(Participaram desta entrevista: André Gonçalves, Samária Andrade, Maurício Pokemon, Nayara Felizardo e Francisco Magalhães – Jornalista)

Podia ser uma tarde divertida. Era isso, em parte, o que tínhamos em mente naquela sexta-feira quando nos encontramos com o entrevistado da segunda edição de Revestrés. João Cláudio Moreno, 44 anos, é o humorista piauiense de maior sucesso no Brasil. Já foi contratado da Rede Globo de Televisão, participou de programas de Chico Anysio, teve personagem na Escolinha do Professor Raimundo, virou celebridade interpretando Caretano Zeloso (numa homenagem a Caetano Veloso), foi capa do Jornal do Brasil, motivo de charge na Folha de São Paulo, recebeu prêmio de humorista revelação no Faustão (1996) e fez shows que lotaram teatros no Rio de Janeiro – cidade para onde se mudou em 1994, aos 28 anos, e onde viveu até 2002.

Tudo isso para alguém que saiu de Piripiri, no Piauí: “eu era um rapaz do interior, pobre, periférico. Eu era invisível e fiquei não só visível, como notório!” – ele diz, enquanto a gente se pergunta: o que pode tornar as pessoas tão semelhantes e tão únicas? O piripiriense poderia apenas ter cumprido um destino comum a muitos garotos do interior que vêm para a capital em busca de estudos. Ele chegou a Teresina aos 14 anos e foi para o colégio Diocesano. Lá conheceu pessoas como o Padre Florêncio, professor de química, influência intelectual e religiosa, e que mais tarde seria um dos 100 personagens do humorista (todos inspirados em pessoas reais). João Cláudio morava no Parque Piauí, na casa de uma irmã. “Eu dormia na sala e acordava cedo, antes que os outros começassem a passar por baixo da rede”.

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Foto: Maurício Pokemon

Mais tarde estudou Jornalismo na Universidade Federal do Piauí. “Eu queria ser padre. Mas saí do seminário, entrei no curso de comunicação e comecei a descobrir todas as possibilidades que a vida universitária oferece, inclusive a ausência de Deus”. A confissão, que poderia parecer simplória ou nostálgica, em João Cláudio é sincera e deixa entrever a tempestade que há por trás do riso.

Entre os muitos papéis que já exerceu ele foi presidente da Fundação Cepro – Instituto de Pesquisas Econômicas e Sociais do Estado do Piauí e teve programas de humor e de entrevistas em canais locais de televisão. Ainda muito jovem, aos 23 anos, dirigiu a Fundação Cultural Monsenhor Chaves, em Teresina, entidade que faz as vezes de uma secretaria municipal de cultura. Filiou-se ao Partido Comunista (PCdoB), pelo qual foi eleito vereador de Teresina em 2004, com 5 mil e 57 votos.

“As pessoas em Teresina me adulam demais!” – dispara. “É uma babação escancarada. Eu gosto mesmo é da critica. A crítica é que faz a gente crescer”.  Depois, rígido consigo mesmo, completa: “Eu fui o artista mais ajudado da história do mundo! Se eu não fui pra frente o problema tava comigo. Chico Anysio, Sônia de Paula, Patrícia (Mellody, sua ex-mulher, mãe de sua filha Clara) me ajudaram muito. Os políticos, os empresários do Piauí. Seu João Claudino eu nem sei quanto gastou comigo. Eu entrei com muita força no Rio de Janeiro. Aí, no auge dos negócios, eu abandonei tudo e voltei pra cá”.

João Cláudio mora em Teresina em um apartamento de 600 metros quadrados e uma larga varanda, em frente ao rio Poty. Ele avisa que está pagando o leasing do imóvel e por isso não pode parar de fazer shows. Mesmo fora da grande mídia nacional, sua agenda é cheia, com espetáculos no Ceará, Bahia, Pernambuco, Pará, São Paulo. Duas empregadas e um motorista são seus companheiros mais constantes. A fama de ser uma pessoa difícil também vira alvo de suas ironias: “quando dizem para as pessoas que moram comigo que eu fui uma pessoa difícil, eles dizem: ´e era pior do que isso?`”. Mas garante que melhorou muito, enquanto o mundo piorou. Admite que alimentou as excentricidades que se conta a seu respeito, mas hoje, mais maduro, deseja desfazê-las.

