(Participaram desta entrevista: Wellington Soares, Samária Andrade, André Gonçalves e Thiago E)
Aos 47 anos, com mais tempo de São Paulo que de Nordeste, Marcelino Freire mora no boêmio bairro da Vila Madalena e vive pelo mundo. Nascido numa casa onde não havia um livro, ele se encantou pelos poetas trágicos, considera que escreve como uma vingança e que faz muitas coisas ao mesmo tempo pra não se sentir um covarde. Em entrevista à Revestrés conclui quase de sopetão: “Dificilmente eu vou à poesia atrás de orvalho. Eu vou à poesia atrás… do caralho!”.
“Urubu come carniça. E voa”. Diz a epígrafe de um dos livros de Marcelino Freire. A frase é de Miró, poeta recifense, tomada de empréstimo por Marcelino, talvez porque expresse parte dos seus sentimentos. Aliás, o livro tem título e subtítulo: “Rasif – Mar que Arrebenta”. Como explicado na primeira página, Rasif é árabe e significa terreno pavimentado com lajes, palavra que deu origem a Recife. E “mar que arrebenta” em tupi-guarani pode ser traduzido como “pernambuco”. Podem ser indícios da forte presença pernambucana nos textos de Marcelino. Mas não são os únicos.
A presença da terra está nos textos ritmados, quase um cordel. Está na fala: responde às perguntas de forma musical – às vezes usa frases curtas, outras estica algumas palavras, e outras ainda repete o que acabara de dizer – menos para dar ênfase e mais para não descuidar do ritmo. A presença está no sotaque que nunca perdeu: “Quem me deu sotaque foi São Paulo. Em Pernambuco eu falo igual a todo mundo”- diz, bem humorado. Pernambuco também está nas influências: literárias, musicais, de arte popular. E transparece nas palavras: gentis ou performáticas, quando faladas; irônicas ou ásperas, quando escritas: “Para tomar no cu/ quebrar a cara/ foder-se à toa/ cair na miséria/ ir à merda/ perder no jogo/ um poeminha só é pouco”.
Marcelino é o caçula de nove irmãos, filho de mãe doméstica e pai pequeno comerciante – vendia arroz, feijão, carvão, num boxe no mercado de Paulo Afonso, na Bahia. “Como uma pessoa que não tinha um livro em casa queria ser poeta?”- pergunta. O menino nasceu em Sertânia, cidade a 316 quilômetros de Recife, hoje com cerca de 35 mil habitantes. Buscando melhorar de vida, a família se muda para Paulo Afonso quando Marcelino tinha ainda três anos. De lá, partem para Recife. Marcelino faz teatro, trabalha como bancário, inicia um curso de letras – nunca terminado – e escreve seus primeiros contos. Em 1991, aos 23 anos, arriba em voo solo para São Paulo, “zerado de tudo, sem emprego” – escreve no texto 47 movimentos, comemorativo ao seu aniversário de 47 anos, completados em Paris no último mês de março, onde foi lançar a tradução do seu primeiro romance: “Nossos Ossos”, em francês “Nos Os”. Em seu blog Marcelino escreve: “E eu, sertanejo de Sertânia”, que nunca pensei que um dia seria estudado, recebido lá na Sorbonne, na França, êta danado!”.
E o que lhe levou de Recife a São Paulo? “Fui porque tava apaixonado. Fui e me fodi logo que cheguei” – conta-nos. A paixão não deu certo, mas Marcelino ficaria em São Paulo, onde encontra espaço para mexer com o que gosta: as palavras. Foi revisor, redator de agência de propaganda, fez muito amigos, fez livrinhos de distribuição gratuita, tornou-se, além de escritor, um agitador da cena cultural, e criou um evento literário que reúne escritores e músicos nacionais e internacionais e, no próximo novembro, realiza sua nona edição – a Balada Literária.
Quando, aos 47 anos, acordou em Paris e nas circunstâncias em que acordou, perguntou-se: que significado tem isso? E respondeu: “Eu não saberia dizer. Sei que foi o trabalho que me trouxe aqui. As escolhas que eu fiz, a duras batalhas e penas, pelo caminho. O destino, em boa parte, nos guiando. Sem sair de Sertânia. Explico: estou aqui, como estive em outros cantos, mas quem me trouxe, sempiternamente, foram Sertânia, Paulo Afonso, Recife, São Paulo. As cidades também vão nos levando. Construindo, com a gente, a alma que finalmente carregamos”.
