Participaram desta entrevista: André Gonçalves, Maurício Pokemon, Samária Andrade, Wellington Soares. Convidado: Salgado Maranhão, poeta e compositor. Texto e edição: Samária Andrade. Fotos: Maurício Pokemon.

A professora e escritora chega apressada ao salão do hotel onde a esperamos. Deixa sobre nossa mesa um tablet vermelho com adesivo azul de Marielle Franco e avisa que vai se servir no café da manhã. Em pouco tempo, está de volta. No prato, pequenas porções de frutas que permanecem quase intocadas. Gestos rápidos e contidos, fala gentil e expressiva, parece medir o tempo entre as muitas tarefas que sempre anda fazendo. Na noite anterior, com generosidade, respondeu a todas as perguntas, atendeu a todas as pessoas e tirou todas as fotos que lhe pediram após sua participação no 20º Salipi – Salão do Livro do Piauí, realizado pela Fundação Quixote na Ufpi – Universidade Federal do Piauí. Saiu do local por volta da meia-noite. Agora, já estava pronta para quase duas horas de conversa antes de pegar o voo que a levaria de Teresina a São Paulo.

Lilia Katri Moritz Schwarcz, paulistana, 64 anos, é historiadora e antropóloga, doutora em Antropologia pela Universidade de São Paulo (USP) e professora titular na mesma universidade. Foi professora visitante em algumas das maiores universidades do mundo como Oxford, Columbia e Princeton. 

Junto com o também escritor Luiz Schwarcz, com quem é casada, é fundadora da Companhia das Letras, tida hoje como a maior editora de livros no Brasil e que publica mais de mil autores, principalmente de literatura e ciências humanas, geralmente com tiragens na faixa de 10 mil exemplares. O livro de maior sucesso da editora é da própria Lilia: As Barbas do Imperador, sobre vida, reinado e personalidade de D. Pedro II. O livro vendeu quase 4 milhões de exemplares e venceu, em 1999, o Prêmio Jabuti de Literatura como biografia e livro do ano. A escritora coleciona ainda outras premiações no próprio Jabuti e também pela ABL (Academia Brasileira de Letras), UBE (União Brasileira de Escritores) e APCA (Associação Paulista de Críticos de Arte). No campo das artes, Lilia é curadora de exposições e, desde 2015, curadora adjunta no Masp Museu de Arte de São Paulo.  

Ao lado do ator Dan Stulbach, foi parar na televisão. Em 2017, os dois apresentaram a minissérie Era Uma Vez Uma História, na Rede Bandeirantes. Em quatro episódios, falaram desde a transferência da corte portuguesa ao Brasil até a proclamação da República.

Ela é ainda colunista do jornal Nexo e ativa nas mídias sociais, onde, longe de se omitir, manifesta sua opinião política e tem denunciado os desmandos do governo Bolsonaro. “Tolerância zero com discursos de ódio” avisou no Instagram, onde tem mais de 420 mil seguidores. Criou a série Inimigo Público da República e tem feito postagens concedendo esse título a nomes como Augusto Aras, procurador-geral da República; Arthur Lira, Presidente da Câmara dos Deputados; Damares Alves, ex-ministra da Mulher, e Marcelo Queiroga, Ministro da Saúde.

Os temas da história do Brasil, especialmente enfocando relações de autoritarismo e racismo, são os seus preferidos. É autora, entre outros, de Retrato em Branco e Negro (1987), O Espetáculo das Raças (1993), Racismo no Brasil (2001) e publicou, com Flávio Gomes, Dicionário da Escravidão e da Liberdade (2018) e Enciclopédia Negra (2021).

Reconhecida estudiosa das raízes africanas do Brasil, contribui com uma leitura em chave decolonial e antirracista. Mesmo assim, não escapou de estar no centro de grande polêmica quando, em agosto de 2020, escreveu na Folha de S. Paulo o texto com os seguintes título e subtítulo: “Filme de Beyoncé erra ao glamourizar negritude com estampa de oncinha: diva pop precisa entender que a luta antirracista não se faz só com pompa, artifício hollywoodiano, brilho e cristal”. O texto falava de Black is King (Disney), filme em que Beyoncé encena músicas do álbum The Gift e faz uma releitura do filme Rei Leão, agora narrando a história de um menino negro dos Estados Unidos que se reconecta com sua ancestralidade africana e enxerga, na cultura de origem, a força para mudar o futuro.

