Participaram desta entrevista: André Gonçalves, Maurício Pokemon, Wellington Soares, Samária Andrade e Carmem Lúcia Ribeiro (convidada. Ela é militante do Grupo Matizes, Yalorixa de Xangô, defensora dos direitos humanos e advogada popular). Texto e edição: Samária Andrade. Fotos: Maurício Pokemon.

“E por que haverias de querer minha alma na tua cama?”. Os versos de Hilda Hilst, considerada uma das maiores escritoras de poesia erótica no Brasil, tratam do amor carnal, mas também de valores espirituais. “Disse palavras líquidas, deleitosas, ásperas, obscenas, porque era assim que gostávamos. […] E te repito: por que haverias de querer minha alma na tua cama?” A admiração que Hilst desperta – ainda que chamada de obscena e incompreendida por parte do público e crítica – pode ser popularmente explicada pela expressão “sensual sem ser vulgar”. Ou, de outra forma: porque ela consegue andar com habilidade em terreno onde muitos derrapam. Porque pousa pés de pluma – suave coisa nenhuma – onde muitos são elefante em loja de cristal. Mas por que, quase fechando duas décadas do século XXI, continua difícil falar sobre sexo? E por que costuma ser mais difícil para a mulher? – e as dificuldades não se resumem a questões estéticas.

Foto: Maurício Pokemon

Para a médica ginecologista e sexóloga Andréa Cronemberger Rufino, professora de Medicina da UESPI (Universidade Estadual do Piauí), na disciplina de ginecologia, sexo é natural e “gozar é muito bom, né?”. Como Hilda Hilst, ela é pés de pluma – suave coisa nenhuma (não se deixe enganar por sua voz leve e seu sorriso acolhedor) – onde muitos são elefante. Andréa fala com franqueza e a conversa flui, mesmo passeando entre temas nem sempre consensuais como práticas e orientações sexuais.

Mas nem sempre foi fácil. Aos 51 anos, ela conta que foi adolescente nos anos de 1980 em Teresina. Quando achou que faria grandes descobertas sexuais, sua geração foi surpreendida pela AIDS e o que isso acarretou de repressão aos comportamentos. Dedicou-se aos estudos, primeiro da medicina (UFPI – Universidade Federal do Piauí), depois ginecologia, com atuação em sexologia. Queria compreender o que era ao mesmo tempo motivo de prazer e criatividade, mas também de dores e violências: “A vivência do sexo nos constitui em vários aspectos: como a gente se expressa, como fala, como escolhe se vestir, como se relaciona, como estabelece nossos afetos”.

Andréa se casou com o também médico ginecologista e professor de Medicina da UESPI, Alberto Madeiro, que conheceu durante residência médica em São Paulo e com quem tem cinco filhos – quatro mulheres, sendo as duas mais novas, gêmeas.

O extenso currículo acadêmico inclui um doutorado em Ciências pela UNIFESP (Universidade Federal de São Paulo) e um Pós-Doutorado pela UnB (Universidade de Brasília), com estágio pós-doutoral no Centre de Reserche de Medicine, em Paris. Andréa soma a isso a atuação prática em consultório e uma militância na defesa dos direitos humanos, com destaque para os direitos sexuais da mulher, ainda que também atenda homens.

Nos últimos anos, tem se dedicado a estudar e atender de modo especial mulheres lésbicas e bissexuais. Nesse campo, tem pesquisado desde o atendimento médico à violência praticada contra esses grupos. A atuação lhe rendeu o título de Madrinha da 14ª Parada da Diversidade (2015), evento organizado pelo Grupo Matizes, em Teresina, como uma das ações de combate aos preconceitos de gênero e a lgbtfobia.

Mas nem tudo é festa. A médica paga um preço por seus posicionamentos corajosos – “Em 2019 ainda é transgressor falar de clitóris!”. Quando um coletivo de mulheres feministas a convidou para o evento “Oficina de empoderamento de Buceta”, a ocorrer na UFPI, Andréa foi hostilizada por grupos conservadores e sofreu ameaças nas redes sociais. O evento manteve o nome, mas por precaução, deixou de ser realizado na universidade e ocorreu no auditório do Hospital Getúlio Vargas. A médica recebeu apoio de organizações feministas e LGBTs, que se manifestaram por notas públicas.

Depois de evitar as redes sociais por um tempo, Andréa se manifestou ativamente no período pré-eleitoral, contrária às declarações machistas e homofóbicas do então candidato a presidente Jair Bolsonaro. Fechou o ano de 2018 com uma foto bonita, jogando um beijo desinibido, deixando à mostra tatuagens e afirmando: “Vem 2019. Tô pronta!”