Continua crítico, por vezes contraditório, sempre inteligente e provocador. Mas, segundo ele, não ambiciona mais ser Paulo Francis. No entanto, continua a não poupar ninguém, nem a Igreja Católica, apesar de sua inegável admiração. “O Ratzinger é o maior teólogo desse século!”, diz sobre o papa Bento XVI. “Já Leonardo Boff é um embuste!”. Perguntado sobre o fato de a Igreja ter aberto os arquivos secretos do Vaticano, afirma: “isso é só marketing. Só abriram o que era conveniente mostrar”.

Foi muito difícil voltar (ao Piauí). Eu fui voltando aos poucos. Tudo o que eu queria era voltar mas eu tinha medo de desapontar os outros

Quando confirmamos nosso encontro, João Claudio avisou: “vou esperar vocês com um café”. Não era brincadeira. A mesa estava posta com café preto, bolos, petas, pães, leite, sucos e xícaras de vários modelos e tamanhos diferentes. “Uma vez fiz um jantar pro Jesus Filho (empresário) e chamei alguém pra me ajudar com as regras de etiqueta. Ela queria que eu jogasse tudo fora e comprasse louça nova” – conta aos risos. Depois nos explica que tomar café para o piauiense é uma atitude cultural e política tanto quanto tomar chimarrão o é para o gaúcho. “O carioca não vai entender isso nunca. Aquele bule mexendo e a pessoa esperando o café quente, no calor maior do mundo!”.

Sentados em volta de sua grande mesa, rimos bastante. Mas também fomos levados a refletir sobre cultura, política, religião, mídia, o medo de “fazer sucesso” e a coragem com os tempos que João Cláudio classifica como “época decadente”.

“Vocês fazem perguntas difíceis!”, diz generoso, deixando-nos acreditar que conduzíamos a entrevista.

Podia ser uma tarde divertida. Foi muito mais do que isso.

***

Magalhães – O seu primeiro show no sul do país se chamava “Um Piauiense no Rio de Janeiro”. Existem muitas diferenças entre um piauiense e um carioca?

João Cláudio Moreno – Muito além de diferenças físicas ou geográficas, são distâncias psicológicas.  O sulista tem mais desapego, é mais descartável, mais veloz.  Lá a vida tem outro pique. Eles dramatizam menos, são mais amáveis, educados, embora mais superficiais. Nós somos mais lentos, mais rudes, brutos, mas mais sinceros. Eles convidam a gente pra almoçar… Uma vez eu achei que era mesmo pra ir e fui, e eles “ah, você veio?!”. Não era pra ir. Se o sujeito tiver uma piauiensidade muito enraizada, profunda, ele é muito diferente e as coisas lá são muito absurdas pra ele.

Magalhães – Você é uma pessoa bem humorada?

JCM – Não. Uma vez perguntei ao Albert Piauí por que o Pasquim não deu certo (referia-se ao período em que o Pasquim foi reeditado, em 2002) e o Albert disse: “rapaz, é porque era uma revista de humor feita pelo pessoal mais mal-humorado do mundo”(risos). E é mesmo, porque o Millor era amargo, ácido, cético.

Magalhães – Acho que deles o único que ficou um velho que não é mal-humorado foi o Ziraldo.

JCM – O Ziraldo tem um discurso construtivo. Já Caetano Veloso tem um discurso destrutivo, a crítica dele não vê esperança. O Chico Anysio tinha o discurso destrutivo. Mas sempre encerrava os shows com uma mensagem otimista. Eu tenho o discurso destrutivo. Tenho feito um esforço pra melhorar porque não adianta nada. Eu acho o pessimismo do Saramago um exemplo! Ele tem uma noção da tragédia na qual estamos inseridos, sabe que a gente procura suprir essa tragédia com entretenimento, conforto, tecnologia; que as pessoas não vão ter nome, essência – ele aponta para isso no livro Todos os Nomes – mas fala disso com uma tranquilidade admirável! O discurso dele não tem rancor, saudosismo. Um dia eu fui pegar um autógrafo dele e falei: “eu me identifico muito com o senhor porque o senhor é pessimista”. Aí ele disse: “O meu pessimismo é que vai salvar o mundo”. Quer dizer: ele é pessimista, mas acredita que o mundo se salva!

