininas com propriedade, páginas bombam na internet pelo mundo todo com quadrinhos assinados por mulheres: Carol Rossetti (Mulheres), Bruna Maia (Estar Morta) e Helô D’Angelo são uns dos nomes que despontam entre aqueles que não precisam mais de tinta e papel para dar o recado: no desenho digital, desconstrução da masculinidade, direitos humanos e luta LGBT aparecem em personagens femininas com força e representatividade.

Os temas são tão importantes quanto “ácidos”. Assim como os quadrinhos de Pedro Leite, que viralizaram na internet, as tiras de Leandro Assis e Triscila Oliveira tocam em temas sociais caros e surgem para os criadores como válvula de escape diante da indignação política – tanto que, em sua versão inicial, a série Os santos se chamava Os Bolsominions, com críticas ferrenhas ao atual governo. (Veja mais no tópico Aqui não tem humor, logo abaixo)

Alexandre Beck, pai do Armandinho (o menino do cabelo azul de tiradas sagazes) também cutuca temas espinhosos com suas histórias – é considerado pelos críticos o primo brasileiro da Mafalda (argentina, do cartunista Quino) e do Calvin (americano, de Bill Watterson). Criado em 2009 para ilustrar uma pauta do Diário Catarinense, o personagem soma hoje mais de um milhão de fãs em sua página no facebook, administrada pelo próprio ilustrador. No Instagram, um perfil é alimentado por fãs e volta e meia se encontram tiras traduzidas para o espanhol, italiano, inglês e francês.

Preconceito, racismo, empatia, violência: tudo isso é abordado de maneira crítica e com bom humor no quadrinho que se tornou um fenômeno das redes sociais. “Não me sinto no direito de me omitir”, diz em entrevista. “Não conseguiria deixar de fazer tiras não abordando os assuntos que julgo importantes”.

Beck colabora com a Revestrés desde a edição 39. “Gosto de ter um material impresso”, afirmou. “É documental, sem a efemeridade do virtual”. “Nas publicações nos jornais impressos do Sul do país, sei que atinjo um leitor diferente do público “normal” do Armandinho”, avalia. “Não sei, na verdade, como ele é recebido por esses leitores, mas acho importante estar lá também”.

As redes proporcionaram aumento de engajamento e projeção – um canal direto com o público foi aberto. No entanto, nem sempre os comentários são uníssonos. Para a cartunista Laerte, que cruzou as gerações e convive em sincronia com a grande imprensa e o ambiente digital, o feedback rápido e direto é o grande trunfo das novas mídias. Sem edição, sem rodeios: fãs e haters no mesmo patamar.

Mulheres, quadrinhos e política

Um dos projetos que alcançou grande visibilidade e ganhou o mundo foi Mulheres, de Carol Rossetti, com discussões feministas, de igualdade de gênero e abordando o protagonismo das mulheres. Em 2014, a ilustradora e quadrinista mineira, de forma despretensiosa, começou a produzir ilustrações que retratavam mulheres plurais, falando sobre amor-próprio, respeito e o direito de serem quem quiserem ser. Em pouco tempo, suas postagens começaram a ser compartilhadas, foram traduzidas para diversos idiomas, e resultaram em um livro físico.

 

Bruna Maia, quadrinhista da página Estar Morta, em seu primeiro livro, Manual da Esposa Pós-Moderna, propõe uma reflexão quanto a desconstrução da masculinidade nos homens e ao papel da mulher dentro dos relacionamentos, partindo da sua observação de que ainda hoje se reproduzem práticas de décadas passadas. A presença de quadrinhos como esses nas redes sociais, feitos por mulheres com temáticas voltadas a elas, contribui para que as personagens sejam retratadas sem estereótipos e faz com que assuntos necessários sejam repassados para o grande público de forma mais clara.

Para a quadrinista e cartunista Helô D’Angelo, isso contribui com a melhor representação das mulheres. “Primeiro tem a questão da visibilidade, de você se ver numa produção, numa personagem. Além disso, quando você é mulher, consegue criar personagens femininas muito mais verdadeiras. Não que os homens não consigam, mas eu acho que a gente tem esse privilégio de falar de algumas questões que nós mesmas passamos”, explica.

Com o seu trabalho voltado para discutir direitos humanos, mais focado no feminismo e na luta LGBT, Helô afirma que a internet é uma ferramenta importante na divulgação dessas pautas. Até o fim desta edição o perfil de Helô no Instagram era seguido por 106 mil usuários. Para ela, as redes sociais se tornaram a principal vitrine dos seus trabalhos. “Lá eu publico diariamente, de forma gratuita, tirinhas quase sempre inéditas, interajo com as pessoas e tento fazer essa coisa mais marqueteira, digamos assim. Dessa forma, direciono as pessoas que quiserem me apoiar para o site de financiamento coletivo e também para a minha lojinha virtual”.