A reação ao texto da antropóloga foi imediata. De famosos a anônimos apontaram que a estudiosa branca estaria querendo “ensinar” a uma artista negra como representar as pessoas negras ou como produzir seu discurso artístico em relação à negritude e ancestralidade. O caso tornou-se um dos mais rumorosos dos chamados “cancelamentos” das mídias sociais. Lilia pediu desculpas em suas páginas: “Respeito muito o trabalho de Beyoncé. Peço que leiam o texto todo que é muito mais elogioso que crítico […]. Me desculpo, porém, diante daqueles que ofendi. Não foi minha intenção”. Depois também contou que título e subtítulo não foram escritos por ela, mas pelo jornal, como geralmente ocorre e muitos leitores não sabem. As críticas, porém, não se restringiam ao título e subtítulo. Ao final de tudo, outra discussão emergia: até onde podem ir os cancelamentos? Para Revestrés, Lilia afirmou: “A Folha de S. Paulo teve um comportamento velhaco. Ela que fez o título e a linha fina do texto. Eu fiz a autocrítica e a Folha jamais fez”. Sobre cancelamento, ainda disse: “Digo por experiência própria: se você não tem estrutura pra lidar com isso, as consequências podem ser terríveis. O cancelamento é um lugar de solidão.”

Ao entrar no voo que a levaria de volta a São Paulo, a antropóloga se sentou ao lado de uma passageira que tossia, se recusava a usar máscara e ainda dizia não ter se vacinado. A estudiosa reclamou ao comissário de bordo. A mulher permaneceu sem máscara e Lilia foi mudada de assento. O Brasil vivia um aumento dos casos de Covid e dias depois, com voz anasalada, Lilia contou, nas mídias sociais, que contraíra Covid. É um pouco sobre esse Brasil onde estamos todos embarcados, e muito mais, que ela conversa com Revestrés.

Lilia Schwarcz | Foto: Maurício Pokemon

Samária Você já disse que o brasileiro gosta de se ver como tolerante e acolhedor, mas que isso é uma mitologia para esconder uma realidade marcada por lógicas de dominação herdadas do sistema colonial. Isso está em seu livro Sobre o Autoritarismo Brasileiro (2019). Você acha que hoje vivemos um momento em que os autoritarismos estão mais expostos?

Lilia Schwarcz Na história do mundo há períodos de experimentos mais liberais e períodos mais autoritários. Logo após a Primeira Guerra Mundial, parecia se abrir um momento de muita humanidade, aconchego à diferença, respeito aos outros, cujo grande experimento foi Weimar (cidade alemã que converteu o reich em república parlamentar após a Primeira Guerra Mundial; a República de Weimar vai de 1919 até o início do regime nazista, em 1933). E Weimar foi um experimento democrático, mas deu lugar a extremismos de todos os lados, sendo depois um dos berços do nazismo – talvez o regime autoritário mais emblemático no sentido de promover a dizimação mecânica e oficial de milhares de pessoas que eram os seus outros. O nazismo não foi um fenômeno individual, ele se reproduziu, com diferenças, em outras partes do mundo. Para pensar o autoritarismo no Brasil eu diria que ele tem características de fundo geral e de fundo particular. De modo geral, a América Latina viveu grandes experimentos progressistas à esquerda – é o caso de Honduras ou do Chile –, que foram apanhados por uma crise financeira e isso resultou em grupos políticos mais à direita. No caso do Brasil recente, podemos falar que, quando Donald Trump é eleito nos Estados Unidos, o mundo mais democrata e progressista levou um susto. Nós não tínhamos nem ideia de que uma pessoa como ele poderia vencer as eleições! Mas havia um autoengano nosso: achamos que aquele era um caso isolado e até caricato. Só que ele foi se mostrando em muitos países. E descobrimos muitas pessoas dispostas a seguir experimentos retrógrados. Eu digo que não tenho nenhum problema com governos conservadores, até acho que faz bem para a democracia a existência de projetos diferentes – mas projetos que respeitam a Constituição e os direitos arduamente conquistados. Já os grupos retrógrados, propositadamente, querem fazer retroagir direitos – aí a história é outra! (fala com ênfase). A onda que veio com Trump e o trumpismo trouxe uma nova forma de populismo – que é tecnológico. Eles têm um grande domínio das mídias sociais digitais e se mostram de uma eficiência tremenda, em várias partes do mundo: Hungria, Polônia, Israel, Itália. Logo, não se trata de um experimento isolado. O Brasil poderia ter se precavido, mas não o fez. Na minha opinião esse fenômeno, no Brasil, vem desde 2013, quando as ruas, tradicionalmente um espaço dos setores progressistas, se converteram também em espaços de grupos organizados à direita. Depois isso continua em 2016, com o impeachment da presidente Dilma Rousseff, e deságua nas eleições de 2018. Jair Bolsonaro era um político que se apresentava como antissistema, mas era absolutamente do sistema, bebia da política há 27 anos, bem como seus três filhos. E os brasileiros e brasileiras, sobretudo os setores progressistas, não se deram conta do fenômeno que estava vindo. Ironizaram, brincaram, disseram que ele não tinha chance. Eu me impressiono muito como nós não vimos. 