Samária – Seu show de 20 anos de humor, em 2010, teve um discurso marcadamente pessimista. A que você atribui isso: à maturidade?

JCM – Acho que eram as percepções daquele momento. Do começo ao fim eu falei sobre morte, e morte é um assunto que a gente evita. Uma vez eu disse pro Padre Florêncio, meu confessor – “Do jeito que as coisas vão, com assalto, calamidades, esse mercado desenfreado… A religião é mercado, tudo é mercado,…”. Eu disse: “Num mundo desses é até um prêmio morrer!”. Aí o Padre Florêncio olhou pra mim e disse: “Sempre foi. Ou você esqueceu?”.

Magalhães – Mas entre o berço e a sepultura dá pra gente sorrir, se divertir?

JCM – É pra sorrir inclusive chorando. O ideal é esse.

Magalhães – Você tem uma ligação de longas datas com a cultura produzida no Piauí, na região. Como você vê a cultura em Teresina hoje?

JCM – Pouca gente sabe, mas há pouco tempo, eu fui novamente convidado para dirigir a Fundação Monsenhor Chaves. Eu recusei porque achava que a cultura tava bem entregue nas mãos do Cineas Santos. O Elmano concordou. Disse que Cineas não era simpático a um grupo de artistas e eu disse “ninguém vai ser”. É uma clientela dificílima de agradar, os artistas. Mas acabaram tirando o Cineas. O que eu acho hoje é que não só a aparelhagem de cultura, mas tudo o que se chamava Estado, foi desmontado e se esvaiu. Não temos mais um Estado com ideia de responsabilidade social. Até os secretários, antigamente, eram bem escolhidos, hoje qualquer pessoa pode ser. Nós estamos vivendo a falência do Estado. O último governador que tivemos foi Freitas Neto. O Mão Santa foi importante no sentido da democratização do acesso ao poder, mas ali já foi o desmantelo do Estado administrativo. Veio o Wellington Dias e eu esperava uma reação, mas não aconteceu. O Estado tá sem regra, sem rumo.

André – E esse desmonte do que se pensava sobre Estado não parece uma coisa local, é no mundo todo. Há algo meio filosófico ou proposital?

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Nayara – Essa sua percepção desencantada sobre política é o que fez você abandonar a carreira de político?

JCM – Eu nunca abandonei a carreira política. Eu simplesmente não acho obrigatório ser candidato todo ano. Eu gosto de política, o que eu não gosto é de eleição, porque eleição é onde acontecem as piores coisas e os candidatos ficam comprometidos. Se o povo brasileiro se interessasse por política um terço do que se interessa por futebol, a nossa história era outra. O brasileiro se interessa por eleição, não por política. As coisas estão ficando imorais. Oitenta mil reais de verba de gabinete para um deputado estadual é um escândalo! E todo mundo engole isso. E depois o deputado sai da Assembleia e vai pro Tribunal de Contas. Aí ele vai cobrar os prefeitos, criar dificuldades, colher vantagens… E nessas e outras é que avião explode e que acontecem essas coisas.

André – Existe uma corrente que acredita que o humor cumpre uma função social, de alívio das dores do dia a dia. Já outra corrente que acha que o humor é alienante.  Onde você acha que o humor está no meio disso?

JCM –O humor nunca é ruim. A rapidez do brasileiro em fazer piada de tudo é fantástica, porque a válvula de escape também é uma função social. Eu acho perigoso é quando a válvula de escape deixa de ser o humor e passa a ser a religião. Há a proliferação dessas seitas neopentecostais, que brigam entre si por mercado, não por conteúdo evangélico… Um povo que acorda cedo, trabalha oito horas por dia, ganha mal e só serve pra pagar imposto e não ter direito a nada, ele vai pra onde?  Se tiver o mínimo de cultura, sociabilidade, vai para o humor. Mas muitas vezes tá indo para o lado mais perigoso do fanatismo religioso. A religião é importante e necessária. A deturpação dela, não.

Samária – Quando Chico Anysio morreu, você publicou no Facebook que o humor está morrendo faz tempo. A que tipo de humor você se refere?