“Nossos Ossos” (Record) recebeu no último mês de setembro o prêmio Machado de Assis, da Fundação Biblioteca Nacional. Em 2006, “Contos Negreiros” (Record) recebeu o prêmio Jabuti. Ele se diverte ao contar que muita gente, inclusive a imprensa, confunde e chama seu livro de “Navio Negreiro”. No Jornal O Globo, na lista dos premiados do Jabuti naquele ano, era assim que o livro estava identificado. “Eu acho que o prêmio era para o Castro Alves”, diz às gargalhadas. E completa: “Agora eu vou escrever o Grande Sertânia Veredas”.
Em Teresina, Marcelino inicia o projeto Quebras, criado por ele e apoiado pelo edital Rumos Itaú Cultural. O escritor está visitando 15 capitais brasileiras, consideradas fora dos grandes eixos, ministrando oficinas de criação literária e tentando dialogar com os produtores culturais dessas regiões. Ele recebe a Revestrés no hotel Metropolitan, onde se hospeda. “Hoje fico mais em hotel do que em casa”. Nos surpreende porque, antes de ser entrevistado, nos entrevista. E, entre muitas garrafas de água, conversa, pausas, desabafos, sorrisos, avalia: “Eu faço muita coisa pra não ter tempo de pensar na vida. Faço muita coisa pra não me sentir um bundão, um covarde”.
Depois da entrevista, ele segue para o Galpão do Dirceu, espaço de coletivo de artistas localizado no bairro da periferia de Teresina, onde conclui sua oficina de criação literária com um recital, acompanhado dos alunos e de artistas e escritores. O jornalista Jorge Filhonili grava tudo e vai postando os vídeos no site Quebras, em tempo real.
Na entrevista, Marcelino avalia as angústias e alegrias de tornar-se um escritor, fala de dúvidas, dificuldades e também da felicidade que é reconhecer-se no que acredita que nasceu para fazer. Sensibiliza-se com desigualdades sociais e muito disso está em seus textos e personagens. Como o urubu de Miró, que come carniça e voa, ele fala em dor, mas também ensina: “tudo em mim é bailarino”.
Wellington – Você esteve em Teresina uma primeira vez no Salipi – Salão do Livro do Piauí. O que lhe traz novamente a Teresina?
Marcelino Freire – A angústia (pausa). A angústia de não conhecer um Brasil tão grande. Uma necessidade de reencontrar a pulsação que eu encontrei aqui quando vim pela primeira vez. Encontrei poetas, um trabalho vigoroso. Eu me deparo com uma Teresina que a gente só vê de longe e não conhece. “Quebras” é também quebrando fronteiras, distâncias, quebrando tudo. Eu que escolhi as cidades a serem visitadas e tenho muito cuidado para que esse projeto não pareça que eu tô chegando na cidade pra dizer o que é interessante. Eu tô aprendendo muito. Então eu chego oferecendo uma oficina de criação literária, que é uma maneira de articular estudantes e interessados na literatura. A gente vai discutindo poesia, eu vou dando dicas de como desbloquear um texto. Nesses dois dias eu já me deparei com poetas e você sabe, é muito raro descobrir um poeta. Poeta não publica o primeiro livro, poeta nasce com aquele primeiro livro.
Samária – Você ministra oficinas de criação literária. É possível ensinar alguma coisa nessa área?
MF – Sim. Nem todo mundo que faz oficina vai se tornar escritor. Mas sabe o que eu percebo? A gente forma leitores. E tem gente que quer escrever, não quer ler. Tem gente que quer publicar, não quer escrever! Nas minhas oficinas mais longas, para cada pessoa, eu destino um padrinho – geralmente escritores que se lascaram pra fazer a escolha pela literatura em suas vidas. Não fizeram sucesso ou não são lembrados. Então cada um vai pesquisar sobre aquele autor e descobrir que aquele autor deu o sangue, a vida, pra fazer aquilo que amava. Aí a pessoa começa a perceber que não é brincadeira. “Eu não posso ser um escritor de final de semana, eu tenho que ler!”. Há quem escreva bem e chegue na oficina consciente de que sabe tudo, aí não faz os exercícios, não interage. Outras vezes uma pessoa chega ali nas suas primeiras palavras, vai lendo e fazendo os exercícios e, quando vê, em algum momento, abre o que chamo de portinhola de acesso, uma janelinha, um fio de respiração, e segue fazendo o que ela descobriu. As oficinas são, sobretudo, um encontro de pessoas apaixonadas pela mesma coisa: obcecadas pela literatura.
Thiago E – Eu percebo a busca por uma linguagem icônica na sua prosa, você deseja aproveitar todas as possibilidades de expressão dos sons da palavra, aproveitando inclusive de uma ressonância da poesia concreta: o uso de palavra dentro da palavra – “nossos ossos”, “angu de sangue”. Isso é incomum em trovadores. O que você procura quando escreve?
