Desde que Eva convenceu Adão a cair em tentação no paraíso, o mundo nunca mais foi o mesmo. O protagonismo feminino, que pode até parecer coisa moderna, na verdade está há milhares de anos na história das culturas e das gerações. De alguma forma, mesmo em segundo plano, a mulher sempre esteve por aí, povoando o imaginário, a criação e a arte.
O “sexo frágil” de Erasmo Carlos, a mulher de 40 que cantou Roberto. As mulheres estão todas lá nas músicas de Chico Buarque – da prostituta à dona de casa, da menina delicada à mulher fatal. Da Geni odiada pela hipocrisia da sociedade à esposa resignada, que faz doces para o marido, com açúcar, com afeto.
Para não se prender apenas as canções, podemos trazer Tieta, Gabriela e Dona Flor de Jorge Amado, o baiano que imortalizou os tipos femininos, para fortalecer o time das mulheres livres, desejantes e atraentes. As personagens cheias de malícia, ambição e caráter duvidoso, sempre bem descritas por Machado de Assis. Saindo dos livros, um pulo na sétima arte nos remete de cara as divas do cinema americano, Lolita de Stanley Kubrick, a bonequinha de luxo de Truman Capote, as pin-ups da cultura pop. Personagens fictícios que podem nos levar a ilusão de que as mulheres apenas inspiram a ação masculina – nas artes plásticas, as mulheres aparecem como sinônimo do belo da estatuária grega e egípcia ao Renascimento – mas vale lembrar que, na história da arte, muitas mulheres foram agente do processo: Frida Kahlo, Dora Maar, Anita Malfatti, Tarsila do Amaral, só para citar algumas.
A arte exemplifica, compara, constata e registra as contradições dos processos sociais, uma vez que, sem que se perceba, mexe com os nossos sentidos, intriga, inquieta. E como qualquer agente social, acompanha a evolução cultural do mundo e, muitas vezes, está na vanguarda. Não é a toa que hoje seja possível observar muito menos exemplares de “Amélias” e “mulheres de Atenas” e mais “Carmens” e “Olgas”, consideradas transgressoras em suas gerações – se a vida imita a arte, e a arte imita a vida, a mudança da presença feminina em ambas foi chacoalhada de maneira bem significativa: os tempos trouxeram revoluções socioculturais antes impensadas, aprimoramentos jurídicos e novos paradigmas tecnológicos que transformaram os papeis sociais em relação aos gêneros. O estereótipo do homem forte, viril e poderoso, e da mulher frágil, delicada e submissa, ao que parece, está ficando mesmo para trás.
Para ajudar a refletir sobre essas mudanças, e, especialmente sobre o feminino na produção artística, Revestrés convocou alguns nomes que usam a arte como expressão para falar de gênero, liberdade sexual, beleza e feminino. A arte de cunho político, que levanta bandeira, protesta, ou aquela que apenas tenta trazer um pouco de sutileza e sensibilidade a um mundo tão fortemente dominado por ideais machistas e herdeiros de uma sociedade patriarcal. Ouvimos ainda especialistas que estudam corpo, sexualidade e gênero, para entender como a arte reflete as mudanças sobre o tema, bem como a aceitação social da diversidade e da liberdade que passam a se estabelecer.
Todas as mulheres do mundo
“Toda mulher quer ser amada/ toda mulher quer ser feliz/ toda mulher se faz de coitada/ toda mulher é meio Leila Diniz”, canta Rita Lee na música “Todas as mulheres do mundo”. E são em todas elas que Vicente de Paula, estudante de Comunicação Social se inspira para criar as peças da página Alegrias de uma calcinha.
“O nome da saga surgiu de um brinde que uma amiga francesa, Juliette Veckens, me ensinou e que a tradução é algo como: Felicidades, saúde, paz no seu coração, alegria em sua calcinha e sexo para qualquer ocasião”, explica o autor da saga virtual.
Criada em janeiro de 2013, a página no Facebook registra 120 peças que expressam a liberdade sexual feminina de forma bem – humorada. Feita em papel branco comum, canetas pretas e coloridas, o desenho é digitalizado e vai ao ar sem maiores retoques.
Para além do perfeccionismo, a preocupação é outra: “A página é uma saga de resistência contra tudo que diz o que deve ser uma boa mulher. É uma resistência alegre, que vem de salto alto, batom e cílio postiço. A calcinha é uma metonímia da mulher. Uma espécie de signo, mas que vai além da erotização e representa a graça, ousadia e a intimidade feminina”, diz o autor.