JCM – O humor do Chico Anysio, do Millor, do Veríssimo é muito inteligente. E quando o Veríssimo for embora, quem fica? Eu, o Amauri Jucá, o Dirceu Andrade? Os playboys do CQC e do Pânico? Não dá pra comparar! O humor tá morrendo como a filosofia morreu, como Chico Buarque disse “a canção morreu”. E é uma tristeza a gente ouvir isso do Chico Buarque.

André – O  CQC acredita num tipo de humor que não se importa com o politicamente incorreto. Essa visão de não perder a piada, independente do assunto, é uma tentação que muda com a experiência?

JCM – O pessoal do CQC não tem vivência para sustentar a notoriedade que alcançou. Virar celebridade de uma hora pra outra é ridículo. No humor tudo é possível, desde que faça rir. Dizer que vai comer o bebê da Vanessa Camargo fez alguém rir? Não! É repulsivo.  Aqui em Teresina eu já tentei ser Paulo Francis, Magalhães tentou (jornalista, que participa dessa entrevista), Cláudio Barros tentou (jornalista). Mas Teresina não comporta ninguém tentando ser Paulo Francis porque é provinciana, pequena, e nós dependemos demais uns dos outros, até afetivamente. Já no macro espaço do Brasil você pode ter uma independência maior para falar o que quiser. Não chega a ser um Paulo Francis porque é mais difícil, mas pode ser um Diogo Mainardi e sair atirando em todo mundo. Olha como é difícil ser Paulo Francis no Piauí: eu fui pago pelo Sebrae pra ir ao Piauí- Sampa, quando voltei botei no meu twitter: “Piauí- Sampa é a maior farra de dinheiro público”. E é. Eles levam o pessoal daqui pra se ver lá, as pessoas saem daqui pra comer paçoca em São Paulo. O evento não significa nada, não tem público paulista, as palestras são um fiasco, vai um grupo de jornalistas daqui pra falar bem nos jornais daqui. Isso é uma autotapeação institucional que nos atrasa muito. Eles se zangaram e nunca mais me chamaram.

Nayara – E sobre a escola de humor inteligente: ela não deixou alunos que continuem o legado?

JCM– À altura dos seus mestres não. Deixou muita gente, mas os tempos também são outros. Aquele pessoal todo veio do rádio, que era uma excelente escola, e depois de uma TV ao vivo… Hoje é tudo diferente, temos muita concorrência, outra linguagem, outro público, a democratização do acesso é boa, mas acho que democratizaram por baixo. A gente vê uma crise de criatividade na TV. Mas também há coisas novas surgindo, só que não têm apelo na mídia.

Samária – E o que tem apelo na mídia?

JCM – A mídia não se preocupa com nada que seja profundo. Não interessa o que você é, interessa o que ela quer que você seja. Muitas vezes eu sou chamado pela grande mídia, mas quando faço uma proposta que pode ser bonita, verdadeira, muitas vezes eles dizem “isso não vende, não interessa”.

Magalhães – O Dominguinhos lhe chama de “João Doido”. Você teme envelhecer mal, devido a seu temperamento?

JCM – Eu temia. Hoje eu não temo mais porque o mundo piorou muito, mas eu melhorei. Eu me gosto mais, me entendo mais, reclamo menos, me conformo mais, sou mais feliz, mais paciente.

Nayara – E existiu algum episódio que provocou essa mudança?

JCM – Eu abri os olhos. Não foi “do nada”. Isso é um trabalho existencial intenso, de leituras, pensamentos, buscas, e de repente você se dá conta de que a vida é uma mistura de glórias, dor e prazer. Às vezes as três coisas estão juntas, às vezes separadas. Isso é pra mim e pra todo mundo. Um nasce negro, outro gay, com defeito físico, ou tem um filho viciado, não conhece o pai. Todo mundo tem a sua tragédia pessoal e todo mundo é obrigado a fazer de sua tragédia pessoal a sua história de vida.

Samária – Você fala com convicção que era uma pessoa difícil. Qual  a sua maior dificuldade?