Para essa entrevista, ela nos recebe em seu consultório, que mais parece um espaço de terapia, certamente influência da formação em Psicanálise e Psicodrama (Escola Paulista de Psicodrama). Não há mesa entre paciente e a médica, mas sofás, poltronas e almofadas, onde nos acomodamos à meia luz.

Naquele ambiente, a primeira confissão vem da doutora: “Sabem, eu fiquei pensando: o que vocês querem de mim?”.

Na despedida, devolvo uma confissão: “Eu perdi bem”. Referia-me àquela Parada da Diversidade. Eu concorria com Andréa pelo título de madrinha, numa votação aberta ao público, via internet.  E quanto ao meu desejo de ganhar? Para isso volto a Hilda Hilst, para quem o desejo nem sempre precisa ser concreto para lhe trazer felicidade: “Então não sabes? Incorpóreo é o desejo”.

Samária – Tem uma fala de Woody Allen que diz: “há duas coisas muito importantes na vida: uma é sexo, a outra eu não me lembro”. Sexo é, de fato, tão importante? 

Andréa Cronemberger Rufino – É. É fundamental (fala com ênfase). Eu posso argumentar usando a ciência, recorrendo a Kinsey (sexólogo americano), que entrevistou 17 mil homens e mulheres, nos anos 1940 e 1950, e constatou a importância do sexo para essas pessoas. Tem também a pesquisa de Shere Hite (sexóloga e feminista teuto-americana). No Brasil, a professora Carmita Abdo (psiquiatra e sexóloga) ouviu sete mil homens e mulheres. Todas essas pesquisas tiveram amostras representativas e perguntas diretas. E constataram que para cerca de 98% dos pesquisados, sexo é importante. E temos muitos outros marcos: a Organização Mundial de Saúde (OMS) relaciona sexo com qualidade de vida. A vivência do sexo nos constitui em vários aspectos: como a gente se expressa, como fala, como escolhe se vestir, como se relaciona, como estabelece nossos afetos. Ela extrapola a prática sexual para algo maior, que é a sexualidade. As pessoas são mais infelizes – no trabalho, nos relacionamentos – quando a vida sexual delas não as realiza. Agora, isso não quer dizer que alguém que não faz sexo e está bem assim, seja um problema. A ideia de que todos temos que estar fazendo sexo – porque se a gente não fizer sexo não será feliz – também não é correta. 

Samária – As pessoas assexuadas (que não se interessam por sexo) devem procurar tratamento médico ou o que elas sentem não é algo a ser corrigido? 

ACR – Têm pessoas que, por uma série de circunstâncias ou por determinados momentos na vida, não consideram importante a vivência do sexo. Se a gente pensar que a sexualidade é mais do que a prática do sexo, e partindo do pressuposto freudiano de que a libido é pulsão de vida e envolve espontaneidade, criatividade, desejo de vida e de alegria – a gente vai dizer que não vive sem sexo. Mas essa energia pode estar sendo canalizada para outras áreas. Ela pode se dirigir para a expressão da afetividade e a prática sexual, mas também para a criação artística ou para viver e desempenhar quaisquer atividades. As pessoas que se reconhecem assexuadas ainda descrevem essa condição com variantes: ausência total de atração sexual por outra pessoa associada à ausência de prática sexual. Ou ausência de atração sexual, mas com prática masturbatória. Ou ainda ausência de atração sexual, mas com interesse amoroso e afetivo por uma parceria. A pessoa assexuada não tem nenhuma doença a ser corrigida. Nós temos que considerar o seguinte pressuposto: “Como é para você?”, “Ah, eu não tô fazendo sexo, não sinto vontade, não me faz falta” – então não tem problema. Quem vai dizer se a ausência de sexo é um problema é o próprio indivíduo. 

A mulher tem que se olhar sob a ótica da sexualidade feminina e se perguntar: como eu sinto, o que me dá prazer, de que jeito eu gosto? A gente não teve educação para isso.

Samária – Qual o maior motivo de procura das mulheres no seu consultório?  

ACR – São queixas relacionadas ao desejo sexual, mulheres que falam que não têm desejo, sustentadas pela percepção de que precisam ter desejo igual ao de seu companheiro, “ah, eu sou cobrada por meu marido porque não tenho desejo”. Ou seja: a ótica com a qual ela enxerga a falta de desejo é pelo viés masculino, aquele desejo da testosterona, da flecha no alvo, da resposta sexual rápida. E muitas pensam: será que eu estou doente, meus hormônios estão normais, meu anticoncepcional está me impedindo? Eu digo para essas mulheres: o anticoncepcional foi criado para nos libertar, pra gente poder dizer: “Uau! Eu vou transar pra gozar! Vou me dar bem!”. E as mulheres de agora olham para o anticoncepcional e se sentem presas?! Pensam: “esse anticoncepcional tira meu desejo”? Ora, tá aqui o teu desejo, ó (aponta para a cabeça). A mulher tem que se olhar sob a ótica da sexualidade feminina e se perguntar: como eu sinto, o que me dá prazer, de que jeito eu gosto? A gente não teve educação para isso. Ao contrário: tivemos uma educação castrada, ansiosa, que diz “não pode pegar aí, tá errado”. Por que posso tocar no meu braço e não posso no meu genital?  É meu corpo, como qualquer outra parte do corpo!  