A interação mais aproximada com o público também provoca reações negativas. Durante as eleições presidenciais de 2018 uma série de quadrinhos feita por Helô gerou ataques que fizeram a artista desativar seu perfil. “Eu sofri ameaças de morte, estupro. Foi muito violento e horrível”, conta. Apesar disso, é pelas redes que é possível chegar a mais pessoas. “Com as redes sociais, esses temas alcançaram um público que antes não alcançariam”, diz.

Apesar de muitas mulheres estarem produzindo quadrinhos e reivindicando seu espaço, essa área ainda continua sendo majoritariamente ocupada por homens. A luta para demarcar o espaço e avançar demanda força e união entre as mulheres e ainda está longe para se afirmar que, de fato, elas estão se tornando protagonistas. “Antes não tínhamos essa multiplicidade de mulheres quadrinistas que temos hoje. Depois de muito reclamar, estamos conseguindo espaço, porque agora todo mundo fala em diversidade, representatividade. Eu acho que também conseguimos ocupar espaço porque tinha uma certa carência de se falar em determinados assuntos, através da perspectiva das mulheres”, acredita Bruna Maia. “Mas, apesar disso, ainda me questiono: será que a gente ocupou mesmo esse espaço?”.

Da acidez ao otimismo

“O Quadrinhos Ácidos surgiu em um momento da minha vida em que eu estava com menos paciência, possivelmente. Muitas tirinhas foram criadas para eu extravasar alguma indignação do momento e ficava muito feliz em ver que outras pessoas sentiam a mesma coisa ao compartilhar as postagens”, desabafa Pedro Leite.

Com a internet, ser visto deixou de ser o principal desafio, se comparado à época onde ilustradores ganhavam notoriedade por publicações em jornais ou revistas físicas. Mas a exibição também tem seu preço. Os chamados haters não poupam ninguém e qualquer perfil pode ser alvo, especialmente os de viés crítico. Pedro conta que enfrentou ataques virtuais desgastantes, mas que não o fizeram desistir.

“Muitas vezes fui alvo de xingamentos por causa dos quadrinhos. O lado bom é que a cada hater que aparecia, surgiam muitos outros leitores me apoiando. Às vezes eu me desgasto muito com o pessoal que me xinga de comunista só porque pintei um quadrinho de vermelho, ou diz que estou corrompendo crianças somente por fazer alguma tirinha sobre homofobia”. Mesmo com tais reações, Pedro conquistou o Troféu Angelo Agostini (Melhor Fanzine de 2015) e o Troféu HQMIX (Melhor Web Quadrinhos de 2016).

 

 

Em 2017 ele decidiu deixar essa série de lado e partir para um outro momento com Sofia e Otto. Através das crianças e do cotidiano familiar descrito pelo autor da série como “uma família fora do convencional”, ele ilustra sobre machismo, racismo, consumismo, além de temas do universo infantil. Tudo abordado com mais leveza incluindo nas ilustrações a presença de corações e um animal de estimação. “Talvez eu tenha evoluído nesse tempo ou talvez apenas tenha ficado mais velho. Além dos motivos que citei anteriormente, acho que eu entrei naturalmente em outra fase da minha vida, menos ranzinza, talvez, e mais otimista. E essa nova maneira de viver também se refletiu nos quadrinhos”.

Do Pasquim ao touchscreen

Poucos artistas cruzam tão bem as barreiras do tempo como Laerte Coutinho. Nos últimos dez anos, entre passear pelas mídias off e on, protagonizar documentários e roteirizar filmes, Laerte também assumiu-se como transgênero. Impactante, surpreendente, genial.

Do Pasquim para cá, não foram só as roupas que mudaram – as mídias também. Das redações para as telas de smartphones, aos 68 anos, Laerte acompanha as mutações da arte e das comunicações e o modo como interferem em seu trabalho. Sua conta pessoal no Instagram tem pouco mais de 60 mil seguidores. “Não sei lidar com mensagens por aqui”, anuncia em sua apresentação, convidando o visitante a trocar mensagens à moda “antiga”, por e-mail.

 

“No Twitter até que vou bem. Instagram é que não rolou. Não sei bem porquê”, conta à Revestrés em papo, claro, por e-mail. “Gosto de redes sociais”, revela. “Gosto dessa resposta rápida da parte das pessoas, da circulação de informação e combinações. A parte desagradável também existe, claro – os julgamentos sumários, os cancelamentos…”.