A ideia de fazer a saga, conta Vicente, veio a partir de conversas entre amigas e familiares que se sentiam violentadas e reprimidas. “Desmistificar estes preconceitos e estes formatos das relações afetivas e sexuais por meio de desenhos leves é uma maneira de vivenciar a liberdade. Como homem, jamais sentirei na pele os problemas que as mulheres enfrentam, elas são protagonistas”, defende.
Juntamente com o publicitário Gustavo Athayde, Vicente de Paula criou a arte local da Marcha das Vadias, movimento feminista que teve adesão no Piauí nos anos de 2012 e 2013. Virou identidade visual. “A marcha reforça a liberdade feminina que frequentemente é violada. Qualquer tipo de arte potencializa a mensagem de um movimento social. Com ela, ficamos mais atentos e fortes e mostramos que a luta pode ter um lado lúdico e se tornar mais leve”.
Há calcinhas que se referem à campanha “Eu não mereço ser estuprada”, que mobilizou milhares de mulheres nas redes sociais ou “Somos todos seres humanos”, relacionada ao episódio de racismo com o jogador Daniel Alves. “Por isso, encaro a arte como um ato político que pode agilizar importantes transformações”, coloca.
Apesar de a referência essencial ser a mulher, existem desenhos de homens compondo a saga das calcinhas. “Os homens são mais presos à ideia de provedor, pegador e opressor. Eles precisam libertar o pensamento de que existe mulher certa para isso ou errada para aquilo”.
Quando adolescente, fez os primeiros desenhos inspirado em mulheres, mas sentia vergonha de mostrá–los aos colegas de classe. Patrícia Galvão, Pagú é a grande figura vanguardista em quem busca referências para pintar seus rabiscos. No teatro, descobriu manifestações cênicas para extravasar seu lado feminino e feminista.
De saia, batom vermelho, purpurina e barba comprida, Vicente é personagem de si mesmo. “O importante é que homens e mulheres assumam identidades que condizem com sua necessidade de ser. Para isso, muitas vezes é necessário romper com alguns padrões”.
Ser um homem feminino
Colônia do Piauí, sertão do estado. Travesti eleita a cargo político. Providencia transporte aos doentes, marca consultas e cirurgias, encaminha a documentação de aposentados e divorciados mesmo quando não é candidata. Desprovida de educação formal, mas cheia de lições. Esta é Kátia Tapety, que deu vida ao documentário “Kátia, o filme”, da cineasta parnaibana Karla Holanda.
“Ser um homem feminino/ não fere o meu lado masculino”, cantou Pepeu Gomes na música “Masculino e feminino” de 1983. E é dessa versatilidade que trata o filme. Premiado no For Rainbow Festival, em Fortaleza e 8ª Mostra Cinema e Direitos Humanos na América do Sul, entre outros festivais, o longa mostrou que o feminino vai além do fisiológico.
“É comum associar o sertão nordestino a atrasos generalizados e ideias negativas. Quando a história de Kátia emerge, ela desloca esse olhar. Esse deslocamento foi o que me motivou a levar adiante um filme com essa figura”, diz Karla Holanda, cineasta e professora do Instituto de Artes e Design da Universidade Federal de Juiz de Fora, MG.
Kátia é o próprio protagonismo. Sem discurso pronto, sua simplicidade tem autonomia. “Costumo dizer que Kátia pratica uma militância silenciosa porque não é à base de discursos articulados, mas totalmente fundamentada em sua vivência. Vi pessoas com ranços machistas e preconceituosos ficarem sem argumentos diante de Kátia. Não é à toa que o movimento LGBT no Brasil lhe tem tanto respeito: ela não é discurso, ela é prática”, diz Karla Holanda.
Na carreira cinematográfica há cerca de 20 anos, Karla Holanda relembra cineastas expressivas na história da filmografia brasileira, cujos nomes são pouco lembrados: Helena Solberg e Tereza Trautman. A primeira, com mais de 30 filmes e 50 anos de carreira teve pouca ressonância até Banana is my business (1995), que narra a vida e carreira de Carmem Miranda; a segunda, estreou na direção em 1973, aos 22 anos de idade, com o longa metragem Os homens que eu tive, ficção em que uma mulher concilia seu casamento com outros amantes. O filme logo foi censurado, assim como outros projetos da diretora.