Maurício – Desde a escola as meninas são “treinadas” a serem mais quietas e os meninos mais libertos. O que a escola pode fazer hoje? Que papel ela tem?  

ACR – A escola só reproduz a família e muitos professores têm medo dos pais. Em um trabalho sobre sexualidade na escola, ouvi o relato de uma professora de português que, aproveitando o dia dos namorados, pediu para adolescentes de ensino médio que escrevessem uma carta de amor, experimentando o estilo literário. Os pais fizeram um levante: disseram que a professora estava incitando a sexualidade das crianças. A escola recebe a responsabilidade de dar uma educação sexual – que os pais não dão – mas é completamente controlada pelas famílias. A educação sexual precisa se dar nas casas, nas famílias, a gente precisa quebrar esse paradigma. Quiçá as próximas gerações consigam, porque sexo precisa ser tratado com naturalidade.   

Samaria – Em relação aos homens, o que mais os motiva a procurar um@ sexólog@?   

ACR – Me procuram mais com disfunção erétil, que é impeditiva da prática sexual. E numa faixa etária jovem, de menos de quarenta anos. 

Samária – Nesses casos, os remédios estimulantes sexuais são aconselháveis? 

ACR – Depende da situação. A gente vê homens jovens preocupados com um sexo muito performático. Tem aí um tanto de machismo e o viés da pornografia, que diz: sexo tem que ser desse jeito. Me dizem “o homem do filme fica três horas em ereção”; “Sim, mas quantos azuizinhos você acha que ele tomou?” Os medicamentos para ereção podem ter um uso que eu chamo de “recreativo”. Ou seja: o homem o usa para dar um up na relação, sem que ele tenha nenhuma disfunção sexual. Em geral, são homens jovens que desejam ter várias práticas sexuais em um curto espaço de tempo e temem não conseguir ereções suficientemente rijas para impressionar a parceria sexual. Em medicina a gente nunca diz “sempre” ou “nunca”. Tudo pode. Mas é muito improvável que um rapaz de menos de 40 anos tenha uma disfunção erétil de causa orgânica. Ela vai se dar por causas psicogênicas (fenômenos somáticos com origem psíquica): receio de não dar conta daquele enfrentamento, ansiedade de desempenho muito alto, medo de se envolver. Outra queixa é a ejaculação rápida. Nesses casos, é comum que a queixa apareça com as mulheres: “olha, eu não consigo gozar”. Quando você vai investigar, a questão é que o parceiro goza muito rápido e o envolvimento sexual morre. Quando a mulher percebe que a dificuldade está com o parceiro, pode convencê-lo a procurar ajuda. O ideal é a investigação. Muitas vezes esse rapaz não procura ajuda porque tem uma resistência grande.   

Samária – Dentro das preocupações performáticas, nossa cultura ocidental superestima o tamanho do pênis? 

ACR – Sim. Eu salvei em meu celular uma pesquisa sobre a média do tamanho dos pênis em vários países do mundo e as vezes mostro para alguns pacientes, para provar que essa preocupação não faz sentido. A expectativa de tamanho e grossura do pênis está relacionada a uma cultura falocêntrica, que diz que o pênis maior vai dar mais prazer ou deixar esse homem mais viril. Também há uma preocupação com tempo de ereção. Ora, o pênis foi feito para ficar ereto, perder a ereção, ficar ereto, perder a ereção, quantas vezes for necessário. Eu digo: “Se ficar ereto mais de seis horas, necrosa!” (risos). Então, deixa o bichinho endurecer e amolecer, se importe menos com ele, deixe ele livre que vai dar certo. Se a gente puder brincar um pouco, é isso que eu aconselho. 

A expectativa de tamanho e grossura do pênis está relacionada a uma cultura falocêntrica, que diz que o pênis maior vai dar mais prazer ou deixar esse homem mais viril. Essa preocupação não faz sentido.

André – Num contexto onde a família não fala sobre sexo e a escola só pode falar do jeito que a família quer, qual a importância de conteúdos na mídia que abordem assuntos relativos ao sexo? E quanto à super oferta de pornografia na internet: até onde ela pode ser positiva ou prejudicial? 