Publicando no jornal Folha de São Paulo – diariamente no caderno Ilustrada; a cada cinco semanas na seção Quadrão; e, semanalmente, na página editorial – a artista também usa seu blog Manual do Minotauro para reproduzir as tiras que saem no veículo impresso – e prepara para breve um novo site – com acesso a seu acervo e outras ideias.

“Conheço poucas pessoas desenhistas que trabalhem inteiramente no digital”, comenta Laerte, para quem as mudanças acarretadas pela tecnologia se dão por meio de um processo onde os avanços são lentos e desiguais. Trabalhar longe das redações, por exemplo, pode ser algo tão libertador quanto ruim para os desenhistas que usam as novas mídias como plataforma. “Pode ser visto como um problema, já que distancia o trabalho dessas pessoas do cotidiano do jornalismo”.

 

No Instagram, é o perfil @laertegenial, alimentado por fãs e dedicado à exposição de sua obra que levanta uma legião de seguidores: 457 mil até esta publicação. Para a cartunista, a relação com os seguidores é realmente o grande trunfo das novas mídias. “Isso é realmente novo e surpreendente: a resposta imediata, comparada a antiga seção de cartas das revistas”, diz.

Aqui não tem humor

É quase uma da madrugada e o Lucas está pedalando, pelas ruas, para entregar os pedidos de delivery feitos em aplicativos de celular. “Não faz isso, você tem que dormir!”, diz sua mãe pelo Whatsapp. “Ainda não bati a meta”.

Lucas é um personagem tão familiar para o leitor que nem parece ter saído da tirinha “Cotista” – número 22 da série Os santos – uma tira de humor ódio. Escrita por Leandro Assis e Triscila Oliveira e publicada semanalmente no Instagram, a série cutuca os privilégios da classe média alta brasileira com realismo, sagacidade e nada – nada mesmo – de humor.

A ironia começa pelo título da série – de santa, a elite retratada nas histórias não tem nada. Os quadrinhos têm como personagens principais o núcleo de duas famílias separadas por um abismo social: a de patrões, brancos, e a de empregados, negros.

Os Santos é oriunda de uma primeira série de tirinhas feitas por Leandro para criticar o governo Bolsonaro. “Com o tempo eu vi que a tira era mais que isso”, diz Leandro em entrevista a Revestrés, por e-mail. “Eu estava mesmo falando de injustiça social, racismo, elitismo”.

Leandro é desenhista e roteirista – talvez daí venha a intimidade com storyboard. Ele e Triscila conseguem criar personagens, cenários e enredos, contando a história em quadrinhos que deslizam na tela do celular. “Essa tira foi pensada para ser lida no Instagram”, comenta. “A ideia de explorar o carrossel do Instagram me agradou muito. Gostei da experiência de ler quadro a quadro”, diz o autor. “Ou seja, a história está sendo contada nesse formato porque foi pensada pro Instagram. Se eu tivesse sentado para fazer uma graphic novel, certamente seria bem diferente”.

Triscila Oliveira, cyberativista e feminista de 34 anos, chegou para contribuir a partir do número 10. Foi pela internet que os dois, com histórias de vidas tão distintas, se conectaram para, juntos, produzirem. “Chamei a Triscila porque vi que a tira ia entrar cada vez mais na vida da família das domésticas, e quis ter alguém que pudesse falar dessa realidade com a mesma propriedade que eu falo da família dos patrões”, diz Leandro.

“Meu primeiro trabalho, aos 12 anos, foi fazendo faxina”, conta Triscila, também por e-mail. “Minha visão de mundo foi moldada pelas minhas experiências no enfrentamento do racismo, machismo, classismo e outros preconceitos”. Juntos, eles pensam ideias de temas, assuntos, situações – discutem até chegar a melhor maneira de contar. Leandro desenha e escreve os diálogos já sobre as imagens – antes de colorir a tira passa por uma revisão da Triscila, que faz ajustes.

“Manteiga”, tira de número 3, foi a primeira a viralizar. Segundo os autores, a de maior repercussão até agora foi a 12, “Lacoste” – qualquer semelhança com o episódio real da babá humilhada em stories feitos pelos próprios patrões por cortar a etiqueta de um tênis de marca, não é mera coincidência. A tira 4, “Anjos”, que expõe o racismo e a hipocrisia religiosa, foi denunciada por internautas e censurada pelo Instagram. Já a 22, “Cotista”, que citamos no começo deste box, passava dos 7 mil comentários até o fechamento desta edição.

Esta reportagem  faz parte da Revestrés#45, que pode ser baixada ou lida gratuitamente
BAIXE O PDF (link para pdf) OU LEIA ONLINE (link issuu).

💰 Continuamos com nossa campanha no Catarse.
Ajude Revestrés a continuar produzindo jornalismo independente: catarse.me/apoierevestres