A onda que veio com Trump e o trumpismo trouxe uma nova forma de populismo – que é tecnológico. Eles têm domínio das mídias sociais digitais e se mostram de uma eficiência tremenda.

Samária E o que poderia ter sido feito antes de chegarmos aonde estamos?

LS Como diz Timothy Snyder (historiador estadunidense), nós não temos nada melhor do que as pessoas que viveram o nascimento do fascismo, do nazismo e até do stalinismo, mas nós temos, a mais, a experiência. Então podíamos ter contado com a experiência de outros países, com a chegada ao poder desses líderes retrógrados, em geral homens brancos, de meia idade ou mais, que vinham com uma espécie de nostalgia raivosa de um tempo que não existiu. Eu penso que o governo Jair Bolsonaro vem desse caldo de uma cultura à direita muito organizada e que não depende de uma pessoa. No meu livro Sobre o Autoritarismo Brasileiro, inclusive, cito Bolsonaro apenas uma vez, quando falo que existem mandonismos rurais, mas também mandonismo urbanos, que é o caso da família Bolsonaro. Essas pessoas avalizam um tipo de comportamento autoritário, uma agenda negacionista, contra a ciência, contra o jornalismo, a academia, a favor do aumento do número de armas, contra estrangeiros – é todo um pacote que vem junto com essa direita organizada. Isso, no Brasil, vai ter um efeito tremendo, porque é preciso pensar nas consequências de governos retrógrados-populistas-tecnológicos, como o de Jair Bolsonaro, em países desiguais como o Brasil.

Wellington O fato de termos sido pegos de surpresa com Bolsonaro, mesmo que já houvesse esse caldo de extrema-direita em outros países, pode ser reflexo de que nossos intelectuais e universidades estavam descolados da realidade?

LS Sou cria da universidade, me formei por lá e devo tudo a ela. Mas acho que o que aconteceu em 2018 tem que acender um sinal de alerta, porque foi muito gritante nosso deslocamento. Havia grande parte da sociedade que nós não compreendíamos. Temos que falar também sobre o que significou o universo religioso. Jair Bolsonaro fez um plano: quando ele se batiza antes das eleições, trata-se de um plano, e é soberba nossa achar que ele é só um palhaço e não entende nada (Bolsonaro foi batizado em 2016 pelo pastor Everaldo Pereira no rio Jordão, em Israel. O pastor foi preso em 2020, na mesma operação policial que afastou Wilson Witzel do cargo de governador do Rio de Janeiro, acusado de irregularidades em contratos na saúde durante a pandemia de Covid-19. Bolsonaro também foi batizado em 2019, por Edir Macedo, no “Templo de Salomão”, em São Paulo). Ele pode não entender dos valores que nós prezamos, mas entende de poder, de como chegar e se manter no poder. E tem seus ideólogos – isso também foi uma surpresa. Eu fiquei muito frustrada comigo mesma, me entendo como uma analista da realidade, sou paga pelo estado para isso e nunca tinha ouvido falar de Olavo de Carvalho. E vende livros! E nem precisa vender: é um fenômeno nas mídias sociais. Quando a maioria da população descobriu os cursos online durante a pandemia, eles já se utilizavam desses recursos. Eu só não acho que é culpa ‘só’ da academia. E nossos políticos tradicionais? Eles são profissionais! Tinham obrigação de saber que era possível que isso acontecesse. Donald Trump já tinha ganhado eleição em 2016 sem ir a debate, com pouquíssimo tempo na TV, sem projeto político para o país, controlando suas próprias mídias! Veja o que aconteceu com boa parte dos partidos, o que aconteceu com o PSDB! (exclama e faz silêncio). Partidos profissionais não entenderam o que estava vindo e foram alijados do poder.