“Era evidente que o foco da censura era contra a ousadia do protagonismo feminino que o filme trazia e que transgredia modelos de família naturalizados. Isso ilustra um cerceamento indireto que o cinema de autoria feminina vivencia ao longo da história”, explica Karla.
Autora do livro Documentário nordestino: mapeamento, história e análise (2008), Karla Holanda encontra no movimento a mudança. “O importante é sair do lugar, tentar, mesmo que erre; expressar, mesmo que sem jeito. E isso eu tenho procurado: fazer. Mesmo que seja uma gota no oceano, é de gotas que se faz o oceano. O tempo da história é lento, mas anda”, completa.
Agora é que são elas
Rodeada de mulheres: Mãe, irmãs, primas e tias. Na faculdade de Psicologia, ora artigo, ora desenho. Mas no papel, tela e tecido: todas as mulheres que se pode ser. “A figura feminina teve um papel fundamental na minha formação e é algo que me inspira desde criança”, diz Bayá, artista visual que imprime em seu traço as múltiplas faces femininas.
“As figuras femininas são uma representação, mas não uma personificação. Não são pessoas que tento retratar. Meus desenhos são personagens, que têm vida própria, que vão acumulando características, que se constroem e se desconstroem. Às vezes, apresentam uma visão erótica, outras vezes lúdica, outras vezes melancólica, mas sempre com alguma reverência e celebração à beleza, à delicadeza e a fúria do feminino”, explica ela.
Bayá participou de exposições no Salão de Artes Plásticas de Teresina, Ecomoda, Galeria Christofoletti e Urban Arts, mas também é conhecida dos muros e das ruas. “Tenho um lado anarquista incorrigível”, declara. Da aquarela à tinta acrílica, testa o papel, a folha seca e a madeira. “Meu maior professor é o experimento e a observação”.
Psicóloga por formação, Bayá constrói em sua arte formas que dão resultados inesperados. “Certa vez, fui procurada por uma pessoa que queria presentear a filha e comprar algo desenvolvido por mim. A filha sofria de depressão e, em alguns meses, o meu trabalho foi a única coisa que a comoveu, de acordo com a mãe. Naquele momento, eu entendi que a arte era o meu modo mais puro e profundo de me conectar com as pessoas”, conta.
Frida Kahlo, Dora Maar, Anita Malfatti, Tarsila do Amaral. Algumas, à sombra de um homem, amantes ou esposas; outras, ofuscadas pela história ou oprimidas pela escolarização. “Levando em conta esse histórico, fico feliz em ver o lugar da mulher na arte e acho importantíssimo poder ser, de certa forma, agente desse processo”, conclui.
E do barro, fez-se a mulher?
Ele, de Crateús, no Ceará e ela, de Angical, no Piauí. Ele ensaiava as primeiras peças desde criança com cera de abelha e ela, ignorou a aptidão até depois de formada. Stênio Ferreira é escultor, mas não produz sozinho. Conta com a parceria dentro de casa: a esposa, Reisinha Barbosa. Também escultora, os dois são casados há 20 anos, mas só de algum tempo para cá resolveram trabalhar juntos. Formou – se contadora, mas largou o trabalho burocrático para trabalhar na arte. “A gente elabora tudo juntos. Discutimos, riscamos e pensamos na modelagem. Ele está direto na argila e eu entro na finalização, acabamento e detalhes”, diz ela.
Reisinha teve Liz Medeiros como instrutora de artes e incentivadora na escola. “Certo dia, nós a reencontramos e ela me aconselhou a seguir carreira no ateliê. Montamos nosso espaço, pedi contas do trabalho e me dediquei à criação e vendas. Estava ansiosa para contá-la, pena que não deu tempo”, lamenta a perda da professora que faleceu em 2003.
As primeiras peças de formas femininas que criaram eram magras e padronizadas, mas não despertavam maior interesse. “Fazia mulheres acinturadas, mas demoravam muito a sair”, explica Stênio Ferreira. Foi convidado para participar de mostra na loja Olik. “Para essa exposição comecei a criar a série das gordinhas”, diz. Extravasaram os padrões e, as primeiras peças foram denominadas de As Banhistas (2009), bonecas de argila com curvas mais avolumadas em trajes de banho.