ACR – Todas as possibilidades de se falar sobre sexualidade de uma maneira natural, desmistificando crenças, são importantes e podem ser transformadoras para muitas pessoas. Quanto à pornografia, o acesso ficou mais fácil com a internet, tanto para homens como para mulheres. Eu me questiono sobre um possível prejuízo. Talvez o prejuízo esteja quando se investe na vivência virtual e se abandona a presencial. Que mundo virtual é esse? Será que ele pode substituir um encontro entre pessoas, ao vivo e a cores, a construção de relacionamentos? O virtual pode trazer prejuízo quando esvazia a pessoa da vontade de vir para o real. Porque no mundo real nós vamos falhar, vamos criar expectativas, deixar de corresponder a essas expectativas. Isso dá um trabalho… (suspira), mas é importante. E na tela do computador fica mais fácil. Acho que a pornografia, como vendida para o sexo masculino, é prejudicial no sentido de “ensinar um jeito de fazer sexo”. Muitos vão tentar reproduzir aquilo e surgem frustrações. Atendi uma mulher que disse: “Doutora, eu tenho que ejacular”. “Mas com o corpo da mulher não acontece isso”. “Acontece sim! Meu namorado me mostrou um vídeo e disse que eu tenho que fazer aquilo”, “Pois traga esse vídeo para eu ver”.  Ela trouxe e era uma mulher que tinha incontinência urinária durante a prática sexual. Então se constrói um modelo que vai ser prejudicial para homens e mulheres. E a gente tem pouca pornografia ou erotismo produzido “para” mulheres. Mas temos bons exemplos, como o Desnude, que mostrava sonhos eróticos sob a perspectiva das mulheres (Série de televisão produzida pela Conspiração Filmes e exibida pelo GNT entre 5 e 16 de março de 2018, sendo a primeira série brasileira criada e produzida apenas por mulheres).  Tem também a Erika Lust, diretora de cinema, pioneira da chamada pornografia feminista (Lust estreou seu primeiro filme, o curta metragem explícito The Good Girl, em 2004. O filme foi publicado gratuitamente na internet e teve mais de dois milhões de cópias baixadas no primeiro mês. Atualmente Lust exibe curtas explícitos na plataforma XConfessions, com filmes produzidos a partir de relatos enviados por pessoas anonimamente). Então, na questão da pornografia, é importante mostrar o viés que falta: a pornografia feita para mulheres. (Faz pequena pausa e continua) Vocês já estão vendo que eu não acho a pornografia uma coisa ruim, né? (risos). Acho que ela pode ser muito bem usada. 

André – O relato de sua paciente faz lembrar a pergunta do ano: “O que é golden shower?” (prática sexual em que um parceiro urina sobre o outro). Verificou-se um aumento de 700% nas buscas pelo termo no Google depois que a pergunta foi feita pelo presidente Jair Bolsonaro, no contexto de uma publicação em suas redes sociais no período de carnaval (fevereiro de 2019). A discussão derivou para a questão do que seria ou não normal em uma relação sexual.  Até que ponto existe o normal e o não normal numa relação consentida? E quem estabelece esse parâmetro de normalidade? 

ACR – Tem três aspectos indissociáveis na sexualidade. O primeiro é o aspecto biológico, que é a resposta sexual em si. Nesse aspecto, normal é seguir as quatro fases: desejo, excitação, orgasmo e resolução. O segundo aspecto é o psicológico. Nesse o normal é sentir-se adequado, satisfeito com a prática que realiza, seja ela qual for. Uma pessoa que tenha orgasmo com uma prática mas se sinta angustiada, por exemplo, com uma prática sexual anal, estaria anormal do ponto de vista psicológico. O terceiro aspecto é o sociocultural, em que normal é tudo aquilo que as regras sociais dizem que é. As parafilias – nome dado à anormalidade do ponto de vista sociocultural – dependem das convenções sociais, então elas são as que mais se modificam ao longo do tempo. Por exemplo: até 1983 era anormal ser homossexual. Assim, é impossível elaborar uma lista definitiva das parafilias. Hoje elas incluem o sadismo, o masoquismo, o voyeurismo, a pedofilia, o froterismo – quando a pessoa se esfrega em outra e ejacula. Ou seja, considerando esses três aspectos, normalidade, em sexualidade, é um conceito flexível. E vamos lembrar ainda que “normal” é uma palavra usada como sinônimo de correto – com todas as influências morais do que é normal e do que pode ser classificado como uma prática sexual correta.   

Considerar que nosso prazer depende da penetração peniana faz um grande mal a todas as pessoas, e em especial à sexualidade feminina.