Jair Bolsonaro fez um plano e é soberba nossa achar que ele é só um palhaço e não entende nada. Ele pode não entender dos valores que nós prezamos, mas entende de como chegar e se manter no poder.

Maurício Você acha que a ascensão da extrema direita no Brasil se relaciona com o que Mano Brown falou: que a esquerda havia se afastado de uma aliança com a periferia, por achar que já a havia conquistado, e esse espaço vazio foi ocupado por outros grupos?

LS As esquerdas no Brasil durante muito tempo postergaram temas que não são adiáveis. Dentre as bandeiras de Jair Bolsonaro – se é que ele tem alguma –, uma delas era segurança. E essa é uma bandeira que a gente tem que desfraldar. O Brasil é um país muito violento, tem números de violência epidêmica, nossas populações estão morrendo nas periferias e a coisa só sensibiliza quando começam a morrer as pessoas do centro do Brasil. Claro que eu não concordo com a solução que ele propõe, que é dar armas para a população. Mas ele tocou num ponto importante, porque os brasileiros e brasileiras estão se sentindo inseguros. Outras bandeiras adiadas pela esquerda foram justamente as dos direitos civis. Demoraram demais pra assumir que o racismo era uma bandeira real, incontornável. Como diz a Coalizão Negra por Direitos, nós não teremos direitos enquanto formos um país racista. As esquerdas consideraram como questão fundamental a economia e a política – e não dá pra adiar mesmo. Mas também não dá pra adiar representação! Nos governos do consórcio PSDB e PT, a representação negra e de mulheres é muito pequena. Temos que olhar para nós mesmos criticamente. Mano Brown tem toda razão. Ele é um grande intérprete da realidade e é preciso reconhecer que, ao tempo que as esquerdas adiaram, Jair Bolsonaro entrou nas periferias, via igrejas evangélicas, que têm ali uma penetração tremenda. E ele usou uma linguagem que essa população entendia. E as esquerdas tem uma tendência de dizer que quem vota nelas são pessoas esclarecidas e quem elege candidato de direita é alienado. Não é exatamente assim! Talvez nós nos tenhamos alienado de uma realidade muito brasileira.

Wellington Em 2022 temos o centenário da Semana de Arte Moderna e bicentenário da Independência do Brasil. As duas datas estão relacionadas porque a escolha de 1922 para a realização da Semana não foi aleatória, mirava a busca de uma identidade e cultura nacionais. Qual o legado que nos deixa a Semana de Arte Moderna de 1922?