JCM– Eu sou uma pessoa simples feita de pequenas coisas complexas. Tudo é complexo. A sexualidade da gente, a ideologia. A minha maior dificuldade é que eu sou uma pessoa que ainda se recusa a ser amada. A dificuldade não está em amar, está em deixar-se ser amado. No evangelho tem uma passagem que me deixava intrigado: João, o discípulo amado, não foi o escolhido pra ser o papa. O escolhido foi Pedro – o mais contraditório, difícil de discernir, impulsivo… Depois eu entendi que isso era pra mostrar que o papa é falível, que a Igreja é feita de pessoas com fraquezas, e não apenas de santos. E aí eu percebi que Pedro é um personagem fantástico, o remorso dele é tão grande quanto o de Judas, mas ao invés de se enforcar, ele confiou que podia melhorar. Então é isso: Eu to melhorando. João deixou-se amar sem reservas. E isso é perigoso. Você nunca conhece verdadeiramente a outra pessoa, até porque você não conhece nem a si próprio! Há sempre um lado obscuro, coisas inferiores que se revelam. Eu não sou melhor que um criminoso que é capaz de matar e fazer as piores barbaridades.

Nayara – Você é muito religioso. O que da Igreja Católica você admira e o que você abomina?

JCM – Há simbolismos maravilhosos, e o símbolo é muito mais do que ele se propõe a ser.  A eucaristia, por exemplo… Quem não compreender o abismo que há entre o homem e Deus não vai entender a eucaristia, não vai entender a função de Jesus. A igreja existe pra levar a gente até Jesus e não Jesus existe pra levar a gente até a Igreja.  Outro: a história de Jesus no deserto é fundamental para entendermos que a tentação existe na vida de todo mundo. E a tentação pode ser muito sutil, pode se esconder atrás de uma formulação boa, como quando o diabo diz “transforma essas pedras em pão”… A tentação de Barrabás, de Judas, era a ascensão social – era o PT da época. Todos os teólogos que se dedicaram ao crescimento do PT se desapontaram depois, vide Leonardo Boff, Frei Betto, porque depois fica tudo igual, se cai na velha tentação de todo ser humano. A fragilidade humana é que a corrupção não é privilégio de partido, é própria do homem.

Nayara- E o que você repudia na Igreja católica?

JCM – O excesso de organicidade, uma apatia, uma linguagem que não chega às pessoas. Não gosto do exagero nas liturgias, promessas, superstições, é muita oração pra decorar… O conteúdo vai se perdendo e se esquece a essência.

Magalhães – Você é uma referência no Piauí. Esse encargo é pesado, dá uma sensação de que você puxa a arte piauiense?

JCM – Eu não tenho essa pretensão. E nem poderia, até porque eu me considero um artista muito acomodado. Uma das cobranças que eu me faço é que eu deveria ter sido mais corajoso. Aqui no Piauí basta você fazer qualquer coisa que já vira referência. Eu mesmo fui ser humorista em decorrência da carência da terra. Eu nunca na vida me imaginei humorista, porque eu achava que ser humorista era uma coisa inatingível, o filé mignon da inteligência, mas aí começaram a me chamar de humorista, sem eu saber, sem dar licença, sem eu perceber. Um dia falaram “o humorista João Cláudio” e eu, “meu Deus, sou eu!”. Aí eu fui pensar: numa terra em que o maior intelectual é o Clidenor, o maior jornalista é o Kenard, não tem nada eu ser humorista! A Clara mesmo, minha filha, escreveu um livro na infância – que eu acho uma graça, inclusive – depois escreveu um romance, mais denso e tal, mas é uma adolescente, e então a mídia fez o estardalhaço: “a escritora Clara!”

Aqui no Piauí basta você fazer qualquer coisa que já vira referência. Eu mesmo fui ser humorista em decorrência da carência da terra

André – E que escritores você gosta de ler? (João Cláudio tem cerca de cinco mil livros).

JCM – Sempre tive compulsão de juntar livros, para exibi-los, conviver com eles, dá a impressão de que sou um grande leitor, mas nunca fui. Até porque pra ser um grande leitor precisa ter disciplina, coisa que nunca tive. Mas uma biblioteca pode salvar uma vida. Numa noite angustiante eu entro aqui, abro um livro e tem uma frase que me salva do suicídio. E os livros não são pra ser lidos, são pra ser consultados, acariciados. Gosto dos meus livros de teologia, política, literatura brasileira, estrangeira, e meu autor preferido continua sendo Monteiro Lobato. Acho o melhor de todos! Nunca li nenhum livro dele, mas comprei todos e recomendo.

André – E hoje o Piauí já tem mais referências intelectuais do que quando você virou humorista?