André – Uma história que se tornou um clássico e que envolve esses aspectos diz respeito a relação do ex-presidente americano Bill Clinton com a então estagiária Monica Lewinsky. Clinton negou a relação e foi acusado de perjúrio (falso testemunho). Ele então se defendeu dessa acusação afirmando que houve “apenas sexo oral”. Somente pode ser definida como sexo a relação com os genitais? E como considerar outras práticas? 

ACR – A lógica do sexo penetrativo pênis-vagina é patriarcal, heterossexista e reforçada pela Igreja. Por essa lógica, tudo o que está ao redor do sexo penetrativo ganha menos importância ou não tem importância. Tanto que se chamam todas essas práticas sexuais de preliminares. Quando, em suas pesquisas, Kinsey coloca luz sobre as práticas que aquela população toda fazia, isso vai ser importante para que o sexo oral, a masturbação, o sexo entre pessoas do mesmo sexo, deixem de ser crimes. A lógica patriarcal do sexo penetrativo também diz que ele tem o objetivo da reprodução. Daí vem toda a criminalização e patologização que envolvia a homossexualidade. A lógica do sexo penetrativo é também machista, quando, na verdade, as mulheres não precisam disso. Os relatórios Shere Hite, na década de 1970, escandalizaram as pessoas ao publicizarem relatos de mulheres que diziam não precisar de penetração para ter prazer. Considerar que nosso prazer depende da penetração peniana faz um grande mal a todas as pessoas, e em especial à sexualidade feminina, que é submetida ao exercício de poder sob a lógica do gênero e a partir do masculino. A gente vem lutando para dizer: esse corpo é nosso, a gente tem direito ao prazer. Em 2019, depois de todas essas pesquisas e de tudo o que a gente já sabe, ainda é transgressor falar de clitóris! (fala com ênfase).   

Samária – Ainda dentro da lógica de “normalidade”, tem uma fala do sexólogo espanhol Manuel Lucas Matheu, da Academia Internacional de Sexologia Médica, que diz: “Somos monogâmicos porque somos pobres, mas nossa predisposição não é essa”. Como você vê isso? 

ACR – Assim como a expressão da sexualidade, a monogamia também está submetida às normas sociais – que dizem como você deve proceder para se relacionar – e há todo um discurso repetido – principalmente para as mulheres – sobre a monogamia feminina e um certo aceitamento de uma poligamia masculina, plenamente justificada biologicamente pela necessidade de disseminar suas sementes. Então é a cultura que nos diz e reforça essa questão normativa:  a monogamia, a monossexualidade. Por isso a bissexualidade assusta. Por que é bi. Ou seja: você é hétero, gay ou lésbica, mas não vem inventar de querer ser poli porque nós não vamos permitir. Em que caixinha a gente vai pôr você? Aí vêm as relações de poliamor e desarticulam completamente a lógica patriarcal. Toda a questão da monogamia está assentada na propriedade, na posse, na moral que nos constitui e diz que temos que seguir aquela regra.  É lamentável, mas tudo volta para o patriarcado, que explica a dominação. O sexo está sob essas regras. 

Maurício – A monogamia também é uma forma já dada, você já sabe como funciona, tem uma expectativa e imagina uma resposta. Já o poliamor e a relação aberta lhe tiram de um local de controle para um espaço de possível aprendizado. Podemos interpretar assim? 

ACR – Tudo aquilo que envolve a sexualidade é esse medo do descontrole, né? Em geral nós somos castrados. E a sexualidade remete a liberdade, a poder ser, a ser espontâneo, livre. Por que se diz que não existe o poliamor ou pansexualismo? Pelo viés do conservadorismo. O que eu não acredito na existência, não existe. No filme Histeria, a história do vibrador, tem uma frase atribuída à rainha Victória (Rainha do Reino Unido de 1837 até sua morte, em 1901) que teria dito sobre o desejo feminino: “não vi, não existe”. Então até hoje há temas sobre a sexualidade que são invisibilizados, que se pactua para não existirem, mas eles estão aqui entre nós. 

Carmem – As mulheres lésbicas e bissexuais foram por muito tempo um tema invisibilizado. Você tem uma importante pesquisa sobre a saúde dessas mulheres. Por que considerou que era importante pesquisar esse grupo e essa temática? 