LS A Semana de 22 tinha uma lufada de novidade. Trazia uma crítica ao parnasianismo, ao excesso de estrangeirismos e ao darwinismo social, que ainda fazia grande sucesso nesse momento (argumento ideológico, adaptado da teoria da evolução de Darwin, usado para explicar a superioridade racial e divisão de classes como algo natural). Mas a Semana também estava vinculada ao interesse de projetar São Paulo, uma província muito rica, mas sem símbolos culturais, e que precisava espelhar seu poder. São Paulo vinha tentando se projetar nacionalmente e a Semana de 22 foi um sequestro paulistano para tentar se impor. Tanto que a Semana ficou conhecida como Semana de Arte Moderna “de São Paulo”. E a gente deve dizer que foi uma semana de arte moderna “em” São Paulo, porque sem os cariocas essa semana não existiria. Basta ver Di Cavalcanti, Villa Lobos, ou um Manuel Bandeira, de Recife. A Semana falou dos outros – os outros projetivos. Havia um grande líder negro e gay, Mário de Andrade, que por conta de impedimentos contextuais, não se colocava nesse local (de negro e gay). Então o que a gente sabe é que a Semana projetou seus fantasmas, seus temores. Um fato muito emblemático é que a foto mais famosa da Semana de 22 não é de 22, é de 24. Abrimos uma exposição recente em São Paulo, no Teatro Municipal, que se chama “Conta Memória” e colocamos essa foto da Semana de 22 ao lado de uma tela do Daniel Lannes que se chama “17 homens e um segredo”. Qual o segredo? Não há mulheres na famosa foto da Semana. E elas estavam em 22 – Guiomar Novaes, Anita Malfatti – mas eram poucas e, da representação oficial, elas sumiram! Nessa exposição, trouxemos sobretudo artistas mulheres, negros e indígenas. A Semana de 22 não chegou a incluir aqueles outros sobre os quais falou. Se pensarmos num grande legado… (pensativa). Cem anos depois talvez esteja na hora da gente falar de outras vanguardas que já existiam em 1922. Sou estudiosa de Lima Barreto e ele era um autor muito modernista, só que não foi convidado para participar da Semana. Foi convidado por Sérgio Buarque para escrever uma resenha na revista Klaxon – portanto não era uma pessoa desconhecida. Ele foi à Semana, não gostou e fez aquela resenha bem Lima Barreto: disse que os rapazes paulistanos estavam com mania de futurismo (risos). E torço para que ele não tenha recebido a resposta, porque logo depois saiu uma carta anônima muito violenta contra Lima Barreto, chamando-o de “intelectual de província”. Acho que esse desencontro entre Lima Barreto e a Semana de Arte Moderna dá uma medida interessante dos limites sociais, culturais, raciais e de gênero da Semana.

Wellington  Entre os problemas brasileiros que você estuda: autoritarismo, mandonismo, escravismo, patriarcado – é possível identificar uma raiz para tudo isso? Onde começam esses problemas que nos atormentam até hoje?

LS Não há uma raiz única, mas várias, que se desmembram e convergem entre si. Também não acho que exista determinismo histórico, que o que foi traçado lá no passado permanece no presente. Não! A gente pode mudar essa história! Mas existem vários elementos que são traumas nacionais e a gente não quer mexer no trauma. A ideia de meritocracia é a atualização do mito da democracia racial. É o mesmo mito, que vai se desenvolvendo em espiral, enquanto a contradição, que funda esse mito, não é dissolvida. Nossos problemas têm várias origens: o fato de termos sido uma colônia de exploração, um país dividido na base de latifúndios, do Estado português ter delegado poderes aos mandões locais, e a grande questão que é a escravidão – uma marca indelével na história do Brasil e na sociabilidade brasileira. Essas são todas características que nós não vencemos: na política, ainda funcionamos na base dos mandões locais, ainda praticamos uma política de subordinação em relação às populações que não se entendem como brancas. Antropóloga que sou, estudo os marcadores sociais de diferença que construímos e que têm um impacto profundo na nossa contemporaneidade. Basta ver que é entre as pessoas negras que estão os maiores índices de morte por Covid, de encarceramento, evasão escolar – e isso não é coincidência. Dá pra mudar esse jogo, mas a gente tem que encarar nossos traumas de frente.

Os brasileiros sempre foram racistas. O movimento negro sempre existiu – a branquitude é que fazia questão de não ver, não se referir a ele e não dialogar com ele.

Lilia Schwarcz

André Sobre ataques racistas que se multiplicam em campos de futebol, bares, shoppings, sem qualquer constrangimento mesmo quando racistas sabem que estão sendo filmados, isso significa que os racistas brasileiros perderam a vergonha de ser racistas?