Deu certo e, no ano seguinte, a série As Gordinhas (2010) foi lançada em tamanho maior com apenas 15 peças únicas, que chegaram a ser vendidas para Fortaleza, Recife e São Paulo. “As mulheres gordinhas ficavam lisonjeadas, se identificam e se reconhecem”, diz o escultor.
A dupla resolveu topar outro desafio: “Eu as coloquei gordas na ponta do pé. Foi complicado fazer com que a estrutura se sustentasse na base sem risco de quebrar”, explica o escultor. Chamadas de As Bailarinas (2011), foram apenas quatro peças únicas, que levaram meses para serem feitas. “Tem coisas que conseguimos resolver rápido, já outras não”, diz Reisinha Barbosa. Seguem sem pressa: “A arte não é a vontade da gente”, diz ela.
Guerra dos sexos
A aparição do tema dos gêneros e da sexualidade na produção artística mundial, sobretudo no cinema e mesmo nas novelas de TV, com que tem abordado a homossexualidade, por exemplo, é crescente e atinge cada vez mais a um número maior de pessoas. Mas, ao contrário do que se pensa, não é novidade: há quadros, gravuras, esculturas do século passado que já representavam o amor entre iguais e a erotização de dois corpos do mesmo gênero.
“A arte que representa a sexualidade não hetero parece, dentro do olhar normativo da heterossexualidade, algo transgressor. Há gravuras de Picasso, espetacularmente lindas, de duas mulheres se amando, por exemplo”, comenta Andrea Rufino, ginecologista e pesquisadora que integra o Núcleo Pesquisa Sobre Sexualidade, Gênero e Direitos Humanos da Universidade Estadual do Piauí – Uespi.
Diante de tantas possibilidades, é importante compreender a distinção entre gênero e sexo, como ressalta Andrea: “O sexo refere-se à anatomia dicotômica dos corpos e essas características são, a princípio, usadas para definir os gêneros masculino e feminino”, comenta a professora. “No entanto, sabemos hoje que o gênero é uma categoria culturalmente construída, associada à identidade, independente do sexo biológico”.
Se ser masculino ou feminino é algo que nos é “ensinado”, nada estranho, portanto, que tantos homens, ao longo da história, tenham pintado, cantado, escrito os desejos, as ânsias e as sensações femininas em suas produções artísticas. “Foi naturalizado em nós pensarmos dessa forma: um corpo masculino deve pensar de uma maneira masculina e o feminino de maneira feminina. Acontece que as qualidades que representam o feminino e o masculino estão em todas as pessoas, independente da anatomia dos corpos ou do gênero que a sociedade construiu”, aponta a pesquisadora. “A gente tá falando de percepção de mundo, de uma sensibilidade que vai além de como a gente é ensinado a ser e características que estão associadas a nós enquanto seres humanos. Algo que é particular, individual e que pode ter influência da cultura, da educação, do ambiente que você teve de estimulação para isso”.
Regina Navarro Lins, psicanalista e escritora especializada em relacionamentos amorosos, aponta que o criador autêntico habita todas as condições humanas, seja homem ou mulher. “A diferença entre os sexos é anatômica e fisiológica, o resto é produto de cada cultura ou grupo social”, ressalta Navarro. “Tanto o homem como a mulher podem ser fortes e fracos, corajosos e medrosos, agressivos e dóceis, passivos e ativos, dependendo do momento e das características que predominam em cada um, independente do sexo”, defende. “Insistir em manter os conceitos de feminino e masculino é prejudicial a ambos os sexos por limitar as pessoas, aprisionando-as a estereótipos”.
A quebra das barreiras de gênero, de certo modo, começa com a dissolução da família tradicional, que garantia certa “ordem social”, no fim da Segunda Guerra, e evolui para a proclamação da igualdade entre os sexos: a presença feminina no mercado de trabalho, a redução da taxa de fecundidade e o aumento dos divórcios. Um grande marco para tudo isso é a pílula contraceptiva, inventada nos anos 1950, que deu à mulher a possibilidade de arbitrar sobre seu próprio corpo. Na legislação, a mulher não é mais vista como um apêndice do homem. Tempos depois, a homossexualidade deixa de integrar o código penal para entrar no código civil. Caminhamos para o fim do gênero? “Hoje, a grande questão é justamente, a contestação da existência de gêneros”, afirma Navarro. “A arte está apenas antecipando o debate”.
(Publicada na edição #15, agosto/setembro de 2014)