ACR – Havia uma escassez de publicações sobre a sexualidade das mulheres que fazem sexo com mulheres. Havia me chamado a atenção a pesquisa de Leila Machado Coelho, psicóloga e especialista em sexualidade, que entre 1998 e 1999 estudou a saúde de mulheres lésbicas e bissexuais em São Paulo. Ela queria compreender a relação entre as mulheres lésbicas e bissexuais e seus ginecologistas, em que condições estava se dando o atendimento ginecológico. Esse estudo foi publicado em 2001 (Revista Tesseract) e até então era a única pesquisa brasileira que falava que essas mulheres tinham sido vulnerabilizadas em consultas com ginecologistas. Aquilo me motivou a procurar saber como isso estava ocorrendo nas outras regiões do Brasil. Então eu embarquei nessa pesquisa, escutando mulheres pouco visibilizadas. Foram 582 mulheres em uma pesquisa quantitativa e 33 mulheres entrevistadas em Manaus, São Paulo, Brasília, Porto Alegre e Teresina. E descobri muitos relatos duros de se ouvir… (faz pausa). A consulta ginecológica deveria ser um espaço acolhedor e, muitas vezes, é onde a mulher lésbica ou bissexual ouve dos médicos: “Eu não atendo sapatão”. Eu ouvi mulheres que foram para a consulta com quadro de infecção urinária, com dor, e a médica disse: “Espere lá fora que eu vou lhe atender”; e depois essa médica foi embora e deixou a paciente lá! (fala com ênfase). Outra mulher falou para a médica que tinha medo do exame, pois só fazia sexo com mulher, e mesmo assim a médica usou um espéculo vaginal (aparelho usado para exame ginecológico) não adequado para a anatomia daquela mulher. Uma médica escreveu com letras garrafais num prontuário: “HOMOSSEXUAL”. E fazem perguntas sem sentido, desabonadoras, agressivas, desqualificadoras … São relatos muito chocantes. E você os ouve em todas as regiões do Brasil, com violências praticadas por médicos e médicas indiscriminadamente. As mulheres lésbicas e bissexuais sofrem duplamente a violência: pela sexualidade e pelo gênero. 

A consulta ginecológica deveria ser um espaço acolhedor e, muitas vezes, é onde a mulher lésbica ou bissexual ouve dos médicos: “Eu não atendo sapatão”.

Carmem – Vários fatores atravessam lésbicas negras e fazem com que essas mulheres tenham menos acesso ao sistema de saúde. Que estratégias é possível usar para combater o racismo institucional e a Lgbtfobia dentro do sistema de saúde?   

ACR – Esse é um recorte importante. Naquela minha primeira grande pesquisa com mulheres lésbicas e bissexuais, eu fui muito criticada por mulheres desses grupos, porque não fiz o recorte de cor. E elas estavam certas em me criticar. Nós temos pesquisas no Brasil que mostram como a violência obstétrica atinge todas as mulheres, mas atinge muito mais as negras. O Ministério da Saúde fez uma campanha de enfrentamento à discriminação institucional (a campanha, veiculada em 2014, teve como slogan “Racismo faz mal à saúde. Denuncie!” e foi a primeira campanha publicitária que buscava envolver usuários e profissionais da rede pública de saúde na luta contra o racismo). Essa campanha foi muito mal recebida no meio médico, que negava que o racismo acontecia. Ora, é claro que acontece! E o combate é o enfrentamento, a denúncia, é botar luz sobre o que está acontecendo. Só assim a gente consegue alguma mudança. Eu já fui em muitos lugares do Brasil falando da saúde das mulheres lésbicas e bissexuais, mas não foi fácil ver esse tema sendo pautado em congressos, sendo aceito para publicação em livros. Então é não se calar, é denunciar, é não deixar cair no esquecimento.  

Samária – Além de pesquisar as questões relacionadas à saúde das mulheres lésbicas e bissexuais, você pesquisou a violência em si, praticada contra essas mulheres. O que mais lhe surpreendeu nessa pesquisa? 

ACR – Esses dados ainda não foram publicados, mas foram investigadas 464 mulheres do Brasil, com pesquisa quantitativa, por meio de questionário, e qualitativa, com entrevistas. A maior parte da violência que essas mulheres sofrem é discriminação, depois violência psicológica. Mas chegamos a um dado assustador: 15% dessas mulheres sofreram estupro corretivo! Se a primeira pesquisa foi dolorosa, essa tem entrevistas e descobertas que são um horror: de estupro a cárcere privado por dois anos para deixar de ser lésbica. E são violências que acontecem em todos os grupos sociais. Não tem um recorte por condição econômica, cor, idade, onde a violência não apareça de modo marcante.   

Wellington – Falando sobre violência, o Brasil tem grande número de crimes por homofobia e na maior quantidade deles as vítimas são homossexuais homens. Ainda que se possa considerar que isso reflete uma maior proporção de homossexuais homens, se comparada a lésbicas ou bissexuais, que outras explicações podemos encontrar para isso?    

