Quando tinha 10 anos, Antônio Bispo dos Santos começou a adestrar bois. Foi assim que aprendeu: adestrar e colonizar são a mesma coisa. “Tanto o adestrador quanto o colonizador começam por desterritorializar o ente atacado, quebrando-lhe a identidade, impondo-lhe novos modos de vida e colocando-lhe outro nome”. Essa história – e muitas outras – estão no novo livro de Bispo, “A terra dá, a terra quer”, lançamento em co-edição por UBU/PISEAGRAMA.

Antônio Bispo dos Santos, Nêgo Bispo | Foto: Divulgação

Antônio Bispo dos Santos, 64 anos, nasceu no vale do rio Berlengas, Piauí. Lavrador, formou-se com os saberes de mestras e mestres do Quilombo Saco Curtume, no município de São João do Piauí, e foi o primeiro de sua família a ser alfabetizado. Liderança quilombola e com atuação política nos movimentos de luta pela terra, Nêgo Bispo, como também é conhecido, é autor de vários artigos, poemas e do livro “Colonização, Quilombos: modos e significações” (UnB/Incti, 2015), e tem realizado conferências e cursos por todo o Brasil, sendo professor convidado do Encontro de Saberes da UnB/Incti e da Formação Transversal em Saberes Tradicionais da UFMG.

Aparentemente simples, as histórias narradas por Bispo não têm nada de pueris. Constituem, na verdade, uma forma desconcertante de contrapor o modo de vida quilombola ao da sociedade colonialista. “A terra dá, a terra quer” registra de modo inédito muitos dos saberes transmitidos pela oralidade – esta também sob ataque no mundo colonizado. Ao contar o modo de vida nos quilombos, Bispo vai fazendo o leitor promover comparações com modos de vida contemporâneos naturalizados. Ele oferece um olhar crítico e afiado ao que parece inescapável: o agronegócio, a vida nas cidades, a arquitetura, o desenvolvimento. Aliás, sobre desenvolvimento, Bispo diz: “Nós vamos dizer que o desenvolvimento desconecta […] e botar para ferrar com a palavra desenvolvimento. Porque a palavra boa é envolvimento”.

Com as gírias, “o povo da favela fala português na frente do inimigo sem que ele entenda. A favela adestrou a língua”.

É isso o que Bispo faz: aposta em semear novas palavras – ou palavras que andam esquecidas. Assim, apresenta potentes traduções para questões cruciais do nosso tempo. Conhecedor do adestramento, aprendeu que denominar é uma estratégia colonizadora e de tentativa de apagamento de memórias para que outras possam ser impostas. Para enfrentar esse adestramento, ensina: é preciso transformar as armas dos inimigos em defesa. Assim, passou a também denominar. Por isso rejeita “desenvolvimento” e prefere “envolvimento”.

No livro, Bispo vai propondo a sua guerra de denominações: “o jogo de contrariar as palavras coloniais como modo de enfraquecê-las”. Observa: é por isso que o povo da favela fala gírias e, ao fazer isso, estão recusando o adestramento. Eles “preenchem a língua portuguesa com palavras potentes que o próprio colonizador não entende. E, assim, falam português na frente do inimigo sem que ele entenda. A favela adestrou a língua, a enfeitiçou. Temos que enfeitiçar a língua”.

“Enquanto o povo da cidade se sentia muito importante, eu me sentia necessário. Eles, porém, não me viam como necessário, me viam como útil. Para eles eu era um serviçal. Eu era útil, mas poderia ser substituído.

