por Adriano Lobão Aragão

Uma mistura de cachorra, girafa e zebra. Assim se define Sofia Mariutti na orelha de seu livro Tem um gato no frontispício (Baião, 2024), desenvolvido em parceria com o ilustrador (ou melhor, leão com patinhas de formiga) Vitor Rocha. Um convite ao manuseio, ao convívio com o objeto livro e seus jargões editoriais de maneira muito divertida e que desperta bastante a imaginação. Nesse sentido, o lúdico é sua matéria essencial, seja no texto sintético e descontraído ou nas ilustrações, que evocam os traços e as cores características de desenhos infantis.

Em frases breves e bem humoradas, sempre remetendo a animais, a linguagem utilizada é voltada para a autorreferencialidade que se desdobra para além do próprio livro. Ao mencionar os bichos, indicando as páginas e os lugares que ocupam (e podem estar bem antes ou depois; daí o mencionado convite ao manuseio), seja a lagarta na lombada, o elefante na quarta capa ou, é claro, o gato no frontispício, somos levados ludicamente a percorrer o livro para constatar se tal bicho efetivamente se encontra no local indicado.

Questionada sobre o processo de elaboração do livro, Sofia respondeu que “o texto tinha a ideia de brincar com essas palavras malucas, colofão, frontispício, e fazer um jogo de procurar e achar bichos pelas partes do livro, para conhecê-las melhor. Mas a pergunta final, ‘e no miolo, o que é que tem?’ era muito genuína, porque eu não tinha ideia do que ia ter no miolo. Cada página ia falar de alguma parte do livro, mas o que ia estar ilustrado nessa página? Aí, junto com o Vitor Rocha, as editoras, designer e produtora gráfica da Baião, tivemos essa ideia de contar na história ilustrada como um livro é feito. E aí apareceram os personagens – o cachorro escreve, as zebras editam, o leão ilustra, e assim por diante. Foi um processo muito maluco com vários nós na cabeça no meio do caminho!

Tivemos essa ideia de contar na história ilustrada como um livro é feito. E aí apareceram os personagens – o cachorro escreve, as zebras editam, o leão ilustra, e assim por diante.” – Sofia Mariutti

O Glossário e o Quem é quem (quem trabalha para os livros existirem) reúnem a maior parte dos textos, funcionando como uma espécie de apêndice da obra em si. Talvez até poderiam ser mais distribuídos ao longo do livro, mas creio que, da maneira como foram concebidos, podem funcionar muito bem como um convite para os pequenos leitores desenvolverem também os seus desenhos, retratando por exemplo as zebras (editoras), cachorras (autoras), dentre outros bichos envolvidos na feitura dos livros. E, particularmente, admiro bastante obras que implícita e espontaneamente convidam o leitor a desenvolver atividades (escrita, reescrita, ilustração etc.). Dessa maneira, Tem um gato no frontispício é uma obra rica de possíveis desdobramentos, contribuindo bastante para o trabalho de leitura com e para crianças.

Nas palavras de Sofia, “a gente pensou em bichos que teriam afinidade com aquela atividade – tipo a coruja, que é sabidamente sabichona (desde o corujão do ursinho Pooh), a gente achou que fazia sentido ser a bibliotecária. Os polvos e lulas, que têm muitos braços, estão comandando as máquinas na gráfica. Mas alguns bichos entraram mais pelo som, então nem sempre faz o maior sentido do mundo.

Vitor Rocha é ilustrador e designer. Tem formação pela Escola Panamericana de Artes e Design. Estudou letras na Universidade de São Paulo (USP) e foi bolsista no Programa de Licenciaturas Internacionais (PLI), graduando-se na Sorbonne Université. Sobre seu trabalho em Tem um gato no frontispício, Vitor menciona que “cada livro tem sua linguagem, se compõe de um universo próprio, com seus próprios códigos, rimas e brincadeiras. Por isso gosto de me aproximar de um projeto como esse imaginando quais são as regras que podem compor esse novo mundo. Pro Tem um gato, me parecia fazer sentido chamar a atenção pras cores que compõem o sistema de impressão (CMYK, ciano, magenta, amarelo e preto). Como o livro é bastante horizontal, me vi influenciado em minhas pesquisas por pergaminhos japoneses, onde a leitura visual é mais contínua e onde a noção de profundidade se compõe pela sobreposição de planos. Claro que existem técnicas e manias que reaparecem no meu trabalho: gosto de chamar a atenção para os materiais, de alertar o leitor de que existe papel, matéria no desenho, isso dá esse efeito tortinho e (acredito mais espontâneo) pra ilustração.

Sofia Mariutti escreve, traduz e edita. Autora dos livros de poemas A orca no avião (Patuá, 2017) e Abrir a boca da cobra (Círculo de Poemas, 2023), além do ilustrado Vamos desenhar palavras escritas?, em parceira com Yara Kono (Companhia das Letrinhas, 2022). Pelo visto, o lúdico e a referência aos bichos costumam estar bem presentes em sua escrita, como um frontispício, que “fica mais perto da frente do que do precipício. Também é conhecido como folha de rosto […]. Ah, e às vezes a gente encontra um gato, um lindo gato no frontispício.”

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Referências

MARIUTTI, Sofia. ROCHA, Vitor. Tem um gato no frontispício. São Paulo: Baião, 2024.

MARIUTTI, Sofia. Depoimento concedido a Adriano Lobão Aragão. 4 jul. 2024.

ROCHA, Vitor. Depoimento concedido a Adriano Lobão Aragão. 6 jul. 2024.

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ADRIANO LOBÃO ARAGÃO é professor de língua portuguesa do Instituto Federal do Piauí. Sua poesia reunida encontra-se no livro Os tempos e a forma (2017). www.adrianolobao.com.br