MF – O que eu procuro quando escrevo? (Pausa) Eu procuro me vingar (risos). Eu procuro me vingar (com convicção). Eu sou um sertanejo, um imigrante, achava que eu ia morrer em Sertânia. Depois achava que ia ficar em Paulo Afonso. Depois achava que ia morrer em Recife. Fui pra São Paulo aos 23 anos de idade. Esses deslocamentos, eu percebo, estão no que eu escrevo. Meus personagens não estão no lugar que queriam estar ou estão “conformados” (fala com ênfase) àquela situação. Então nunca o personagem está ambientado, confortável. Eu acho que é meio fruto desse meu deslocamento. Pra mim, eu fico num canto e morro ali. Mas comecei a pingar prum canto, pingar pra outro. A minha linguagem também não está onde você acredita que ela esteja. Uma palavra minha, se você pensar que ela está nesse lugar, ela já está pulando pra lá, fazendo um gancho pra cá. É como alguém que joga uma pedra no rio e faz aquelas ondulações: a minha palavra re-ver-be-ra (fala balançando as mãos). Então minhas palavras também sofrem um deslocamento, elas migram. Aí é palavra dentro de palavra, é um substantivo que fica sozinho e eu fico procurando companhia pra ele, em algum som. Já me disseram que eu escrevo com rimas, eu digo não: eu escrevo com ímãs. Escrevo numa espécie de região magnética em que as palavras vão procurando seus pares, pra todas elas se juntarem nessa espécie de vingança coletiva. Ou afirmação de uma naturalidade, de uma nacionalidade, que eu sempre procuro.
Samária – Quando você fala das várias cidades onde morou, dos projetos em várias locais, fala de um deslocamento geográfico. Mas há também um deslocamento pessoal, né? Você se sente deslocado em relação ao mundo?
MF – Muito (Pausa e repete como num suspiro). Muito. Eu faço muita coisa pra não ter tempo de pensar na vida. Faço muita coisa pra não me sentir um bundão, um covarde. Faço a Balada Literária na maior luta, estou dando essa entrevista pra vocês e tô aperreado pra saber como vou resolver a Balada esse ano. Mas faço de qualquer jeito. Teimosamente, faço! Eu me desloco permanentemente e fico inventando coisas pra dar um pouco mais de sentido à vida. Porque no fundo, no fundo, eu sou preguiçoso. Toda vez que eu acordo eu digo: “de novo?” (risos). No fundo eu sou muito covarde. Eu tenho medo da dor, eu não consigo pegar em armas, não consigo gritar muito, espernear demais, não consigo cortar os pulsos. Aí eu escrevo, e faço eventos, e me desloco, exatamente pra não me sentir esse escritor que acha que sentou, escreveu e já resolveu tudo. Não resolveu nada, num país imenso desse, onde se lê muito pouco, onde a mediocridade é reinante. Onde a mediocridade é reinante. Onde a mediocridade é reinante (vai baixando a voz). Então tem mais é que se agitar.
Eu sou coirmão da teimosia dos artistas da periferia.
Essas pessoas não esperam pelo poder público,
pelas academias de letras, pra dizer o que elas podem fazer,
o que elas têm que escrever. Elas vão fazendo.
André –Muita gente tem a ideia da poesia como um espaço de delicadeza. Já a sua escrita é mais áspera, dura, já disseram que tem um pouco de sangue no que você escreve. A poesia, pra você, não é um lugar privilegiado da delicadeza? Como você avalia isso?
MF – A poesia da qual eu mais gosto é a poesia que me acorda, que diz coisas que eu não sei. que me deixa triste, me dá febre. O primeiro poeta que eu li foi Manuel Bandeira. Ele me deixou doente, tuberculoso, me doutrinou a ser doente, eu não queria ter saúde (arrasta as últimas palavras). E a minha família brigava para que nós tivéssemos saúde, sobretudo a financeira. Minha mãe queria que a gente estudasse, pra quê? Pra ser advogado, médico, engenheiro. Menos escritor, poeta. Eu nunca vi uma mãe dizer: “meu filho, quando você crescer eu quero que você seja poeta!” (risos). O Manuel Bandeira foi importante nessa minha vontade. Uma das primeiras poesias dele que eu li diz assim: “Criou-me, desde menino, para arquiteto, o meu pai. Foi-se um dia a saúde. Fiz-me arquiteto? Não pude. Eu sou poeta menor. Perdoai”. Eu disse: “Nossa! Eu quero ser esse poeta menor!”. Numa casa onde ninguém lia, ninguém tinha um livro, eu fui atrás de Manuel Bandeira e me deparei com aquele ser doente, melancólico e quis ser doente igual a ele. E depois, a partir de Manuel Bandeira, eu me deparei com outros escritores. O poema que eu mais gosto de João Cabral de Melo Neto é O Cão sem Plumas. De Drummond o que eu mais gosto são os poemas A Morte do Leiteiro e A Rosa do Povo. Eu gosto dos poemas que me acordam para o mundo à minha volta. Dificilmente eu vou à poesia atrás de orvalho. Eu vou à poesia atrás… Do caralho! (gargalha). Saiu de improviso!