LS O Brasil sempre foi racista. A gente só pode entender um país que manteve quase 400 anos de escravidão como um país que naturaliza a desigualdade. E, ao naturalizar, a transforma numa linguagem automática. O que fazemos com grande frequência? Silenciamos, borramos os lugares de atrito e, ao invés disso, transformamos esses lugares em espaços de harmonia. Isso é o que a branquitude faz no Brasil! E essa forma de atuar enfraquece e adia o movimento negro, que sempre existiu – a branquitude é que fazia questão de não ver, não se referir a ele e não dialogar com ele. Na nossa história toda fomos produzindo uma sociedade de racismo estrutural – como diz Sílvio Almeida (filósofo brasileiro). Se você entra num hotel como esse (com um gesto, convida a olhar em volta), dificilmente vê um negro que não esteja em situação de serviço. Se você pensar que essa é a população que morre antes, e mais, é a população que tem menos acesso à educação, à moradia, … e nós não falamos disso! Os brasileiros sempre foram racistas, só não era necessário expressar seu racismo. Por quê? Porque a branquitude se acostumou a ter seu lugar de privilégio, a ter esse conforto ontológico, essa norma que nem precisa ser nomeada; e assim não era preciso mostrar a sua face mais racista, podia se mostrar tão simpática! Mas essa é uma sociedade que socializou o elevador de serviço e diz que é para levar “cargas”. Uma sociedade que criou o quarto de empregada e o objeto de humilhação que eles são, sem janela, sem arejamento, com o chuveiro em cima do vaso sanitário! (fala com ênfase). Então sempre fomos racistas, mas a partir dos anos 1990, sobretudo, a questão dos direitos civis aflorou no Brasil e, com ela, um pouco mais de mulheres, pessoas negras, lgbtqia+, passam a se fazer notar. A branquitude se acostumou a não disputar vagas, não disputar nada, com a maioria da população do país. Como diz o Geledés (Instituto da Mulher Negra): a branquitude no Brasil é que nem corrida de cem metros: alguns saem 50 metros na frente, outros 50 metros atrás – se saem –, e a branquitude, muitas vezes, corre sozinha. O que está acontecendo agora? Finalmente a branquitude percebeu que essa é uma questão inadiável. E o que ocorre? Imediatamente, as demonstrações de racismo.  

 Digo por experiência própria: se você não tem uma estrutura pra lidar com o ‘cancelamento’, as consequências podem ser terríveis. O cancelamento é um lugar de solidão.  

Samária Você escreveu um texto na Folha de S. Paulo sobre um filme da cantora Beyoncé que teve uma enorme repercussão e terminou nos levando a uma outra discussão: o cancelamento nas mídias sociais. Você já era respeitada defensora antirracista e foi apontada como alguém que cometia racismo estrutural. Você ficou surpresa com essa repercussão? E considera que pode haver aspectos educativos no cancelamento?

LS Acho que a gente não pode legislar no absoluto. Posso falar sobre mim. Para mim foi uma experiência importante no sentido de compreender que vivemos numa época muito acelerada e não devemos aceitar toda e qualquer pauta, sobretudo eu, que não sou jornalista. Tomei para mim a questão da seguinte forma: se tem tanta gente falando, deixa eu tentar ouvir o que estão me falando. Claro que tem pessoas que não vale a pena ouvir. Se eu lhe responder ‘o cancelamento é bom’, é mentira. Ele não é bom. Tem pessoas que se aproveitam para surfar uma onda, inclusive os jornalistas. A Folha de S. Paulo teve um comportamento velhaco. Ela fez o título e a linha fina do texto – nenhum deles dois estava no meu artigo. E, com o que aconteceu, eu fiz a autocrítica e a Folha jamais fez. E ainda faz o contrário: investe e promove todo e qualquer cancelamento! Isso eu acho muito perverso. O que eu fiz com esse episódio? Tentei transformar num fenômeno de autoconhecimento e de conhecimento do outro. Existem pessoas que passam pelo cancelamento e vivem disso, ganham dinheiro com isso. Eu não vivo disso, não tinha nenhum apego financeiro a esse local. Mas isso me ajudou a ouvir mais, a entender mais e a dizer com sinceridade que quero viver num mundo em que as pessoas possam errar e possam aprender com o erro. O cancelamento é também expressão de uma sociedade intolerante e que fica aguardando algum deslize para, a partir desse deslize, majorar uma série de questões. Sou cientista social e analiso as questões entre o individual e o coletivo. Individualmente, acho que saí melhor, mais seletiva. Muitos amigos meus do movimento negro tinham receio que eu abandonasse a causa e eu acho muito importante que pessoas brancas, como nós, falemos desse tema. Aprendi, fui estudar mais, buscar o que estava certo, o que era meu e o que não era meu. Mas coletivamente, penso que as sociedades andam muito normativas, julgando demais. Tenho receio desses grandes tribunais morais que as mídias sociais produzem. Digo pra vocês por experiência própria: se você não tem uma estrutura pra lidar com isso, as consequências podem ser terríveis. O cancelamento é um lugar de solidão. Desde então procuro até ajudar pessoas que se desestruturaram em decorrência disso. Individualmente aprendi muito, coletivamente acho um fenômeno execrável.