ACR – Na verdade, existem poucos dados no Brasil sobre violência contra LGBTs. Entre as pesquisas mais conhecidas está o Relatório de Violência LGBTFóbica, do Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos (ministério extinto em 2016, após a posse de Michel Temer, e recriado em 2017. No Governo Bolsonaro, em 2019, ele passa a ter como titular a advogada e pastora evangélica Damares Alves). Esse relatório tem dados colhidos pelo disque 100 (de denúncias de violência), informações coletadas da Rede Trans e números do Grupo Gay da Bahia (GGB), que é a mais antiga entidade de defesa dos homossexuais no Brasil e que produz relatórios anuais sobre violência. Em todas as pesquisas os homens gays são os mais atingidos, seguidos de transexuais. Depois, em menor número, vêm as mulheres lésbicas e as pessoas bissexuais. Os crimes contra homens gays e transexuais estão mais relacionados a mortes violentas: passando carro por cima, com o uso de muitas facadas, por exemplo. A violência praticada contra lésbicas, como eu também constatei em minha pesquisa, é mais psicológica e de discriminação – o que não deixa de ser grave. Mas a homossexualidade masculina parece agredir mais a lógica machista e heterossexista.  Como é que você nasce homem e nega esse lugar privilegiado e quer se colocar em um local associado ao feminino, que está numa lógica de poder inferior? Então o homem gay parece ferir o pressuposto heterossexista e a violência vem com mais força. Os afetos das mulheres em público são socialmente mais aceitos, parecem amigas. Elas irão ser agredidas quando ferirem a lógica de gênero, por exemplo: uma mulher com aparência mais masculinizada. O gênero é o marcador da violência e os homens gays ou mulheres lésbicas que não ferem a lógica do gênero ficam mais invisíveis. 

André – Outro recorte de grupo diz respeito a pessoas trans. Como elas estão sendo atendidas e a que tipo de tratamento essas pessoas têm acesso nos serviços de saúde? 

ACR – Esse é um movimento bonito que tem ganhado maior visibilidade. Mas o acesso ainda é difícil. Se a formação médica não capacita o profissional para atender lésbicas e bissexuais, o que dirá para atender a população trans. Na transexualidade ocorre uma inversão tão grande da lógica de gênero que há uma resistência maior por parte dos profissionais de saúde em querer aprender. E o maior aprendizado é ouvir: as demandas, as queixas, como a pessoa se sente. A formação profissional, em nenhuma área da saúde, favorece o aprendizado para lidar com essas pessoas. No Piauí, já houve certa divulgação sobre a saúde da população trans. Junto ao CRM (Conselho Regional de Medicina), organizamos um fórum para discutir a saúde da população trans. Aconteceram algumas tentativas de abrir um ambulatório para atendimento de pessoas trans pelo sistema público de saúde, mas até agora foram tentativas frustradas. Já temos profissionais que se interessam, mas essa é uma população que não tem acesso a orientação, a medicação, a nada.  

Wellington – A psicanalista e escritora Regina Navarro Lins, palestrante em assuntos como relacionamentos afetivos e sexualidade (seu livro A Cama na Varanda tem mais de 50 mil cópias vendidas), acredita que a bissexualidade seja o sexo do futuro. Ela também percebe, em seu consultório, um aumento de relatos de casos de bissexualidade. O que tem levado a esse aparente crescimento?    

ACR – O desejo sexual e como ele se expressa não tem regra, não tem caixinha. Ele é livre, embora haja forças importantes que vão norteando essa expressão dos desejos. Mas as pessoas estão se permitindo experimentar mais e expor suas experiências. Eu ouvi muitas histórias lindas em minhas pesquisas. Ouvi uma mulher falando “eu fui casada com um homem por 20 anos, me definia heterossexual e me apaixonei por uma mulher”. Outra mulher me disse: “afeto é com mulher, mas eu adoro uma putaria com homem”. Então esta é uma mulher livre o bastante para perceber seu desejo. Essa geração mais jovem, a partir de toda a abertura que alcançamos, e apesar das resistências, consegue se experimentar mais. A Regina inclusive fala que esses rótulos – homossexual, bissexual – vão deixar de ser usados. Hoje eles continuam importantes porque as pessoas são vulnerabilizadas quando se opõem à lógica da heterossexualidade normativa. Então, o rótulo ainda é útil na luta por direitos, mas com o tempo ele será descartado. 

É mais ou menos como se a gente estivesse em guerra. Precisamos sorrir e fazer o que nos dê alegria, porque a alegria é subversiva. E gozar é muito bom, né?

André – E como os pais têm reagido a essa geração bissexual mais declaradamente assumida?   

ACR –  Eu recebo pais que querem dialogar, acolher, mas se sentem angustiados. Acolhem o filho no meio de uma turbulência e querem compreender. Geralmente perguntam: “é normal?” Muitos ainda veem a homossexualidade e a bissexualidade sob o viés da patologia. E também têm medo das violências. O melhor a falar para esses pais é: você precisa acolher, seu filho não tem nada de patológico, vamos, juntos, pensar caminhos de proteção.   