Thiago E – Mesmo morando em São Paulo há muitos anos seu sotaque nordestino é inabalável e suas referências do Nordeste são inesgotáveis. Quantos e quais Nordestes existem na sua prosa?
MF – Toda vez perguntam pra mim: “você mora em São Paulo há quanto tempo? 23 anos?! Ah, mas você ainda tem sotaque!”. Eles querem que eu perca aquilo que é mais acentuado da minha origem, né? E quem me deu sotaque foi São Paulo, porque em Pernambuco eu falo igual a todo mundo. Em São Paulo, toda vez que me perguntam “de onde você é”, eu digo: “de Sertânia”. Em Pernambuco ninguém me perguntava de onde eu era, porque me reconheciam como pernambucano. Então São Paulo me deu sotaque, me deu saudade – que eu achava que não tinha – saudade da minha casa, do quintal, do café da manhã, do barulho da casa. São Paulo me deu infância – eu não lembrava dela. São Paulo fez com que, o tempo inteiro, eu afirmasse coisas. Essa afirmação: “eu sou de Sertânia” (quase canta o nome da cidade), essa resposta que eu tinha que dar às perguntas que me faziam o tempo inteiro – eu sou de Sertânia – isso foi importante para a minha literatura. Quando me descobriam diziam: “nossa! Sua literatura é meio cantada, meio cordelizada”. Isso não era apontado em Pernambuco. São Paulo também me deu essa voz literária. Eu só fui acentuando mais ainda, porque era uma maneira de ficar próximo das minhas origens e de não ser atropelado por São Paulo, que tem tudo pra te diluir. Porque começam a te perguntar de onde você é e você começa a mentir, com vergonha, não diz “eu sou de Sertânia” (com ênfase), diz “eu sou do Recife”, e depois começa a querer mudar o sotaque. Esse sotaque eu não posso perder nunca.
André – São Paulo lhe aproximou do Nordeste, das suas origens, mas, por outro lado, o que aparece muito forte em sua literatura são problemas e cenários urbanos. A impressão é que
sua literatura busca referência em dilemas das grandes metrópoles, com uma melodia nordestina. Que pontos de contato você encontra nessas diferentes paisagens e em seus textos?
MF – O meu corpo já foi embora de Sertânia faz tempo, mas a minha alma continua lá. Esse corpo sofreu choques, atritos, com a cidade de São Paulo. Os carros, procurar emprego, decepção. Meu corpo sofreu demais. Esse corpo, alojado em São Paulo, vai carregando as cicatrizes. Eu vejo que os meus livros não seriam possíveis, da maneira que estão, se eu não tivesse ido morar em São Paulo. Meus textos estão contaminados com a fumaça de São Paulo, as solidões de São Paulo, as distâncias de São Paulo. Mas a alma é de Sertânia: a maneira de ver o mundo, a teimosia, a ladainha.
Wellington (fazendo adaptação em poesia de Drummond) – Me lembrou um pouco os versos do Drummond: “Sertânia é apenas uma fotografia na parede…”
Marcelino e Wellington continuam, juntos – “mas como dói”.
Wellington – Pernambuco é terra de grandes escritores. Você já citou Bandeira e João Cabral. Em que outras fontes pernambucanas você bebeu e continua bebendo?
MF – Eu leio bastante poesia. O tempo inteiro eu volto pra ler Manuel Bandeira, João Cabral de Melo Neto. Leio Solano Trindade, que é pernambucano e foi morar em São Paulo. Leio teatro. Ariano Suassuna, Raimundo Carreiro – que está vivo e foi um mestre meu. Tudo o que escrevo devo ao que aprendi com ele, na oficina de criação literária dele. Tem também uns escritores jovens que estão vindo com muita força. Uma menina chamada Luna Vitrolira. Luna Vitrolina (repete quase cantando). Tem André Monteiro, jovem e escrevendo bem. Tô sempre em contato também com os músicos de lá. Aquela mistura que sai uma música tão diferente! O cinema pernambucano o tempo inteiro tá me provocando. Sabe um pernambucano que me influenciou muito? Luís Gonzaga. Luís Gonzaga. Minha mãe cantando Luís Gonzaga na cozinha me influenciou tanto quando Guimarães Rosa. Minha mãe cantando Luís Gonzaga.