JCM – Eu não vi em nenhum lugar do mundo pessoas mais inteligentes que no Piauí. Aqui tem gente que se destaca em tecnologia, sociologia, medicina, educação, artes; mas muitas vezes o resto do mundo não fica sabendo. Apesar da globalização, as coisas ainda ficam aqui, no nosso isolamento geográfico e psicológico. Temos intelectuais de diferentes estampas. Acho o Albert Piauí um grande intelectual, e ele não tem compromisso nenhum com a intelectualidade, nem sei se é um grande leitor. O Paulo Nunes já é um intelectual de outro tipo, um homem que engoliu citações, antologias, e tem uma maneira de ser, tem disciplina de leitura.

André – Na sua última entrevista no Jô Soares você disse que o piauiense é bairrista. Essa sua afirmação sobre o piauiense estar entre as pessoas mais inteligentes do mundo revela um bairrismo?

JCM – Sou tão bairrista que um dia tava no Rio de Janeiro e ouvi na TV “e na capital do mundo, uma exposição de presépios”, eu corri. O que tá acontecendo em Piripiri? E a matéria era em Nova York. Por isso que eu não consegui ser outra coisa que não fosse piauiense. Um amigo meu tinha um apartamento ao lado do Copacabana Pálace, quando o Rolling Stones veio cantar ele alugou uma vaga por 25 mil reais por pessoa. Pra ver os Rolling Stones eu cobraria 100 mil reais. Quando vejo aqueles espetáculos pirotécnicos de Copacabana, eu penso: isso aqui é bonito, mas eu prefiro uma bucha de Bombril em Piripiri. Isso é um bairrismo primitivo, grotesco, mas o piauiense não se apercebe como bairrista. Ele acha que o pernambucano é, que o cearense é; porque o piauiense está sufocado por 300 anos de uma humilhação pública dolorosa, cultural, política. Às vezes, as pessoas pensam que o piauiense se ofende facilmente, mas são 300 anos de bullyng.

Samária– Você sente preconceito por ser piauiense?

JCM – Eu nunca senti frontalmente porque eu era um ingênuo, e faço questão de continuar sendo. Vejo na ingenuidade uma certa reserva de mercado da pureza. Mas eu tinha outros complexos, me achava feio, pequeno, baixo, achava que tinha um sotaque forte, não tinha jeito de sulista. Hoje não tenho mais nada disso, não quero mais ser sulista.

Magalhães – Você sempre está de volta a Piripiri, no sentido não só físico, mas existencial?

JCM – Eu insisto em procurar uma Piripiri que não existe mais. É uma insistência que todos nós temos, como pra Mallarmé e Anatole France: só o passado existe. E o passado não tem um grau de comparação. O que me assusta é como passou depressa: minha filha já tem 18 anos, eu já vou fazer 45! Eu me pergunto: o que foi que eu fiz esse tempo todo? Onde eu estava?

Samária – E quando você se pergunta isso, que resposta se dá?

JCM – Eu acho que eu fiquei rodando como um peru. Eu não sei… Os outros é que têm noção do que você fez.

Samária – Você se cobra por ter voltado ao Piauí?

JCM – Não me cobro, mas foi muito difícil voltar. Eu fui voltando aos poucos, não queria que as pessoas soubessem. Eu voltei pra Fortaleza, e só depois pra cá. Tudo o que eu queria era voltar, mas eu tinha medo de desapontar os outros. Hoje eu tenho uma visão muito diferente sobre “ser artista”. Acho que a minha visão era muito romântica. Hoje sou mais lúcido: não podemos nos esquecer que há 22 anos eu vivo disso. Eu digo que sou acomodado porque é da índole do piauiense a acomodação. Somos descendentes de vaqueiro, cuja atividade no Piauí é exclusivamente soltar o gado. O vaqueiro fica sentado, ruminando com o gado, numa certa letargia. A nossa ambição é comer, dormir, amanhã ter o que comer… Eu só faço um show quando acaba o dinheiro daquele que eu fiz. Nessa cultura de competitividade, que é estimulada, sem que haja igualdade, como é que se pode competir desigualmente em tudo?! Eu não gosto de competir, por isso que eu não gosto de eleição. Os critérios para eleger uma pessoa são os mais obscuros. Um caso legítimo é o da Francisca Trindade, que foi de associação de moradores até a Câmara Federal. Mas isso é raro. O resto é compra de voto deslavada. E à medida que aumentou a consciência popular, piorou, porque o povo diz “se a televisão é comprada, o juiz é comprado, o Ministério Publico é comprado, as pesquisas são compradas, por que só eu tenho que ser de graça?”.