Lilia Schwarcz | Foto: Maurício Pokemon

Samária Parte da universidade tem feito uma autocrítica no sentido de que usamos muitos autores homens e brancos. Mesmo com a autocrítica, muitas vezes é difícil escapar a esse formato uma vez que os clássicos são homens e brancos. Como professora, que dica você daria a esse professor, professora, que está fazendo a autocrítica: como ele, ela, podem se movimentar diante disso?

LS Falamos de cancelamento e eu não sou favorável a cancelar nada. Acho que cancelamento é uma política que não nos leva longe. Prefiro ler e politizar. Existe uma série de autores que são incontornáveis. Se falarmos da Semana de 22, vamos cancelar Oswald de Andrade? Prefiro ler os autores todos e não baixar o farol da crítica. Gosto muito de Edward Said (crítico literário palestino-estadunidense). Ele mostra como a maneira como concebemos o oriente foi uma construção do ocidente. Mesmo assim, ele não cancela Rudyard Kipling (autor e poeta britânico). Ele chama a atenção para o fato de Kipling ter uma visão exotizada da floresta, dos indígenas, mas diz: vamos ler e refletir. Simplesmente cancelar autores é uma política de embrutecimento, o cancelamento é também uma cegueira. O conhecimento é infindo e é mais importante incluir autores. Nossa historiografia é profundamente europeia – da Europa central – e um pouco norte-americana. Quando dava aula no nível médio, uma aluna me perguntou: professora, por que tenho que saber tanto da tomada da Bastilha? (risos). Aquilo foi um divisor de águas pra mim. No Brasil, estudamos tanto a Revolução Francesa, inglesa, norte-americana – que são as grandes revoluções da modernidade –, mas não estudamos a Revolução do Haiti, que foi muito influente na história do Brasil! E o que a gente deve fazer? Parar de falar da Revolução Francesa? Não! Vamos falar de todas elas, incluindo a Revolução do Haiti. Se essa inclusão implicar que vamos ler menos aqueles, ok. Acho que o desafio que professores têm agora é esse: a inclusão de outras manifestações, autores, temas. Isso que é uma visada crítica: incluir, sem tirar.

Wellington Como historiadora do Brasil, o que você inclui sobre o Piauí nessa história? 

LS Estudando sobre a independência do Brasil (o livro mais recente da escritora é O Sequestro da Independência, escrito com Carlos Lima Junior e Lúcia Klück Stumpf, lançado em agosto de 2022), já havia ficado impressionada com a Batalha do Jenipapo e com o silêncio sobre ela. Esse livro novo mostra muito a construção da lenda do Sete de Setembro como um acontecimento sudestino, palaciano, masculino. Analisando o que aconteceu no Maranhão, Bahia e, sobretudo, no Piauí, a gente percebe o monopólio da voz do Sudeste. Sempre me impressionaram muito Da Costa e Silva, poeta; Alberto da Costa e Silva, historiador; já escrevi sobre Esperança Garcia, o Piauí tem muitos intelectuais. Durante muito tempo esse imã que são o Rio de Janeiro e o Sudeste foi muito deletério para esse país de dimensões continentais que precisa ouvir seus extremos, pontas, lados, interior, para, finalmente, ter uma historiografia mais múltipla. Como historiadora sudestina tenho me disciplinado no sentido de estudar mais, sair do meu eixo, porque estar somente lá e só olhar para lá é uma forma de colonialismo.