André – E quando viaja para fora do Brasil, o que você busca ou encontra?
MF – Quando você tá em outro país percebe melhor o seu local. Olhando o quadro à distância você tem condição de jogar uma luz melhor. Então, quando eu tô fora, começo percebendo o que a cidade de São Paulo tem de tão pulsante. Algumas coisas que eu vejo fora também me animam: a cor de Paris, o cheiro de café de Buenos Aires, a cidade toda plana, eu gosto da velhice de Buenos Aires. Eu adoro, eu adoro a velhice de Buenos Aires. Adoro a velhice, o tempo que parece que não passa. Quando eu viajo eu me sinto dentro de mim. Só fui pra Nova York uma vez, porque fui convidado. Gosto muito da América Latina. Eu quero conhecer os nossos irmãos latinos. Adoro, adoro. Alguns autores se vangloriam: “Meu livro vai ser lançado na Hungria, Romênia, Iugoslávia”, e eu percebo que, muitas vezes, ele não falou ainda nem pro bairro dele, nem pra sua cidade, seu estado, seu país – e tá preocupado em falar pra Iugoslávia?! Quando eu vou à França ou à Argentina eu falei primeiro para Sertânia. Eu sei disso pelo que recebo de retorno, como as coisas reverberam por esses lugares. Então, quando eu vou para esses lugares, é Sertânia que está indo comigo, e eles reconhecem essa dor, reconhecem essa geografia. Converso demoradamente com meus tradutores na França e na Argentina. E não me interessaria publicar em outro país se eu não tivesse uma espécie de militância na linguagem e na cena literária aqui no meu país. Não entendo isso de falar primeiro pra fora, se você ainda não falou pra si e pros outros no Brasil.
As editoras
estão perdidas!
Hoje elas estão mais preocupadas
em transformar não autores em autores.
Quem é que hoje tá transformando o autor em autor? O autor.
Wellington – O Brasil, de certo modo, está em evidência no mundo, ou o mundo está descobrindo o Brasil, do ponto de vista literário. Nós tivemos recentemente destaque no Salão do Livro de Paris e da Alemanha. Como você está vendo esse momento?
MF – Eu acho que esse grande interesse pelo Brasil é econômico. Eles se perguntaram: “Qual o país que poderia dar um dinheirinho pra gente?” – “O Brasil!”- o país da vez, economicamente falando. “Tem um dinheirinho de sobra, vamos tirar”. É como uma avozinha da gente que faz uma economia, aí o neto tira o dinheirinho. Então o Brasil tá se ajeitando economicamente e haja homenagem prum canto e pro outro. E o Brasil vive de fato uma fase de subsídios para literatura, de editais muito interessantes, que há muito tempo eu não via. Eu, Ademir Assunção, Ricardo Aleixo e outros companheiros brigamos pelos editais por meio de um movimento chamado Literatura Urgente, exigindo do Governo Federal que se pensasse no setor criativo, nas leis de incentivo nesse país, nos editais de cultura. O ministro era Gilberto Gil, no primeiro mandato do Lula, e eles estavam muito aquecidos para ouvir os artistas. Estivemos em Brasília algumas vezes. Aí veio o crescimento das festas literárias, das feiras pelo Brasil e o mundo, o aumento de leitores – mesmo que ainda mínimo. Isso tudo acabou virando uma pauta e isso respinga lá fora. O Brasil começa, de alguma forma, a se dar um pouco de respeito na área literária, inclusive com editais de incentivo à tradução, e trazendo tradutores para vir ao Brasil, estudar in loco, conhecer seus objetos de trabalho. Isso modificou a cena interna. Eu estou em Teresina hoje por causa do edital Rumos Itaú Cultural. Em São Paulo estão acontecendo muito eventos na área literária. Isso tudo, de alguma forma, chama a atenção lá fora. Mas eu acho que é primeiramente um interesse econômico.
Wellington – Eu e André conhecemos a Balada Literária e ficamos encantados com o seu projeto, que é um evento mais alternativo e festivo e difere de alguns eventos como salões de livros pelo Brasil. Em que você se inspirou pra fazer a Balada Literária?