Magalhães– Você foi o primeiro artista piauiense a lotar teatro. Isso marcou sua carreira?

JCM – Claro!  A minha experiência era muito pouca e a vida mudou bruscamente. Eu tenho medo do sucesso. Eu não fiz um sucesso estrondoso porque eu não quis. O sucesso que eu quero é relativo mesmo, que me possibilite sobreviver, sem precisar estar na grande mídia. Eu tenho outros interesses: sou político, tenho a vivência de igreja, tenho uma escola, uma função intelectual. Em determinados momentos eu fui artista, político e intelectual, e a postura que cada atividade dessas exige é muito diferente. O artista é mais livre; o político tem uma práxis e um tempo de decisão muito rápidos; o intelectual é mais lento… O intelectual pode sufocar o artista. Hoje eu tenho mais propensão à vida de ler, com a vagareza que isso exige, do que de ser um artista, viver nos aeroportos. Eu não tenho vontade nenhuma de pegar avião, fazer show em São Paulo e nem acho que nenhum de nós vai mais se firmar pelo nome nesses tempos de hoje. Com essa profusão de celebridades que surgem, está tudo confuso. Nunca precisamos tanto fazer pausas, e nunca corremos tanto. O mundo enlouqueceu fingindo normalidade.

Samária – Você usa muito as redes sociais…

JCM – A internet foi uma solução existencial pra mim, porque permite que eu me comunique sem me relacionar. Eu prefiro responder e-mail do que atender telefone. O telefone já é um relacionamento desgastante.

André – O assédio das pessoas o incomoda ou você aprendeu a conviver com ele?

JCM– Aprendi. E pra isso foi fundamental a passagem pela Câmara Municipal. Às vezes a gente é abordado com carinho, às vezes da forma mais indiscreta possível. É desgastante. Fazer um supermercado, que poderia levar 20 minutos, pra mim leva duas horas. Você tem que cumprimentar, apertar a mão, tirar foto… Eu fico imaginando essas pessoas muito famosas mesmo! Mas a maioria das pessoas é muito carinhosa. O povo do Piauí é muito bom comigo, ele diz de mim mais do que eu sou.

Samária – Você reconhece influência sua em Amauri Jucá e Dirceu Andrade?

JCM – A primeira vez que eu vi um show do Amauri me incomodou muito. Eu nunca tinha visto ele num palco. Era eu: a voz, as inflexões, paradas, sequência, personagens… Então eu fui no camarim e falei “incomodou muito te ver no palco”. E me perguntaram: “incomodou onde, no coração, cabeça?”. E eu: “não, no bolso” (risos). O Dirceu tem mais personalidade, ele tem influência minha, mas se libertou. O Amauri tem potencial para libertar-se. Acho que a carga genética contribui também, ele é meu sobrinho, foi praticamente criado por mim.

Magalhães – Hoje o que lhe deixa feliz?

JCM – Se eu for responder vou cair na vala comum da pieguice, mas um almoço na minha casa com amigos, uma viagem de carro pelo sertão – o sertão tem um bafo que me transporta, uma conversa boa com minha filha. Eu não tenho prazer em quase nada mundano, eu não gosto de sair à noite pra ir a boates, bares, porque eu volto desapontado com o que vejo.

Magalhães – Você é um artista multimídia antes desse nome virar moda. O que mais você ainda deseja fazer no mundo das artes?

JCM – Eu gostaria de ser um virtuose do acordeon, um grande bailarino, um Gene Kelly, eu tenho inveja dessas coisas. Tenho inveja do Veríssimo, do jeito que ele escreve, do Pavarotti… Eu não tenho inveja do Tony Trindade.  Eu queria ser bonito como o Richard Gere, eu não queria ser bonito como o Ciro Nogueira, não.

André – Você é otimista quanto ao futuro do Piauí?

JCM– O Piauí tem um compromisso de originalidade que ainda vai se impor. O potencial do Piauí é muito maior do que a gente imagina.

(Entrevista publicada na Revestrés#02 – Maio/Junho 2012)