Carmem – Em tempos marcados pela retirada de direitos e por ameaça aos defensores dos direitos humanos, como se manter atento e forte? 

ACR – Uuh, vou até suspirar (faz pausa). Essa é uma pergunta que traz um choro. Meu coração se aperta mais um pouquinho ao saber que saíram do Brasil Márcia Tiburi, Jean Wyllys, Débora Diniz – encontrar essa mulher me virou do avesso. É muito desafiante se manter esperançosa, acreditando que é um momento e vai passar. Eu tive uma sensação de opressão nas eleições de Donald Trump (presidente dos EUA). Demorei um pouco para entender o que estava sentindo e a cada país onde essa onda conservadora se apresenta, vai tirando um pouco o nosso ar. Mas é nesse momento que a gente precisa ficar mais junto, encontrar quem são as pessoas que sonham os mesmos ideais e refazer nossas forças. Precisamos preparar redes de afeto, de autocuidado, de carinho. E vamos nos retroalimentando. Vamos levantar quem está mais fraco naquele momento, porque a gente oscila, né? É muito difícil se sentir submetido à violência. E esse momento pode demorar. É mais ou menos como se a gente estivesse em guerra. Precisamos sorrir e fazer o que nos dê alegria, porque a alegria é subversiva.  E, por fim, não tem como não juntar alegria com sexualidade, porque gozar é muito bom, né? (risos). Pra quem acha, é. 

 ***

Em que ponto da Escala Kinsey? 

Alfred Charles Kinsey, biólogo e sexólogo americano, produziu estudos pioneiros e até hoje referência sobre sexualidade. São dele os livros Comportamento Sexual no Homem Humano (1948) e Comportamento Sexual na Mulher Humana (1953), em que entrevista milhares de homens e mulheres americanos sobre suas práticas sexuais e defende uma sexualidade feminina libertadora. 

Ele criou a Escala Kinsey, que tenta descrever o comportamento sexual de uma pessoa ao longo da vida. A Escala usa unidades numéricas de 0 – comportamento exclusivamente heterossexual – até 6 – comportamentos exclusivamente homossexual. No nível 3 estariam as pessoas bissexuais. 

Uma novidade da pesquisa foi revelar que as orientações e práticas sexuais eram menos heteronormativas e mais flexíveis do que se dizia até então (final dos anos 1940 e início dos anos 1950). 11,9% dos homens entre 20 e 35 anos foram classificados no nível 3 (bissexual) pelo menos em algum período de suas vidas. 10% dos homens eram “mais ou menos exclusivamente homossexuais durante pelo menos três anos”. 

7% das mulheres solteiras e 4% das que já se casaram, entre 20 e 35 anos, foram classificadas no nível 3 (bissexual) num período de suas vidas. Entre 2 a 6% das mulheres, entre 20 e 35 anos, foram classificadas no nível 5 (predominantemente homossexual) e entre 1 a 3% foram classificadas no nível 6 (exclusivamente homossexual). A Escala de Kinsey não incorpora a transexualidade e só passou a incorporar a assexualidade após as primeiras entrevistas. 

A pesquisa foi criticada por incluir a observação e a participação na atividade sexual. Kinsey filmou atos sexuais que incluíam colegas de trabalho como parte de sua pesquisa. Ele argumentou que isso ajudaria seus entrevistadores a entender as respostas dos participantes. 

**

A sexualidade feminina em Hite  

Shere Hite, sexóloga e feminista teuto-americana, concentrou seus estudos na sexualidade feminina. O Relatório Hite sobre sexualidade feminina, lançado em 1976, ampliou o debate sobre o feminismo. 

Ela entrevistou milhares de mulheres e sua pesquisa causou impacto ao discutir o orgasmo feminino, dando ênfase à capacidade clitoriana e a masturbação como fontes de satisfação sexual. Suas constatações puderam contradizer estereótipos sobre a sexualidade feminina que advogavam uma excitação lenta e raridade de orgasmo nas mulheres. Segundo o Relatório, “não é a sexualidade feminina que tem um problema (uma disfunção) – é a sociedade que é problemática na sua definição de sexo e no papel subordinado que essa definição confere às próprias mulheres”. 

Entrevista publicada na Revestrés#40 – março-abril de 2019.

 Assine ou compre edição avulsa e receba em qualquer lugar do Brasil:
www.revistarevestres.com.br ou (86) 3011-2420.
💰 Ajude Revestrés a continuar produzindo jornalismo independente: catarse.me/apoierevestres