MF – Eu acho que um evento muito decisivo pra criação da balada foi a Flip – Festa Literária Internacional de Parati. Esse conceito de festa estava fazendo falta à literatura. Uma celebração, quase uma coisa circense, isso faz muito bem. Tem também a Jornada Literária de Passo Fundo, que me inspirou muito. Embora se chame jornada, ela tem um aspecto circense, acontece sob uma lona de circo e fala pra cinco mil pessoas. Então eu disse: “peraí, se existe a Flip, mas falta cerveja”- porque Parati é uma cidade muito cara e tem um momento em que as cervejas acabam – “então eu vou ter que fazer uma festa em que a cerveja não acabe e vai ser lá na Vila Madalena, onde eu moro há 15 anos”. Você vê que a inspiração veio muito mais pela falta de cerveja (risos). A balada é um evento totalmente gratuito, sem credencial, as pessoas ficam ao lado de Raduan Nassar, Antônio Cândido, Caetano Veloso, que foram à festa exatamente porque reconhecem nela esse afeto. Se tem uma coisa que eu me orgulho na Balada é que é um evento feito com muito afeto.
Wellington – Eu percebi na Balada uma preocupação com a inclusão de vozes que às vezes não são ouvidas pela grande mídia. E percebo em São Paulo uma efervescência desse cenário mais alternativo. É como se existissem outras São Paulos dentro da grande cidade, que quisessem ser ouvidas e reconhecidas. O que você percebe que esteja acontecendo em São Paulo e em outros centros, nessa cena mais alternativa?
MF – Eu sou coirmão da teimosia dos artistas da periferia. Essas pessoas não esperam pelo poder público, pelas academias de letras, pra dizer o que elas podem fazer, o que elas têm que escrever. Elas vão fazendo. Eu sou parceiro de muitas das pessoas que estão fazendo saraus e outros eventos na periferia de São Paulo, porque entendemos que essa soma modifica a geografia das coisas. As coisas estão muito acomodadas, muito nas mãos dos escritórios de captação de recursos, muito burocratizadas. E esse pessoal não espera nada pra fazer essa revolução que está fazendo. A Feira de Livros de Buenos Aires homenageou São Paulo e a curadoria, muito acertadamente, decidiu quais escritores iriam pra Feira: eles levaram mais de 90 artistas da periferia! Sabe por quê? Porque julgaram que o movimento mais vigoroso da literatura brasileira hoje, em São Paulo, está na periferia. Já briguei com imprensa porque toda vez que se faz um resumo do que está acontecendo na literatura contemporânea, esse resumo não coloca o movimento de literatura da periferia em São Paulo como algo que mereça destaque. São preguiçosos, covardes. Se existe um movimento vigoroso que eu tenha notícia e que eu tenho o prazer de participar e testemunhar é o movimento feito na periferia de São Paulo.
André – Uma discussão que a Revestrés já provocou diz respeito ao papel de investimentos em iniciativas culturais. Como você vê o apoio da iniciativa privada a projetos culturais que talvez não teriam outra forma de ser viabilizados?
MF – Na Balada esse é o segundo ano, das nove edições, em que temos apoio da Lei Rouanet. Nas outras tivemos apoio de parceiros e esses parceiros eu sei quem são: são pessoas. Quando eu falo no Itaú Cultural, eu falo com Claudinei Ferreira. No SESC Pinheiro, eu falo com Francis. Na Biblioteca Alceu Amoroso Lima eu falo com Rosa. Para essas pessoas eu não preciso explicar quem é Raduan Nassar. Eu já me deparei com algumas empresas em que precisei defender Raduan Nassar! Isso me cansa profundamente. Se disserem assim: “No lugar desse Raduan, chama esse outro escritor…”, aí eu não quero o patrocínio. Eu escolho os homenageados, eu monto a minha programação com todas as tribos. Agradeço o apoio, mas não venha me dizer o que a gente tem que fazer. Acredite no que a gente tá fazendo. O que me incomoda é essa espécie de querer empurrar algum autor: “homenageia fulano, que a gente te patrocina”. Eu sempre penso na Balada como um veículo de discussão – sobre preconceitos, marginalidade, respeito. Então não aceitarei nenhuma ajuda que seja só de departamento de marketing. Eu faço a Balada com pessoas, e pessoas que entendem a filosofia da Balada.
Samária – No projeto Quebras você fala que pretende descobrir que espaços literários estamos formando e ocupando. Que expectativa você tem do que pode encontrar a partir da experiência em Teresina?