Cerca de 30% dos brasileiros apoiam Jair Bolsonaro. Não é maioria, mas é um grupo organizado e unido. E pode causar muito estrago na sociedade.

Wellington Nesse momento, talvez o cinema nacional esteja conseguindo contar parte da história contemporânea por meio de filmes como Democracia em Vertigem e outros. Há também quadrinistas, chargistas, que têm apresentado cenas desse período. Há algum artista ou manifestação artística que você considera que melhor esteja representando esse momento histórico?

LS Mário Pedrosa, grande crítico de arte, dizia: em momentos de crise, fique próximo de um artista. Eu tenho ficado próxima dos artistas plásticos. E tem vários artistas negros e negras que estão na vanguarda nesse momento: Rosane Paulino, Jaime Lauriano, Flávio Cerqueira. Há também artistas indígenas: Daiara Tukano, Jaider Esbell. A beleza da pauta da diversidade é exatamente a diversidade. Então não procuraria “um” representante – você tem algum? (silêncio). São muitas pautas, e ainda bem que ninguém dá conta de todas, ninguém fala por todos, cada um fala por muitos, mas do seu lugar. E isso não é um problema. Nos momentos em que a branquitude reinava isolada é que vinha um cantor branco e tomava conta de tudo. A branquitude não tem mais o monopólio discursivo e de expressão e isso pode ser um bem. As respostas estão vindo de muitos lugares, muitos intelectuais: um Mano Brown, Emicida, Djamila Ribeiro, Sueli Carneiro, Ailton Krenak, Davi Kopenawa – várias falas estão dando muitas respostas.

O bolsonarismo só vai aceitar um resultado: a vitória de Jair Bolsonaro. E eles têm uma questão vital, porque, se perderem nas urnas, têm grande chance de ir para a prisão.

André Desde 2014, quando da eleição de Dilma Rousseff, estamos vivendo “estados de pânico” sucessivos: ataques a Dilma, golpe, perdas de direitos com Michel Temer, ascensão da extrema-direita com Bolsonaro, mais de três anos de destruição. Agora temos nova eleição e muitas dúvidas: haverá eleição de fato? Se houver, elegerá Lula? Se eleito, ele tomará posse? Tomando posse, governará? Como conseguiremos sair desse sentimento persistente de derrota e medo?

LS Olha, o Brasil já se perdeu e se encontrou inúmeras vezes. A gente não pode tomar a sensação do contexto imediato como uma verdade atemporal. O que vai acontecer ninguém sabe. “Golpe” virou tema de café da manhã, todo mundo fala, como se fosse algo banal. Alguns colegas dizem que não há condições para um golpe nessa eleição, mas eu sou temerosa. Havia condições para um golpe em 1964? Os golpes que aconteceram na América Latina como um todo, nos anos 1960, contavam com apoio dos Estados Unidos e de uma parte majoritária da população – o que não é verdade agora. Cerca de 30% dos brasileiros apoiam Jair Bolsonaro. Não é maioria, mas é um grupo organizado e unido. E pode causar muito estrago na sociedade. O jogo não está dado, tem muita água pra rolar. Eu temo um ambiente de “já ganhou” em relação a Lula, porque isso aconteceu em 2018. E temo muito o que o bolsonarismo pode promover, caso Jair Bolsonaro não saia vencedor das urnas. Essa pauta de desconfiança em relação à urna eletrônica não é dele. Donald Trump fez isso, promoveu a invasão do Capitólio, e acho que Jair Bolsonaro e seus seguidores vão promover todo tipo de insegurança. Resta avaliar o real respaldo que terão. Diz-se que este é o maior governo militar que já tivemos, maior que na ditadura militar, mas um golpe nas eleições contará com apoio dos militares? E dos ruralistas? E como vão se mover os empresários? Ainda tem muita coisa para ser contada. O que sabemos é que o bolsonarismo só vai aceitar um resultado: a vitória de Jair Bolsonaro. E eles têm uma questão vital, porque, se perderem nas urnas, têm grande chance de ir para a prisão. Por isso, para eles, não se trata apenas da soberba do poder, mas há uma questão mais palpável: a ideia da prisão. Quem disser que sabe o que vai acontecer no Brasil nesses meses, mente.

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 Entrevista a Revestrés#52.