Em uma de suas guerras de denominações, faz um contraponto inteligente e até emocionante entre as palavras “importante” e “necessário”, baseado na experiência de viver por cinco anos no Rio de Janeiro, em atividades de subemprego. Ele diz: “Enquanto o povo da cidade se sentia muito importante, eu, por minha vez, me sentia necessário. Eles, porém, não me viam como alguém necessário, me viam como alguém útil. Para eles eu era um servidor, um serviçal. Eu era útil, mas poderia ser substituído porque não era necessário. Percebi que o povo da cidade tinha relações de utilidade e importância, mas não tinha relações de necessidade. Para nós, a pessoa que é importante não é quase nada. É aquela pessoa que se acha ótima, mas não serve. O termo que tem valor para nós é
necessário. Há pessoas que são necessárias e há pessoas que são importantes. As pessoas que são importantes
acham que as outras pessoas existem para servi-las. As pessoas necessárias são diferentes, são pessoas que fazem falta. Pessoas que precisam estar presentes, de quem se vai atrás.”

E não se iluda: a proposta de uma guerra de denominações para enfrentar um modo de vida mercantilizado e que ruma ao insustentável, não se trata de um pensamento binário. O pensamento de Bispo é fronteiriço, compreende o mundo de forma “diversal”, integrado por uma variedade de ecossistemas, idiomas, espécies e reinos. “O mundo é grande e tem lugar para todo mundo. O mundo é redondo exatamente para as pessoas não se atropelarem”, ensina.

“Para nós, a pessoa importante não é quase nada. É aquela pessoa que se acha ótima, mas não serve. O termo que tem valor para nós é necessário. As pessoas necessárias são as que fazem falta, de quem se vai atrás.”

O quilombola sabe que o que temos a enfrentar é de grande monta. “Acabou um modo de vida, o modo de vida do lugar onde eu nasci”, admite, contando que vem de um lugar onde havia uma infinidade de plantas, matas cheias de frutos e animais e uma vida amplamente compartilhada. “Acabaram com o mundo que as pessoas conheciam e o transformaram no mundo do eucalipto e da soja”. Assertivo, ele considera que mais inescapável que a ideia de “desenvolvimento”, é a direção, aparentemente sem freios e irrefletida que esse tal desenvolvimento tem proposto. De suas preocupações não escapam os megaprojetos de financiamento de energias, apresentadas como renováveis, escamoteando danos à natureza. “Ainda tem gente que diz que o colonialismo acabou! Levaram o pau-brasil e agora, quando não há mais essa madeira para levar, levam o vento e o sol. Aqui no Piauí, no Rio Grande do Norte e em outros estados do Nordeste, temos dunas no litoral. Com os enormes cataventos colocados, a direção dos ventos vai mudar. Qual será o impacto disso sobre as dunas? Em alguns lugares o vento vai ficar mais fraco e em outros, mais forte. As pessoas certamente não estão atentas a isso. Estão roubando o nosso vento, estão roubando o
nosso sol. Isso não é brincadeira.” Bispo alerta: “Quando tiramos a comida da onça e aparecemos na frente dela, o que ela vai fazer?”

Com os enormes cataventos colocados, a direção dos ventos vai mudar. Qual será o impacto disso sobre as dunas? As pessoas não estão atentas a isso. E isso não é brincadeira.

“A terra dá, a terra quer”, livro inescapável de Bispo, é ilustrado por Santídio Pereira, 27 anos. Ele nasceu no povoado de Curral Comprido, município de Isaías Coelho, interior do Piauí. Migrou para São Paulo ainda criança e ingressou no Instituto Acaia, dedicado a crianças e adolescentes residentes próximos ao Ceagesp, onde iniciou sua
prática artística nos ateliês do instituto. A xilogravura é o principal suporte de sua pesquisa visual.

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“A terra dá, a terra quer”
Antônio Bispo dos Santos

Coedição: UBU PISEAGRAMA

Ilustrações: Santídio Pereira

Brochura 112 p.
R$ 54,90
Lançamento: maio de 2023.

 

 

 

 

 

PARA CONHECER MAIS:

Nêgo Bispo foi entrevistado pela Revestrés#50.

A entrevista está disponível na íntegra em nosso site. Acesse livremente:

Começo, meio e começo