MF – O Galpão do Dirceu – que projeto extraordinário! No bairro do Dirceu, afastado do centro, sem apoio – um coletivo em que os artistas se autofomentam. E tem todas as artes ali presentes! Assim que cheguei em Teresina fui logo visitar o espaço, e encontro ali 13 dragqueens ensaiando um show chamado Racha Show! Onde mais eu poderia encontrar isso? Então eu saio daqui muito alimentado por isso. Acho que comecei no lugar certo, na cidade certa. Com que teimosia é feita a revista Acrobata? Com que teimosia é feita a Revestrés? Se a gente não se coloca, se a gente não afirma coisas urgentes e contundentes, estamos perdidos. Se a gente não afirma coisas urgentes e contundentes, estamos perdidos.
Samária – Nessa cadeia escritor-editora-distribuidora-livraria, qual é o papel do escritor?
MF – Escrever. Escrever, escrever. Encontrar suas obsessões literárias, não se deixar render ao mercado: “eu estou escrevendo porque quero vender, porque quero ser traduzido, ganhar prêmios”. Escrever. Com muita verdade, sem concessão nenhuma, e ver o que acontece mais pela frente. Muitos escritores estão me parabenizando pelo prêmio Machado de Assis, que ganhei com “Nossos Ossos”, e alguns dizem: “Mas Nossos Ossos não faz o perfil de premiação, porque você não faz muita concessão, de temática, de capa”. Teve uma sugestão da editora para que eu mudasse a capa. Eles achavam que a capa, com muita caveira, poderia atrapalhar as vendas. Chegaram pra mim e disseram: “a gente quer mudar a capa”. E eu disse: “não vai mudar de jeito nenhum”. Eu convidei o desenhista, querido amigo e escritor também, Lourenço Mutarelli, pra fazer a capa. Eles disseram: “vai ter problema de venda”. E eu: “mas eu não tenho leitores!” (risos). Eu adoro a editora Record, porque ela não enche meu saco pra dizer o que tem que ser feito. O trabalho do escritor é escrever e também é se colocar, ser dono do seu trabalho. Eu sei que tem um diálogo, que você tem que discutir. Mas tem um limite pra isso.
André – Até há pouco tempo o sonho dourado do escritor era ser descoberto por uma editora grande que lançasse seus livros. Num mundo onde as pessoas podem publicar nos blogs e ter 30 mil acessos por dia, qual passa a ser o papel da editora?
MF – Eu vou lhe dizer uma coisa muito séria: se as próprias editoras não sabem o papel delas hoje, eu não vou saber. Elas estão perdidas! Tentando entender que universo é esse, que internet é essa que a gente não julgava que fosse crescer tanto! E tem as editoras independentes que estão aparecendo, e abocanhando prêmios, e tomando o espaço das grandes. Antes, se uma grande editora não publicasse um autor, esse autor tava morto. Hoje não é assim. Elas estão desesperadas. Tem um editor teimoso que é danado, que é o Vanderlei Mendonça, cearense, mora em São Paulo, tem a Demônio Negro, publica livros extraordinários. Tá aí ganhando prêmios e circulando seu livros. E resenhas imensas nos jornais, enquanto a editora grande, que paga assessor de imprensa e tem os “melhores” autores, se pergunta: por que eu tô dividindo espaço com esse pessoal? Tem a editora Patuá, do Eduardo Lacerda, que é quem mais publica livros de poesias no Brasil atualmente. Também ganhando prêmios e feita teimosamente, no quintal da casa do rapaz. Então tudo isso ficou muito descentralizado. As grandes editoras estão hoje mais preocupadas em transformar não autores em autores. Quem é que hoje tá transformando o autor em autor? O autor. Acorde pra Jesus, você que é autor!
Wellington – E em termos financeiros, você considera justa a relação da editora com o autor, que sempre leva a menor parcela?
MF – Isso é uma coisa que se discute muito, inclusive com a questão dos livros eletrônicos, que acaba com o atravessador, você não tem mais livraria, papel, e ficam os mesmos 10% para o autor? Não pode! A editora se defende dizendo que o distribuidor fica com tanto, a livraria com tanto. A editora acaba se salvando quando o livro vende muito. Esses best sellers sustentam a editora e os outros autores. Eu agradeço muito ao Sidney Sheldon, porque é ele quem sustenta a editora Record. Esses best sellers são quem viabilizam a editora publicar os outros autores. Por isso quando me perguntam o que acho de Paulo Coelho, eu digo: ele faz muito bem à literatura contemporânea. Como assim? Porque a editora que publica o Paulo Coelho pode publicar, se quiser apostar, um outro autor, porque ele sustenta aquela editora.
Wellington – Quando a gente é jovem e começa a escrever tem a esperança de que nossos livros vão transformar o mundo, a realidade. E, na prática, não conseguimos. Como é essa sensação pra você?
Thiago E – E por que alguém se torna escritor?
MF – Eu escrevo porque eu quero entender os absurdos à minha volta. Entender. Entender de uma injustiça social até a saudade de alguém. Aí eu vou escrever um poeminha ou um conto, pra eu entender aquela dor, aquela saudade. Escrever pra dar vexame. Repito: escrevo com um sentido muito particular de vingança. Se isso vai virar uma vingança coletiva, eu não sei. Isso vai depender do desejo de cada leitor, de onde ele é despertado, em que momento vai ser despertado. Eu escrevo pra deixar minha indignação, minha procura por compreensão, mas não sei o resultado que isso vai gerar. Não posso dizer que escrevo pra salvar ou melhorar ninguém. Se eu disser isso, posso estar fazendo o que as igrejas fazem. A igreja promete salvação, melhorar as pessoas. Eu não. Eu escrevo pra me reconhecer naquela dor. Dói, eu escrevo. Agora onde isso vai reverberar eu não sei. Mas não posso pegar isso como um objetivo. É mais um subjetivo.
Samária – Você escreveu no seu blog: “escritor escreve com os pés”. O que você quer dizer com isso?
MF – Caminhar. Caminhar pela rua. Pés fincados na sua terra. Chutando. Em conexão com suas raízes. Caminhar bastante. O livro que eu mais leio é a rua. Eu tenho que caminhar bastante. Ficar no tecladinho digitando, com as pantufinhas da Disneylândia, não! Tire a pantufinha e vá pra rua. Pise no chão!
Samária – Você tem uma linguagem um tanto áspera, mas você também escreveu: “Tudo em mim é bailarino”. Nós precisamos, mesmo com as dificuldades, continuar bailarinos?
MF – Bailarino porque tudo em mim dança. Eu tenho um livro chamado Balé Ralé, tem um conto onde um menino, enquanto os irmãos vão capinar, trabalhar na roça, ele tá dançando, a escolha dele é pela arte. Aí, tudo em mim é bailarino nesse sentido. Eu nunca tive muita força pra capinar, muita disposição pra pegar na enxada. A arte era a minha fragilidade, mas a fragilidade que me deixava forte. Bailarino porque o que eu escrevo tem esse movimento para a dança. E eu acho que essa suavidade conversa também com a homoafetividade. Quando eu digo “tudo em mim é bailarino”, eu tô dando um registro menos heterossexual, menos viril. O “bailarino” traz uma suavidade para o front que é a vida, pra essa trincheira. Apesar da secura, do contra, da guerra, a gente sempre tá bailando.
Vou-me embora
Marcelino Freire às vezes é quase autobiográfico. No conto “Amigo do Rei”, ele conta a história de um menino do sertão que descobriu a poesia por meio de Manuel Bandeira. Na entrevista, nos diz: “Numa casa onde ninguém lia, ninguém tinha um livro, eu fui atrás de Manuel Bandeira e me deparei com aquele ser doente, melancólico, e quis ser doente igual a ele”. No conto, mais do que de poesia e descoberta, o autor fala de distância e incompreensão, mas o faz com ironia e leveza. No texto, quando o pai soube do que o menino gostava, decidiu-se a persuadi-lo e a encantá-lo pelo futebol – uma atividade mais viril e condizente com um cabra do sertão.
Alguns trechos:
O menino era poeta. Não era atleta, não era. Minguado, magrinho. O pai olhava para ele. Chuta. E o menino chutava o vento e caía de bunda. Meu Deus! O pai, logo ele, corintiano roxo. O menino nem aí. Gostava era do azul da nuvem. Do verde-rosa. De ouvir o barulho da chuva. Correr atrás de passarinho. Bosta de vaca. Cheiro de lagartixa.
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Levou o menino ao médico. Tudo normal. Normal, doutor? Jura? Todo menino gosta de bola. Ele nem sequer olha. Não dá a mínima bola, entende? Oh! O que vai ser dele quando crescer? Resolveu perguntar. Hein? O menino sorriu. Vou ser poeta.
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Vou lá na escola. E foi. / Bola. Meu filho não gosta de bola. Procurou o senhor diretor. O que eu faço? Queria saber quem era o culpado. Nem a camisa que eu comprei ele veste. Foi à sala dos professores desabafar suas dores. Manuel Bandeira. Como é que é? A professora repetiu. Seu filho gosta do Manuel. Hã? Manuel Bandeira. Autor do “Vou-me embora pra Pasárgada”, lembra?
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O pai amarelou. Ali mesmo desmaiou. Nem ouviu o final da história. Meu filho gosta de um outro menino. Falou para a mulher. E agora?
(Publicada na edição#16, setembro/outubro de 2014)